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Software Livre & Código Aberto — onde está a diferença?

20 de Março de 2015, 8:09 , por Desconhecido - | No one following this article yet.
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"Os dois termos descrevem quase a mesma categoria de software, porém eles apoiam visões baseadas em valores fundamentalmente diferentes."
— Richard Stallman em Why Open Source misses the point of Free Software

Existe um debate jurídico nebuloso sobre um poder abraçar determinado licenciamento e o outro não, mas que, na prática, não existe e nunca houve intenção de existir. Todo software que se encaixa na definição de SL, também se encaixa na definição e OS. A diferença entre SL e OS é exclusivamente de discurso.

A Tecnicidade da História

GNU
GNU — O início do FOSS, como conhecemos hoje.

Stallman (antes de existir FSF) definiu as 4 liberdades de acordo com a cultura hacker em que ele estava envolvido (mas não criado). As 4 liberdades são bastante genéricas e poderiam ser redefinidas em 3 ou 5, Stallman concorda com isso, foram 4 porque foi, o que importa é que elas expressam tudo de essencial.

Debian
Projeto Debian

Anos depois, no início do projeto Debian os DDs perceberam que precisavam de especificações mais claras para detalhes específicos, sobre que licenças seriam ou não aceitas como livres pelo projeto, reduzindo os debates sobre a adequação às 4 liberdades a um simples check list de 10 itens.

OSI
Open Source Initiative

Quando a OSI foi fundada eles buscaram no Debian o remake para definir o que seria a definição de OS, mudando poucos itens para ficar mais genérico, necessáriamante porque no Debian existem coisas como "License Must Not Be Specific to Debian".

Sendo assim a definição de OS é só uma outra forma de declarar as 4 liberdades, por isso ninguém da OSI nega a às 4 liberdades (a definição de SL), muito pelo contrário, eles a respeitam, mas não promovem abertamante por conta do discurso... próximo assunto.

Diferença de Discurso

A definição de SL fala sobre liberdade do usuário e ética. Este discurso da ética, promovido pela FSF, não foi bem aceito pelas empresas no passado (hoje ética é cool, mas ainda só na lista de temas setor de marketing), além disso o "Free" de "Free Software" era frequentemente confundido com gratuidade (incrível como um povo pode ler liberdade e vincular preferencialmente a custo monetário), por isso entendiam como invariavelmente não comercial.

Um grupo de pessoas passou a acreditar que não deveriam falar sobre ética, mas deveriam promover o SL com base na sua tendência a maturação acelerada, melhor qualidade garantida pelos olhos externos e grande aderência aos padrões. Para isso seria melhor usar outro nome e consideraram a característica da abertura do código como mais importante que a liberdade. A definição não deveria chamar tanta atenção para noções de ética e encontraram na DFSG algo bastante prático e direto. Com isso foi fundada a OSI, na intenção de promover o SL entre corporações, mas, como é possível perceber, também fez dividir a comunidade com discursos de ódio entre argumentos de "promoção da liberdade" x "melhor software".

Mesmo depois de anos de OSI e uso quase exclusivo do termo "Open" entre os anglófilos, ainda é frequente se falar em "commercial software" em contraposição à FOSS, em vês de usar o conceito "proprietary software", como se FOSS não fosse comercializável. (RedHat, IBM, Colivre mandam lembrança)

Algo que está no discurso, mas não na definição de SL e OS, é a sua relação com o "Software Proprietário" (ou "Software Privativo" que me parece definir melhor). Enquanto o movimento de SL diz que é imoral produzir promover software privativo e é um risco inaceitável para o usuário, o movimento de OS reconhece o risco, mas o desmerece, dizendo de forma magnânima que existe espaço para ambos.

Desta relação com o software privativo vem o argumento motivacional para se produzir FOSS. Para o movimento de SL devemos produzir FOSS, porque é nosso dever, porque é a única forma ética de se produzir software. Para o movimento de OS produzimos FOSS para termos o melhor software e reduzirmos custos diluindo o esforço no processo colaborativo.

O movimento de OS sempre se reconhece como "o prático" e "não ideológico" (questionarei em breve). O movimento de SL sempre coloca que não basta ter liberdade de escolha, deve-se escolher a liberdade.

Então fica claro: os dois movimentos falam sobre os mesmos softwares, sobre os mesmos modelos de licenciamento, mas vistos por perspectivas diferentes e promovidos com discursos bem diferentes. Na tentativa de falar sobre os softwares ou sobre esse ecossistema sem tomar partido, cunhou-se o termo "FOSS" (ou "FLOSS", com a mesma intenção). Pela existência do termo não se pode entender que existe um movimento unido. Por mais que uma pessoas possa agir as vezes pelo SL e as vezes pelo OS, seus valores são incompatíveis e as ações estarão quase sempre vinculadas exclusivamente a um dos movimentos. Para bananas e maçãs existe o termo "frutas", mas fora este fato elas não tem mais nada em comum, da produção à textura.

Atitude

Assim como o kernel Linux é um projeto notório dentro do FOSS, também são marcantes os debates entre seus desenvolvedores e as opiniões do seu criador: Linus Torvalds.

Vários foram os motivos que levaram à evolução da GPL para sua terceira versão, e uma das principais foi o caso da Tivoização. Stallman, apoiado por muitos, independente de lados, afirmou que esse processo apesar de não violar a GPLv2, licença usada pelo Linux, removia a segunda liberdade. Torvalds diz que a TiVo tem o direito de restringir o uso de software em produtos produzidos por ela. Infelizmente sim, mas porque o FOSS não deveria colocar alguma dificuldade às tentativas de se restringir o usuário. Sim, o debate é compléxo... Para o SL é óbvio que uma medida deve ser tomada e a GPLv3 é uma resposta. Para o OS isso é apenas uma questão externa ao desenvolvimento e deve ser posta de lado.

DRM envolve o assunto anterior, e é de se esperar que Linus tenha dito: "DRM is Perfectly OK with Linux". Pessoalmente Torvalds é contra a DRM, como não poderia deixar de ser, mas por razões de cunho prático, e não ideológico. O posicionamento amoral não é novo e no debate sobre a posição de Linus foi citada uma fala satirizada de Wernher von Braun: "Once the rockets are up, who cares where they come down? That's not my department." ("Uma vês que os misseis foram lançados, que se importa onde vão cair? Isso não é do meu departamento.") Wernher trabalhava como cientista de foguetes para os nazistas na segunda grande guerra e levado aos EUA pela operação de assimilação tecnológica "paperclip". Divagando: Einstein, por outro lado, culpou-se bastante por ter um papel decisivo no projeto que levou às bombas de Hiroshima e Nagasaki.

É bom deixar claro que os desenvolvedores do Kernel não pensam de forma uniforme (por isso meso os flame-wars). Alan Cox, o segundo homem do Linux, frequentemente antagoniza com a opinião de Linus, mas com menos acidez.

O discurso de Linus nos remete a aquela característica marcante do movimento de OS: "o prático" e "não ideológico". Mas o que significa isso? Praticidade para que fim, com que objetivo? É possível ser "não ideológico"?

Praticidade, quem é você? Declarar-se como prático não indica nenhuma direção, sem conhecer seus objetivos. Mas claro... da forma como costumamos tratar o assunto presumimos o rumo desta praticidade, assim como presumimos muita coisa. Não quer dizer que seja sempre válido o sentido presumido e, mais importante: é válido este sentido presumido?

Praticidade hoje
é individualista
e imediatista.

É "Individualista" porque só se pensa em "como eu ganho?" ou "como essa empresa ganha?" quando se pretende um pensamento prático. Mas se o seu objetivo for melhorar sua cidade ou o mundo? Claro que se pode ter um pensamento prático colocando a necessidade da sociedade na frente. Precisamos lembrar disso para que argumentos que envolvam a sociedade não sejam automaticamente contrapostos com "devemos ser práticos". É também "Imediatista" porque só é prático se o resultado puder ser mensurado a curto tempo. É interessante perceber que quem se opõe a argumentos no futuro (distante, mas nem tanto), se esquece dos investimentos de longo prazo. A não ser que esse "práticos" estejam pensando que os grandes investidores que usam essa prática não tem senso prático.

"Técnica sem ideologia"
e "Ciência neutra"
são irmãs xifópagas.

Ser "não ideológico" significaria ter o poder de tomar decisões sem influência das questões sociais e humanas externas ao problema. Essa crença da técnica livre de ideologia é muito próxima da crença na ciência neutra (são irmãs xifópagas na verdade). Além do que pode ser dito sobre a não neutralidade do processo científico, devemos lembrar também que essa pesquisa ou aplicação técnica iniciou-se com alguma motivação que envolvia nossos valores.

Você pode pensar "mas existem casos onde agimos apenas porque a lógica nos obriga" sim... mas a lógica é apenas uma função matemática que analisa os fatos de acordo com os pessoas dados pelos nossos valores. No caso de um tsunami, construir abrigos, tratar os feridos e reconstruir a cidade são ações óbvias e lógicas. Lógicas mesmo? Nazistas teriam salvado vítimas de tsunami na indonésia? Para eles era melhor que outras etnias deixassem de existir, e o tsunami seria a providência divina. Os utilitaristas poderia apontar inúmeras vantagens econômicas em auxiliar as vítimas do tsunami, mas se for por aí não seria mais vantajoso fazer um ataque na sequência e anexar novas terras a sua nação? Achou é brutal? Isso são seus (nossos) valores em ação. 😉

Mesmo que coloquemos um computador para tomar decisões e executar tarefas, "o que" e "como" acontecerão de acordo com os valores do programador. Quem se exime de avaliar criticamente suas ações está entregando-as a algum outro.

A quem interessa que acreditemos em
decisões e ações "não ideológicas"?

Por fim, não confunda o fato da(s) ideologia(s) dominante(s) (que prega(m) a "não ideologia") não ser(em) nomeada(s), com a possibilidade dela(s) não ser(m) classificável(is) como ideologia(s), tanto quanto as outras nomeadas. Achei muito adequado quando ouvi o professor Pedro Resende chamar a ideologia dominante de "Fundamentalismo de Mercado".

Ignorância, vício e confusão

Não podemos viver sem ação e ação depende de alguma noção, porém não podemos saber de tudo e para completar alguns buracos precisamos da suposição. O problema está em construir prédios de suposição sobre suposição e argumentar com base nestas.

Somos todos ignorantes. Não apenas em um ou outro assunto, mas sobre a maior parte do conhecimento humano. Então quem erra não deve ser agredido, mas o erro não merece tolerância.

E provavelmente por ignorância Matt Asay escreveu em 2014 "Why we need an open-source movement for the web", onde ele clama por um movimento análogo ao OS para a web, sendo que esse é simplesmente um dos braços mas ativos do FOSS como um todo (eu apontaria desde o nascimento do Mozilla, mas é uma suposição 😉). Mas o meu ponto não é esse, o ponto é que quando ele expõe as rasões ele aponta questões que interessam quase que exclusivamente o movimento SL. É gritante que esse artigo sai com 4 anos de atraso basicamente falando do problema do SaaS, discutido por Stallman em "Who does that server really serve?" e por outros sob o mote "Don't SaaS me". Matt chegou a usar o logo da OSI em seu artigo. Seria por ignorância sobre o SL ou vício no OS? A quantos ele levará a confusão?

No Brasil a confusão é invertida. Falamos (quase) sempre SL mas é frequente a argumentação em prol do software privativo como algo complementar, além da fobia a ideologias (nomeadas).

O discurso OS deveria ter sido apenas uma forma de levar o SL para espaços onde o argumento da ética não é ouvido: corporações, porque essas entidades são como psicopatas. Mas como somos estúpidos... internalizamos a idéia de que ética é coisa de conversador ou filosofo, que temos que dar atenção apenas à prática, que o que importa é o resultado (individualista e imediatista). Temos medo de repetir que software proprietário é nocivo à sociedade de imediato e ao indivíduo em longo prazo (quando não de imediato). Porque fomos bem treinados pelos conversadores formados pela OSI e financiados pelas corporações. Compramos idéias que não nos beneficiam porque não queremos conflitar com as vozes que parecem ser maioria (ou mais fortes), não queremos ser satirizados... queremos torcer para o time campeão.


Fonte: http://softwarelivre.org/aurium/blog/software-livre-e-codigo-aberto--onde-esta-a-diferenca