Manifesto dos Marinheiros/Fundação Biblioteca Nacional |
“Um herói do povo”, essas são as palavras de Adalberto Cândido, 85 anos, filho caçula do marinheiro João Cândido, homem que ficou conhecido como almirante negro ao liderar uma revolta de marujos subalternos contra o uso da chibata, em 1910, 2 décadas depois da abolição da escravidão no Brasil.
A frase foi publicada na imprensa brasileira na semana passada, em resposta à carta do almirante Marcos Sampaio Olsen que pediu aos parlamentares brasileiros que não aprovem o projeto de lei de autoria do deputado Lindbergh Farias (PT-SP) e apresentado à comissão da cultura por Benedita da Silva (PT-RJ), inscrevendo o nome do ex-marinheiro no livro de heróis da pátria.
Na missiva, o comandante chama os marujos de “abjetos marinheiros” que quebraram a hierarquia na Marinha para exigir “vantagens corporativas e ilegítimas”.
Os marujos, assim como os oficiais rebeldes na Revolta da Armada de 1893, tomaram o poder dos principais navios de guerra e apontaram as armas contra a sede do poder federal para exigir o fim dos castigos corporais, melhores condições de trabalho e salários, substituição dos chefes autoritários. Diziam ser “cidadãos brasileiros e republicanos” e não “escravos de oficiais”, em seus diferentes comunicados.
Naquele tempo, a revolta sacudiu a República, ao revelar as condições indignas dos praças da Marinha, elogiando sua boa conduta. Em maioria negros, pardos, oriundos do Norte e do Nordeste do Brasil, os marinheiros alcançaram simpatia de grande parte da imprensa nacional e internacional. Foram defendidos por Ruy Barbosa no Senado, anistiados, mas depois traídos e muitos expulsos da Marinha.
Houve uma segunda revolta, envolvendo fuzileiros navais, sem a participação de João Cândido e seus companheiros, que acreditavam na anistia e protegeram os navios de guerra. Mas foram presos na noite de Natal. Tentaram matar João Cândido de desidratação nas celas da Ilha das Cobras, onde a maioria dos presos sucumbiu, enquanto centenas de homens foram enviados para trabalhos forçados no Acre, a chamada “Sibéria Brasileira”.
João Cândido e 9 sobreviventes ficaram presos por dois anos, sendo absolvidos pelo Tribunal de Guerra em 1912, como demonstro no meu livro João Cândido e os navegantes negros: a revolta da chibata e a segunda abolição (Malê).
Nesse trabalho, que é uma versão atualizada da minha tese de doutorado e de mais de 10 anos de pesquisa, mostro também como foi a vida de João Cândido depois da revolta. Assim como os autores que tentaram escrever sobre o tema, ele foi perseguido, impedido de trabalhar também na Marinha mercante, passando grande parte da sua vida na miséria, com filhos para criar em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.
O poeta surrealista francês Benjamin Péret tentou escrever sobre o tema, mas o manuscrito do seu livro, que se chamaria O Potemkim brasileiro, em analogia com a importante sublevação dos marinheiros russos de 1905, foi destruído pela polícia política de Vargas e o autor foi expulso do Brasil na década de 1930.
João Cândido, no mesmo período, foi salvo da morte por jornalistas, que lhe organizaram campanhas de doações e conseguiram que ele fosse internado no hospital para tratar da saúde. O marinheiro, sem conseguir emprego formal, nem auxílio da Marinha, diferente dos oficiais rebeldes de 1893 que retomaram seus graus e vantagens na Armada e fora dela, tornou-se vendedor de peixe no mercado da praça XV até quase o fim da vida.
No final dos anos 1950, o jornalista Edmar Morel foi atrás do marujo, reconhecido pelo povo nas ruas do Rio de Janeiro, mas que ainda não tinha um “lugar na história”. O livro A revolta da chibata tornou-se um best seller e batizou o levante. Para Morel, João Cândido era um “herói da ralé”. No meio da Marinha, os historiadores navais escreviam textos chamando os marujos de “feras embarcadas”, cuja história deveria constar nos “anais da criminologia”.
João Cândido foi patrono dos marinheiros que formaram a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB) no início dos anos 1960, no contexto do “intervalo democrático” e das demandas por direitos sociais, distribuição de terras, redução da pobreza, reflexão política e cultural que marcam os anos antes do golpe civil e militar de 1964.
Os jovens marujos da AMFNB fazem vaquinhas para ajudar João Cândido, um homem de mais de 80 anos, mas é o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que finalmente concede uma aposentadoria para o marujo que nasceu em 1880 no Estado, filho de escravizados. É com essa pensão, bastante desvalorizada com o tempo, que o marujo vive até 1969, quando morre aos 89 anos.
Quase 10 anos depois, João Bosco e Aldir Blanc imortalizam João Cândido no samba censurado pela ditadura, reconhecendo que o “navegante negro” tinha por “monumento as pedras pisadas do cais”. Belíssima letra que resume a falta de reconhecimento da história oficial brasileira com a memória dos “heróis do povo”.
A carta do comandante Olsen, 114 anos depois da revolta, provocou numerosas reações de intelectuais, jornalistas, representantes dos movimentos negros e sociais. Diante disso, cabe perguntar: qual teria sido o destino do marujo se não tivesse sofrido perseguição das Forças Armadas por toda vida e até depois da morte?
Tal carta, por si só, já revela um grande problema. Em que medida é legítimo num país democrático as autoridades das Forças Armadas intervirem em decisões políticas? O conteúdo do documento é ainda mais grave, revela os problemas mais sérios do Brasil: o autoritarismo de classe e a herança escravista.
Depois de novembro de 1910, nenhum marinheiro mais foi chibateado na Marinha brasileira e as condições de trabalho e formação também melhoraram. O Brasil foi o último país do atlântico a abolir a escravidão e foi também o último país a abolir os castigos corporais na Marinha de guerra.
Por esse feito, João Cândido pode ser reconhecido à altura de Zumbi dos Palmares e outros. Tão importante quanto isso é ver que as reações à carta do oficial da Armada trouxe à tona um debate sobre o papel das Forças Armadas no Brasil, discussão que merece ser feita no aniversário de 70 anos do Golpe Militar. Até depois de morto, João Cândido ainda é capaz de mexer com as bases arcaicas da República brasileira.
* Silvia Capanema é professora adjunta (Maîtresse de conférences) na Universidade de Paris 13- Sorbonne Paris Nord desde 2010 e doutora em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). É autora de "João Cândido e os navegantes negros: a revolta da chibata e a segunda abolição".
A frase foi publicada na imprensa brasileira na semana passada, em resposta à carta do almirante Marcos Sampaio Olsen que pediu aos parlamentares brasileiros que não aprovem o projeto de lei de autoria do deputado Lindbergh Farias (PT-SP) e apresentado à comissão da cultura por Benedita da Silva (PT-RJ), inscrevendo o nome do ex-marinheiro no livro de heróis da pátria.
Na missiva, o comandante chama os marujos de “abjetos marinheiros” que quebraram a hierarquia na Marinha para exigir “vantagens corporativas e ilegítimas”.
Os marujos, assim como os oficiais rebeldes na Revolta da Armada de 1893, tomaram o poder dos principais navios de guerra e apontaram as armas contra a sede do poder federal para exigir o fim dos castigos corporais, melhores condições de trabalho e salários, substituição dos chefes autoritários. Diziam ser “cidadãos brasileiros e republicanos” e não “escravos de oficiais”, em seus diferentes comunicados.
Naquele tempo, a revolta sacudiu a República, ao revelar as condições indignas dos praças da Marinha, elogiando sua boa conduta. Em maioria negros, pardos, oriundos do Norte e do Nordeste do Brasil, os marinheiros alcançaram simpatia de grande parte da imprensa nacional e internacional. Foram defendidos por Ruy Barbosa no Senado, anistiados, mas depois traídos e muitos expulsos da Marinha.
Houve uma segunda revolta, envolvendo fuzileiros navais, sem a participação de João Cândido e seus companheiros, que acreditavam na anistia e protegeram os navios de guerra. Mas foram presos na noite de Natal. Tentaram matar João Cândido de desidratação nas celas da Ilha das Cobras, onde a maioria dos presos sucumbiu, enquanto centenas de homens foram enviados para trabalhos forçados no Acre, a chamada “Sibéria Brasileira”.
João Cândido e 9 sobreviventes ficaram presos por dois anos, sendo absolvidos pelo Tribunal de Guerra em 1912, como demonstro no meu livro João Cândido e os navegantes negros: a revolta da chibata e a segunda abolição (Malê).
Nesse trabalho, que é uma versão atualizada da minha tese de doutorado e de mais de 10 anos de pesquisa, mostro também como foi a vida de João Cândido depois da revolta. Assim como os autores que tentaram escrever sobre o tema, ele foi perseguido, impedido de trabalhar também na Marinha mercante, passando grande parte da sua vida na miséria, com filhos para criar em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.
O poeta surrealista francês Benjamin Péret tentou escrever sobre o tema, mas o manuscrito do seu livro, que se chamaria O Potemkim brasileiro, em analogia com a importante sublevação dos marinheiros russos de 1905, foi destruído pela polícia política de Vargas e o autor foi expulso do Brasil na década de 1930.
João Cândido, no mesmo período, foi salvo da morte por jornalistas, que lhe organizaram campanhas de doações e conseguiram que ele fosse internado no hospital para tratar da saúde. O marinheiro, sem conseguir emprego formal, nem auxílio da Marinha, diferente dos oficiais rebeldes de 1893 que retomaram seus graus e vantagens na Armada e fora dela, tornou-se vendedor de peixe no mercado da praça XV até quase o fim da vida.
No final dos anos 1950, o jornalista Edmar Morel foi atrás do marujo, reconhecido pelo povo nas ruas do Rio de Janeiro, mas que ainda não tinha um “lugar na história”. O livro A revolta da chibata tornou-se um best seller e batizou o levante. Para Morel, João Cândido era um “herói da ralé”. No meio da Marinha, os historiadores navais escreviam textos chamando os marujos de “feras embarcadas”, cuja história deveria constar nos “anais da criminologia”.
João Cândido foi patrono dos marinheiros que formaram a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB) no início dos anos 1960, no contexto do “intervalo democrático” e das demandas por direitos sociais, distribuição de terras, redução da pobreza, reflexão política e cultural que marcam os anos antes do golpe civil e militar de 1964.
Os jovens marujos da AMFNB fazem vaquinhas para ajudar João Cândido, um homem de mais de 80 anos, mas é o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que finalmente concede uma aposentadoria para o marujo que nasceu em 1880 no Estado, filho de escravizados. É com essa pensão, bastante desvalorizada com o tempo, que o marujo vive até 1969, quando morre aos 89 anos.
Quase 10 anos depois, João Bosco e Aldir Blanc imortalizam João Cândido no samba censurado pela ditadura, reconhecendo que o “navegante negro” tinha por “monumento as pedras pisadas do cais”. Belíssima letra que resume a falta de reconhecimento da história oficial brasileira com a memória dos “heróis do povo”.
A carta do comandante Olsen, 114 anos depois da revolta, provocou numerosas reações de intelectuais, jornalistas, representantes dos movimentos negros e sociais. Diante disso, cabe perguntar: qual teria sido o destino do marujo se não tivesse sofrido perseguição das Forças Armadas por toda vida e até depois da morte?
Tal carta, por si só, já revela um grande problema. Em que medida é legítimo num país democrático as autoridades das Forças Armadas intervirem em decisões políticas? O conteúdo do documento é ainda mais grave, revela os problemas mais sérios do Brasil: o autoritarismo de classe e a herança escravista.
Depois de novembro de 1910, nenhum marinheiro mais foi chibateado na Marinha brasileira e as condições de trabalho e formação também melhoraram. O Brasil foi o último país do atlântico a abolir a escravidão e foi também o último país a abolir os castigos corporais na Marinha de guerra.
Por esse feito, João Cândido pode ser reconhecido à altura de Zumbi dos Palmares e outros. Tão importante quanto isso é ver que as reações à carta do oficial da Armada trouxe à tona um debate sobre o papel das Forças Armadas no Brasil, discussão que merece ser feita no aniversário de 70 anos do Golpe Militar. Até depois de morto, João Cândido ainda é capaz de mexer com as bases arcaicas da República brasileira.
* Silvia Capanema é professora adjunta (Maîtresse de conférences) na Universidade de Paris 13- Sorbonne Paris Nord desde 2010 e doutora em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). É autora de "João Cândido e os navegantes negros: a revolta da chibata e a segunda abolição".