“O mundo caminha para a guerra generalizada e o Brasil não será poupado. Os generais não podem contraditar a política externa brasileira”. (Manuel Domingos Neto, autor de O que fazer com o militar: anotações para uma nova defesa nacional. Gabinete de Leitura, 2023)
Os anseios por uma política externa própria, então simplesmente voltada a proteger da preeminência europeia (França e destacadamente o império britânico) o país ainda em formação, remontam ao Segundo Império, e o ponto de referência é D. Pedro defendendo, nos idos de 1862, a “necessidade de uma política própria”.
Mas, já nos pródromos da independência, o espírito de autodeterminação aparece em correspondência de José Bonifácio, isso em julho de 1822. Dirigindo-se ao cônsul estadunidense, o Patriarca diria: “(...) o Brasil é uma Nação e como tal ocupará seu posto sem ter que esperar ou solicitar o reconhecimento das demais Potências. A elas se enviarão agentes diplomáticos ou Ministros. As que nos recebam nessa base e nos tratem de Nação a Nação continuarão sendo admitidas nos nossos portos e favorecidas em seu comércio. As que se neguem serão excluídas dele”.
O caráter geral da política nos dois impérios será a autodefesa. O primeiro, quando ainda ardiam as chagas abertas pela prepotência inglesa, procurava escapar ao cerco das potências coloniais europeias e, ao mesmo tempo, preservar a integridade territorial (a grande obra da Regência), a unidade política e, por óbvio, a Monarquia. No segundo, preservar a unidade política. Demoraria, pois, a aliança com os EUA republicanos, que Joaquim Nabuco (A intervenção estrangeira durante a revolta de 1893, editado em 1896) reclamava e Rio Branco levará a cabo em sua longa carreira de dez anos como chanceler. O futuro embaixador em Washington (1905-1910) enxergava os EUA como modelo a ser seguido e defendia uma política de alinhamento estratégico (a partir da Guerra Fria, veremos, os militares passaram a entender “alinhamento estratégico” como sinônimo de “alinhamento automático”). Reinava naqueles anos a Doutrina Monroe, e, na sequência das preocupações do século anterior, procurava-se, mais uma vez, fugir da coerção europeia. Desta feita, o escudo seriam os EUA, como antes, no processo da independência, havia sido o império britânico, com os custos conhecidos.
A partir daí conta-se a crescente influência do Grande Irmão do Norte, relegando a segundo plano, primeiramente, os resquícios da influência francesa, para, enfim, substituir o império inglês como força dominante, política e econômica. As relações estreitas entre economias e forças armadas assimétricas, todavia, implicariam a dependência política do lado mais fraco.
É da regra.
Essa é a primeira fase da república agrária, que se instalara sob o consórcio de paulistas e mineiros. Não podia haver contradições entre as duas economias, já então tão díspares, e dependíamos das importações norte-americanas de café, responsáveis por cerca de 70% da balança comercial brasileira. Alguma contradição surgiria no pós-1930, mais acentuadamente no Estado Novo, quando o Brasil inicia seu retardado processo de modernização, no esforço por amenizar as penas de uma inserção atrasada no capitalismo, e então cogita de projetos de infraestrutura e industrialização.
Surgem então no cenário comercial internacional novos atores, econômicos e militares, como Alemanha e Itália. É desse tempo a contundência da II Guerra Mundial e a presença brasileira no conflito, mediada pelas negociações de Getúlio Vargas com Franklin Roosevelt, de que resultou o financiamento de Volta Redonda, e, com a siderurgia, as possibilidades – enfim! – de alguma industrialização. O quadro muda com a queda do regime do Estado Novo, em 1945, inevitável após a politização de nossas tropas, formadas, profissional e ideologicamente, pelos valores e interesses estratégicos dos EUA.
A Força Expedicionária Brasileira é treinada, equipada e transportada pelos EUA, que ainda lhe forneceram armamentos, uniformes e veículos, embalagens das táticas e doutrinas militares. Em 1946, em plena Guerra Fria (cujos princípios e objetivos norteariam a política ocidental até a debacle da URSS, que se prorroga hoje por outros meios), e para atender às estratégias da grande potência, é fundada a Escola das Américas, dedicada à formação de oficiais latino-americanos.
Data desse entrecho a Doutrina de Segurança Nacional, formulada pelo Pentágono, mediante a qual as forças armadas do continente, nelas as do Estado brasileiro, se despem das missões de segurança nacional para se dedicarem à repressão interna. Em 1947 o Brasil adere ao Tratado de Assistência Recíproca (TAR), pacto de defesa mútua do continente a que se deve o virtual controle dos EUA sobre as forças armadas dos países aderentes. Talvez possamos dizer que o fecho dessa política de verdadeiro garrote político-estratégico chega em 1949, com a criação da Escola Superior de Guerra (ESG), inspirada no National War College, com o declarado objetivo de formar civis e militares em temas de defesa. Seu principal instrutor foi o general Walter Bedell Smith, diretor da CIA. O primeiro comandante foi o general Cordeiro de Farias, sucedido pelo general Odylio Denys.
A política externa independente, que vinha dos presidentes Jânio Quadros e João Goulart, formulada por Afonso Arinos e San Tiago Dantas, é jogada na lata do lixo pelo regime militar, e transita da “interdependência”, proclamada pelo primeiro ditador, marechal Castello Branco (discurso no Itamaraty), para a subserviência mais abjeta a que se presta o embaixador enviado a Washington (julho de 1964), o general Juraci Magalhães, a quem a história deve esta pérola de desfaçatez: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil” (v. jornais da época e Nelson Werneck Sodré). O general-embaixador permaneceria no cargo até 1965, quando, certamente num reconhecimento dos bons serviços prestados, é chamado de volta ao país e nomeado ministro da Relações Exteriores, cargo que exerce até 1966.
História e biografias conhecidas que ajudam a desenhar o pano de fundo dos dias presentes.
Como lecionava o Conselheiro Acácio, as consequências viriam depois, e entre elas se contam a resistência larvar à autonomia nacional. Daí o combate (elemento unificador da direita) a qualquer projeto de política externa independente, vista como puro antiamericanismo, ou urdidura de um comunismo que só se preserva na mente de espertalhões e golpistas. Essa falsa compreensão da realidade foi um dos estratagemas da direita para unir a cúpula da caserna no golpe contra o presidente João Goulart. Por aí também se explica o golpe de 2016 e o apoio de militares de alto coturno à aventura protofascista liderada pelo capitão Bolsonaro, como também a intentona de janeiro de 2023. E explica os dias de hoje, quando José Múcio Monteiro Filho pode ser ministro da defesa contestando a política externa do presidente Lula – que se orgulha, com todo o direito, de haver retomado, desde seu primeiro governo, a tradição progressista de políticas externas independentes, revigorada agora, neste terceiro mandato.
O ainda ministro faz-se porta-voz do atraso secular que nos governa, a aliança de uma burguesia financeira vinculada ao capital internacional, de um lado, de outro a dependência ideológica das cúpulas militares, que pensam o país a partir da visão que lhes transmite o mainstream, que fala a partir de Washington. O que se pode chamar de cisma viceja na ausência do debate político, a que se nega o governo de origem popular, talvez pela dificuldade de apresentar, com cabeça, tronco e membros, seu projeto político. Afinal, que país estamos empenhados em construir? O mínimo de discussão se encerra nos temas ditados pelo grande capital.
Esta é uma das falhas que atingem o cerne da ainda sobrevivente política externa independente, ensejando entrevistas de encomenda como a do atual ministro da defesa: a recusa de diálogo com a sociedade e a ausência de discurso articulado de seu principal responsável e condutor, o presidente da República. As entrevistas e declarações não têm contribuído para deixar claro nosso projeto.
O cisma aberto pelo ministro da defesa, imprudente no intuito de jogar supostos interesses de segurança nacional contra uma política externa provada na defesa dos interesses do país – açulando o chorume dos porões da ditadura, em momento dos mais graves do país e do mundo, em meio a uma guerra sem definição de fronteiras e desdobramentos –, carece da palavra do real responsável pela política externa do país, o presidente da república, democrata e pacifista sem jaça. A declarada amizade do presidente com o ministro não é suficiente quando se trata de pôr às claras uma questão de Estado, embora sugira desagradável abono às criticas injustificadas, que visam simplesmente a apresentar a política militar --que não é necessariamente a política de Defesa de que carecemos --, como norteadora de nossa política externa. Consabidamente, a ordem é a inversa, e não é preciso ler Maquiavel para sabê-lo.
A história é movimento e está sempre a pregar sustos àqueles que descuidam do processo social.
Em 1966, nos primeiros anos da última ditadura, e a ela se referindo, escrevia José Honório Rodrigues, historiador, e um dos principais pensadores brasileiros da política externa independente, cujos fundamentos doutrinários ajudara a construir, ao lado de Afonso Arinos, San Tiago Dantas, Celso Furtado e Hélio Jaguaribe (a que se juntariam, na boa era lulista, Celso Amorim, Marco Aurélio Garcia e Samuel Pinheiro Guimarães):
“A atual e catastrófica desintegração do sistema democrático brasileiro e das liberdades e garantias individuais resulta da vitalidade do militarismo. É o fruto da infiltração de ideias difundidas pelo Pentágono na elite militar dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. As ideias de segurança em primeiro lugar, da grande subversão, da agressão interna, transformaram a consciência de certos grupos militares”.
Texto de lamentável atualidade, passados 58 anos de lutas e vitórias frustradas.
*****
A Faria Lima tem razão? – Após o pronunciamento das urnas, no 1º turno das eleições municipais, pondo a nu, para além dos números assustadores, o fôlego e o avanço das direitas brasileiras (a protofascista e a amiga da traficância), uma boa gama de próceres petistas veio a público. Às análises seguiram-se as cobranças de “ajuste de rota”. Em comum, o reconhecimento do “desempenho decepcionante” da maior legenda da socialdemocracia brasileira, e o diagnóstico da necessidade de uma reconexão do Partido – como da esquerda em geral – com a juventude, com os trabalhadores, com a periferia dos grandes centros. A resposta veio rápida. Aparentemente estimulado por seu ministro da fazenda, Lula recebeu na última quarta-feira (16/10) os maiores banqueiros do país, em encontro inédito neste mandato, para ouvir-lhes as queixas e cobranças. Na mesma data os jornalões expunham um esboço do pacote de medidas que a dupla Tebet-Haddad deve propor ao presidente, passado o 2º turno. Pelo que foi dado a conhecer, a pauta deverá debitar à conta dos mais pobres (até mesmo dos que dependem do Benefício de Prestação Continuada!) o preço do ajuste imposto pelo “arcabouço fiscal”, elevado à condição de dogma sagrado pelo mercado financeiro e o neoliberalismo anacrônico. Especula-se a probabilidade de ataques aos reajustes do salário mínimo, à previdência social e, até mesmo, de uma tunga na multa do FGTS. Em entrevista à jornalista Mônica Bergamo (FSP), o ministro Haddad, antes mesmo do encontro do presidente com a nata da Faria Lima, expressara seu incômodo com a elevação dos gastos sociais, quando reiterou seu compromisso com a “austeridade” exigida pela classe dominante.
É, claro, trata-se de uma estratégia possível, embora muito nos lembre as lições da escola de Chicago. Resta saber o que diremos amanhã, se a economia não responder e a população, empobrecida, não entender nossa reviravolta. Diremos, então, que estávamos “do lado certo da História”? Que essa era a única via para conter o avanço do neofascismo?
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
Os anseios por uma política externa própria, então simplesmente voltada a proteger da preeminência europeia (França e destacadamente o império britânico) o país ainda em formação, remontam ao Segundo Império, e o ponto de referência é D. Pedro defendendo, nos idos de 1862, a “necessidade de uma política própria”.
Mas, já nos pródromos da independência, o espírito de autodeterminação aparece em correspondência de José Bonifácio, isso em julho de 1822. Dirigindo-se ao cônsul estadunidense, o Patriarca diria: “(...) o Brasil é uma Nação e como tal ocupará seu posto sem ter que esperar ou solicitar o reconhecimento das demais Potências. A elas se enviarão agentes diplomáticos ou Ministros. As que nos recebam nessa base e nos tratem de Nação a Nação continuarão sendo admitidas nos nossos portos e favorecidas em seu comércio. As que se neguem serão excluídas dele”.
O caráter geral da política nos dois impérios será a autodefesa. O primeiro, quando ainda ardiam as chagas abertas pela prepotência inglesa, procurava escapar ao cerco das potências coloniais europeias e, ao mesmo tempo, preservar a integridade territorial (a grande obra da Regência), a unidade política e, por óbvio, a Monarquia. No segundo, preservar a unidade política. Demoraria, pois, a aliança com os EUA republicanos, que Joaquim Nabuco (A intervenção estrangeira durante a revolta de 1893, editado em 1896) reclamava e Rio Branco levará a cabo em sua longa carreira de dez anos como chanceler. O futuro embaixador em Washington (1905-1910) enxergava os EUA como modelo a ser seguido e defendia uma política de alinhamento estratégico (a partir da Guerra Fria, veremos, os militares passaram a entender “alinhamento estratégico” como sinônimo de “alinhamento automático”). Reinava naqueles anos a Doutrina Monroe, e, na sequência das preocupações do século anterior, procurava-se, mais uma vez, fugir da coerção europeia. Desta feita, o escudo seriam os EUA, como antes, no processo da independência, havia sido o império britânico, com os custos conhecidos.
A partir daí conta-se a crescente influência do Grande Irmão do Norte, relegando a segundo plano, primeiramente, os resquícios da influência francesa, para, enfim, substituir o império inglês como força dominante, política e econômica. As relações estreitas entre economias e forças armadas assimétricas, todavia, implicariam a dependência política do lado mais fraco.
É da regra.
Essa é a primeira fase da república agrária, que se instalara sob o consórcio de paulistas e mineiros. Não podia haver contradições entre as duas economias, já então tão díspares, e dependíamos das importações norte-americanas de café, responsáveis por cerca de 70% da balança comercial brasileira. Alguma contradição surgiria no pós-1930, mais acentuadamente no Estado Novo, quando o Brasil inicia seu retardado processo de modernização, no esforço por amenizar as penas de uma inserção atrasada no capitalismo, e então cogita de projetos de infraestrutura e industrialização.
Surgem então no cenário comercial internacional novos atores, econômicos e militares, como Alemanha e Itália. É desse tempo a contundência da II Guerra Mundial e a presença brasileira no conflito, mediada pelas negociações de Getúlio Vargas com Franklin Roosevelt, de que resultou o financiamento de Volta Redonda, e, com a siderurgia, as possibilidades – enfim! – de alguma industrialização. O quadro muda com a queda do regime do Estado Novo, em 1945, inevitável após a politização de nossas tropas, formadas, profissional e ideologicamente, pelos valores e interesses estratégicos dos EUA.
A Força Expedicionária Brasileira é treinada, equipada e transportada pelos EUA, que ainda lhe forneceram armamentos, uniformes e veículos, embalagens das táticas e doutrinas militares. Em 1946, em plena Guerra Fria (cujos princípios e objetivos norteariam a política ocidental até a debacle da URSS, que se prorroga hoje por outros meios), e para atender às estratégias da grande potência, é fundada a Escola das Américas, dedicada à formação de oficiais latino-americanos.
Data desse entrecho a Doutrina de Segurança Nacional, formulada pelo Pentágono, mediante a qual as forças armadas do continente, nelas as do Estado brasileiro, se despem das missões de segurança nacional para se dedicarem à repressão interna. Em 1947 o Brasil adere ao Tratado de Assistência Recíproca (TAR), pacto de defesa mútua do continente a que se deve o virtual controle dos EUA sobre as forças armadas dos países aderentes. Talvez possamos dizer que o fecho dessa política de verdadeiro garrote político-estratégico chega em 1949, com a criação da Escola Superior de Guerra (ESG), inspirada no National War College, com o declarado objetivo de formar civis e militares em temas de defesa. Seu principal instrutor foi o general Walter Bedell Smith, diretor da CIA. O primeiro comandante foi o general Cordeiro de Farias, sucedido pelo general Odylio Denys.
A política externa independente, que vinha dos presidentes Jânio Quadros e João Goulart, formulada por Afonso Arinos e San Tiago Dantas, é jogada na lata do lixo pelo regime militar, e transita da “interdependência”, proclamada pelo primeiro ditador, marechal Castello Branco (discurso no Itamaraty), para a subserviência mais abjeta a que se presta o embaixador enviado a Washington (julho de 1964), o general Juraci Magalhães, a quem a história deve esta pérola de desfaçatez: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil” (v. jornais da época e Nelson Werneck Sodré). O general-embaixador permaneceria no cargo até 1965, quando, certamente num reconhecimento dos bons serviços prestados, é chamado de volta ao país e nomeado ministro da Relações Exteriores, cargo que exerce até 1966.
História e biografias conhecidas que ajudam a desenhar o pano de fundo dos dias presentes.
Como lecionava o Conselheiro Acácio, as consequências viriam depois, e entre elas se contam a resistência larvar à autonomia nacional. Daí o combate (elemento unificador da direita) a qualquer projeto de política externa independente, vista como puro antiamericanismo, ou urdidura de um comunismo que só se preserva na mente de espertalhões e golpistas. Essa falsa compreensão da realidade foi um dos estratagemas da direita para unir a cúpula da caserna no golpe contra o presidente João Goulart. Por aí também se explica o golpe de 2016 e o apoio de militares de alto coturno à aventura protofascista liderada pelo capitão Bolsonaro, como também a intentona de janeiro de 2023. E explica os dias de hoje, quando José Múcio Monteiro Filho pode ser ministro da defesa contestando a política externa do presidente Lula – que se orgulha, com todo o direito, de haver retomado, desde seu primeiro governo, a tradição progressista de políticas externas independentes, revigorada agora, neste terceiro mandato.
O ainda ministro faz-se porta-voz do atraso secular que nos governa, a aliança de uma burguesia financeira vinculada ao capital internacional, de um lado, de outro a dependência ideológica das cúpulas militares, que pensam o país a partir da visão que lhes transmite o mainstream, que fala a partir de Washington. O que se pode chamar de cisma viceja na ausência do debate político, a que se nega o governo de origem popular, talvez pela dificuldade de apresentar, com cabeça, tronco e membros, seu projeto político. Afinal, que país estamos empenhados em construir? O mínimo de discussão se encerra nos temas ditados pelo grande capital.
Esta é uma das falhas que atingem o cerne da ainda sobrevivente política externa independente, ensejando entrevistas de encomenda como a do atual ministro da defesa: a recusa de diálogo com a sociedade e a ausência de discurso articulado de seu principal responsável e condutor, o presidente da República. As entrevistas e declarações não têm contribuído para deixar claro nosso projeto.
O cisma aberto pelo ministro da defesa, imprudente no intuito de jogar supostos interesses de segurança nacional contra uma política externa provada na defesa dos interesses do país – açulando o chorume dos porões da ditadura, em momento dos mais graves do país e do mundo, em meio a uma guerra sem definição de fronteiras e desdobramentos –, carece da palavra do real responsável pela política externa do país, o presidente da república, democrata e pacifista sem jaça. A declarada amizade do presidente com o ministro não é suficiente quando se trata de pôr às claras uma questão de Estado, embora sugira desagradável abono às criticas injustificadas, que visam simplesmente a apresentar a política militar --que não é necessariamente a política de Defesa de que carecemos --, como norteadora de nossa política externa. Consabidamente, a ordem é a inversa, e não é preciso ler Maquiavel para sabê-lo.
A história é movimento e está sempre a pregar sustos àqueles que descuidam do processo social.
Em 1966, nos primeiros anos da última ditadura, e a ela se referindo, escrevia José Honório Rodrigues, historiador, e um dos principais pensadores brasileiros da política externa independente, cujos fundamentos doutrinários ajudara a construir, ao lado de Afonso Arinos, San Tiago Dantas, Celso Furtado e Hélio Jaguaribe (a que se juntariam, na boa era lulista, Celso Amorim, Marco Aurélio Garcia e Samuel Pinheiro Guimarães):
“A atual e catastrófica desintegração do sistema democrático brasileiro e das liberdades e garantias individuais resulta da vitalidade do militarismo. É o fruto da infiltração de ideias difundidas pelo Pentágono na elite militar dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. As ideias de segurança em primeiro lugar, da grande subversão, da agressão interna, transformaram a consciência de certos grupos militares”.
Texto de lamentável atualidade, passados 58 anos de lutas e vitórias frustradas.
*****
A Faria Lima tem razão? – Após o pronunciamento das urnas, no 1º turno das eleições municipais, pondo a nu, para além dos números assustadores, o fôlego e o avanço das direitas brasileiras (a protofascista e a amiga da traficância), uma boa gama de próceres petistas veio a público. Às análises seguiram-se as cobranças de “ajuste de rota”. Em comum, o reconhecimento do “desempenho decepcionante” da maior legenda da socialdemocracia brasileira, e o diagnóstico da necessidade de uma reconexão do Partido – como da esquerda em geral – com a juventude, com os trabalhadores, com a periferia dos grandes centros. A resposta veio rápida. Aparentemente estimulado por seu ministro da fazenda, Lula recebeu na última quarta-feira (16/10) os maiores banqueiros do país, em encontro inédito neste mandato, para ouvir-lhes as queixas e cobranças. Na mesma data os jornalões expunham um esboço do pacote de medidas que a dupla Tebet-Haddad deve propor ao presidente, passado o 2º turno. Pelo que foi dado a conhecer, a pauta deverá debitar à conta dos mais pobres (até mesmo dos que dependem do Benefício de Prestação Continuada!) o preço do ajuste imposto pelo “arcabouço fiscal”, elevado à condição de dogma sagrado pelo mercado financeiro e o neoliberalismo anacrônico. Especula-se a probabilidade de ataques aos reajustes do salário mínimo, à previdência social e, até mesmo, de uma tunga na multa do FGTS. Em entrevista à jornalista Mônica Bergamo (FSP), o ministro Haddad, antes mesmo do encontro do presidente com a nata da Faria Lima, expressara seu incômodo com a elevação dos gastos sociais, quando reiterou seu compromisso com a “austeridade” exigida pela classe dominante.
É, claro, trata-se de uma estratégia possível, embora muito nos lembre as lições da escola de Chicago. Resta saber o que diremos amanhã, se a economia não responder e a população, empobrecida, não entender nossa reviravolta. Diremos, então, que estávamos “do lado certo da História”? Que essa era a única via para conter o avanço do neofascismo?
* Com a colaboração de Pedro Amaral.