Foto: Ricardo Stuckert |
A professora Maria da Conceição Tavares vem sendo muito justamente homenageada e lembrada ao longo dos últimos dias. O seu falecimento recente operou como estímulo para que um número impressionante de colegas, alunos, ex-alunos, companheiros, professores, pesquisadores, dirigentes políticos e instituições de todos os tipos rendessem uma série de homenagens póstumas à grande mestra.
Ela havia completado 94 anos em abril, cumprindo uma trajetória maravilhosa ao longo de sua vida. Nascida em Portugal, fugiu da ditadura salazarista e foi acolhida em 1954 no Brasil, chegando em nossas terras bem na época de ouro do desenvolvimentismo. Desde o início se encantou pelo País e por aqui encontrou as oportunidades de levar em frente seus projetos de uma sociedade mais justa e igualitária. Tornou-se uma incansável estudiosa e pesquisadora da economia política, oferecendo sua colaboração também na formulação e implementação de políticas públicas. Trabalhou no BNDES e na CEPAL, tendo participado inclusive da equipe que concebeu o Plano de Metas do Presidente Juscelino Kubitscheck.
No entanto, todo o seu entusiasmo com a primeira década no Brasil terminou por ser interrompido pelo golpe militar de 1964 e pela implantação da ditadura que se instalou até meados dos anos 1980. Mas Conceição não se deixou abater por mais essa dificuldade política. Continuou seus estudos, aprofundou seus contatos com o mundo acadêmico e tornou-se uma referência para todas e todos que buscassem respostas para as angústias a respeito dos dramas representados pelas opções de política econômica adotadas a partir de então. Ela exerceu um papel relevante na formação de várias gerações de economistas no Brasil e conseguiu manter uma atuação fundamental na interface entre a economia e o mundo político.
Coerência na defesa do desenvolvimentismo
A professora colaborou para a elaboração dos programas do antigo MDB, partido da oposição durante o período militar. Mais à frente se aproximou do Partido dos Trabalhadores (PT), tendo sido eleita para o mandato de deputada federal entre 1995 e 1999 pelo estado do Rio de Janeiro. Mas o fato é que Conceição consolidou-se como uma das principais vozes do campo progressista e desenvolvimentista no que se refere à economia política. Ela sempre foi muito autêntica em suas opiniões e manifestações, jamais fazendo concessões de princípio quando se tratava de discutir medidas, projetos e programas econômicos. Ela manteve ao longo de sua vida uma coerência invejável com suas posições, postura essa que a tornava admirada por quase todo mundo, ainda que isso incomodasse muita gente que se permitia flexibilizações para agradar ao mercado ou a setores do próprio capital.
Sua militância por um projeto de esquerda para o Brasil encontrou na vitória de Lula nas eleições presidenciais em 2002 uma esperança de mudança efetiva nos rumos da Nação que ela abraçara desde sua saída da terra natal. No entanto, assim como veio a ocorrer com muitas pessoas e grupos que haviam se lançado com toda a energia para a transformação necessária, Conceição se frustrou com os rumos dados logo no início do primeiro mandato, ao tomar conhecimento da indicação de Antonio Palocci para o Ministério da Fazenda.
Conhecida por sua contundência verbal e sua coerência de pensamento, a mestra não teve papas na língua para se referir aos caminhos adotados pelo ex-prefeito de Ribeirão Preto para a economia. Afinal, Palocci se cercou de auxiliares hiper conservadores no diagnóstico econômico e passou a levar em frente um ajuste fiscal de natureza ortodoxa e neoliberal. Apesar de sua proximidade a Lula e sua identificação com a necessidade de um governo que promovesse mudanças, ela não poupou a equipe da Fazenda de suas críticas ferinas. Uma famosa entrevista que concedeu ao jornal Folha de São Paulo em abril de 2003 bem resume sua indignação com o estelionato eleitoral que vinha sendo colocado em marcha.
Conceição não aceitava que o governo de Lula pudesse apresentar em documento um diagnóstico em que o principal problema a ser enfrentado fosse o tal do ajuste fiscal. Mas, infelizmente, assim foi feito mesmo, à revelia da história de Lula, do PT e das expectativas geradas a partir da eleição. Tanto que os superávits primários obtidos sob a gestão de Palocci eram mais expressivos do que aqueles que haviam sido gerados ao longo da presença de Pedro Malan à frente da economia durante a Presidência de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Além disso, caso fossem levadas em consideração as medidas sob responsabilidade de Henrique Meirelles à frente do Banco Central, o quadro era mesmo de austericídio. Ou seja, tratava-se da combinação perversa de um arrocho monetário (taxas elevadas das SELIC) com a austeridade fiscal também aguda.
Já no momento seguinte de incorporação da estratégia de ajuste ortodoxo sob Dilma Roussef, outras vozes se levantaram contra as propostas de Joaquim Levy, neoliberal do mundo financeiro indicado para o Ministério da Fazenda em 2015 pela Presidenta reeleita. Não era apenas Conceição que se indignava com a volta do personagem ao governo do PT, alguém que ela já havia criticado mais de uma década antes, na gestão de Palocci. A professora não poupava adjetivos para se referir ao novo titular da pasta. Segundo matéria da Isto É, “a economista e histórica petista Maria da Conceição Tavares costuma se referir a Levy como “o papalvo de Palocci” e “filho do FMI”.
Ninguém come PIB nem juros
Mas o interessante é que o descontentamento com os descaminhos era de tal ordem que nem mesmo o então ex Presidente Lula poupava a opção da Fazenda de críticas. De acordo com o jornal Valor Econômico ainda em 2015, “Lula fez duras críticas à política econômica e afirmou que o governo precisa superar de forma imediata o ajuste fiscal”. Ele criticava abertamente a opção pelo ajuste fiscal e o abandono do programa eleito:
(…) “Nesse momento da história do Brasil, ganhamos as eleições com um discurso e os nossos adversários perderam as eleições, [mas] a impressão que nós passamos para a sociedade é que nós adotamos o discurso que perdeu”
“Tem que falar em crescimento. Não tem um país no mundo que tenha feito ajuste [fiscal] e melhorado a economia” (…)
Esse breve apanhado de manifestações da mestra em situações de elevada sensibilidade política nos permite imaginar o que ela estaria expressando nos tempos atuais a respeito dos descaminhos adotados por Fernando Haddad para os rumos da economia no início deste terceiro mandato de Lula. Ajuste fiscal irresponsável, meta de superávit primário inconsequente e cortes orçamentários em programas estratégicos na área social. Além disso, a insistência em retirar das garantias constitucionais os pisos para saúde, educação e previdência social. Definitivamente, Conceição não deveria estar nada contente com a reviravolta em relação às promessas de campanha e às necessidades da maioria da população.
Ela detestava a postura dos tecnocratas na condução da política econômica e dizia que ninguém come PIB, mas sim alimentos. Caso seus ensinamentos tivessem sido aprendidos e absorvidos pelo Ministro da Fazenda, com toda a certeza a situação do governo e do País seriam bem distintas. A prioridade não seria atender aos anseios da Faria Lima, mas sim as necessidades da grande maioria do povo brasileiro. É hora de Lula lembrar Haddad de que o seu ministro deveria respeitar a memória de Conceição.