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Instigar ódio não é liberdade de expressão

29 de Maio de 2020, 12:14 , por Altamiro Borges - | No one following this article yet.
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Por Eugênio Aragão, no site Congresso em Foco:

Era só o que faltava! Fico a imaginar Julius Streicher, o raivoso editor do tabloide nazista antissemita “Der Stürmer”, se levantar no Tribunal de Nuremberg e protestar: “O que nós queremos é falar a verdade. Às vezes tem um fato e várias versões, eu sempre coloco a minha versão sobre aquele fato.” E aí conclui: “A mídia é importante neste país para levar boas notícias, notícias verdadeiras. Todas as coisas que eu faço, eu coloco [nos meus tabloides], ou seja, eu fabrico notícia e coloco elas [nos meus jornais] para que todo mundo tenha a minha posição sobre qualquer assunto. Isso se chama liberdade de expressão. Este país é um país democrático. Nós temos que temos que ter a liberdade de expressão, a liberdade de pensamento".

Não, com exceção do que consta em colchetes, por conta da adaptação ao contexto de uma época em que não havia redes sociais, o discurso não é de Julius Streicher, mas de Luciano Hang, em 27 de maio de 2020, após ser submetido a medida de busca e apreensão no seu lar e em sua empresa.

O caso de Julius Streicher é paradigmático. Reclamou muito ter sido maltratado pelos soldados aliados após sua captura. Fez-se de vítima. Não era parte de nenhuma organização paramilitar, não planejou e nem executou nenhuma política de extermínio. Nunca matara. Era um “mero” editor. Nada mais do que isso. E nada lhe adiantou: foi condenado à morte por enforcamento, incurso em crime contra a humanidade por ter instigado, com seus impressos, ao genocídio contra os judeus. Streicher foi o primeiro apenado num tribunal internacional pela prática de incitamento à violência.

Mais recentemente, em 2003, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, condenou, no “caso das mídias”, Ferdinand Nahimana e outros por crime de genocídio por terem instigado por rádio e jornal, a população à violência contra Tutsis, Hutus simpatizantes de Tutsis, belgas e as Nações Unidas, durante o maciço massacre que, em 1994, marcou tragicamente a história do país centro-africano.

Também contra os acusados não pesou terem feito uso de violência física contra desafetos; antes, através da Radio Télévision Libre Mille Collines e do jornal Kangura, incitaram coletivamente ao massacre, diminuindo, desprezando, desqualificando os alvos da violência e estimulando discursivamente que fossem arrebatados e assassinados. Os Tutsis eram qualificados de “baratas” de tão desprezível que os tinham os acusados.

De volta ao Brasil de 2020, vemos o presidente da República e seu vice a atacarem publicamente determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) de promover busca e apreensão em residências e escritórios de pessoas que têm feito uso de mídias sociais para espalhar ódio contra oponentes, contra instituições, personalidades públicas e, especialmente, contra ministros do STF, propiciando a desqualificação do estado democrático de direito. Insistem, o chefe do executivo nacional e seu substituto eventual, em que a decisão do tribunal constituiria um ataque à liberdade de opinião.

Sabe-se, hoje, que a disseminação de notícias falsas, de deturpação intencional de fatos, para manchar reputações e destruir a imagem de pessoas e instituições escolhidas como desafetas foi estratégia essencial da campanha presidencial de Jair Bolsonaro em 2018. Supostamente atacado por um psicopata num ato público em Juiz de Fora, o candidato sumiu de público e não participou de nenhum debate durante a disputa eleitoral, mas seus apoiadores se serviram de um exército de robôs virtuais para disparar mensagens de ódio e mentiras pela rede mundial de computadores, impossíveis de serem informadas uma a uma em virtude de sua colossal quantidade.

A poluição midiática, pela dimensão, foi uma ação de larga escala com elevados custos, nenhum deles declarados na prestação de contas de campanha e suportados, de certo, por doadores empresariais ocultos.

A Justiça Eleitoral não estava tecnicamente preparada para coibir o abuso. Vontade não lhe faltou, como demonstram grande número de decisões a determinarem a supressão de falsos perfis em redes sociais e de mensagens mentirosas por elas espalhadas. Mas, para cada sítio ou perfil suprimido por ordem judicial, outros milhares eram utilizados para dar continuidade à guerra por difamação. Para tanto, os apoiadores se utilizavam de empresas disparadoras de mensagens por lote, um verdadeiro spoofing de inverdades. E, ninguém duvida, essa operação trouxe a vitória para Jair Bolsonaro, na base da ilusão dos eleitores.

Instalado no poder, o candidato vitorioso prossegue, hoje, na estratégia da inverdade desqualificadora de personalidades públicas, de instituições e até de autoridades dos outros poderes. Fá-lo para mobilizar seu exército de fanáticos apoiadores contra a ordem constituída, desconstruindo, aos olhos de todos, os pilares do estado democrático de direito. Avançou, já, sobre o presidente da Câmara dos Deputados, sobre lideranças da oposição, sobre servidores públicos, membros do Ministério Público e magistrados, sempre que foram protagonistas, mesmo involuntários, de medidas e decisões que desagradam ao governo.

A técnica de desqualificar não é procedimento aleatório, espontâneo. É empregada de caso pensado, de tantas vezes que é usada, sempre cirurgicamente contra alvos selecionados. Traduz-se em verdadeira política de governo, com o auxílio dum indispensável exército de “influenciadores”, sempre a medirem, estatisticamente, sua penetração na opinião pública, de modo a adequar o discurso à necessidade de persuasão. Com isso, semeiam nas pessoas um ódio seletivo, calculado para ter o maior efeito dentro das predileções virtuais de cada um.

O uso de metadados tornou-se poderosa ferramenta para controle das mentes em massa, como demonstrou, em outros cenários, o escândalo em torno de sua manipulação pela Cambridge Analytica, empresa de consultoria de marketing político que prospectou metadados da plataforma de rede social Facebook, sem autorização de seus usuários. Nossas instituições democráticas simplesmente não têm estado à altura do desafio. A propagação de teorias conspiratórias e a distorção sistemática dos significantes para construir ilusões que mobilizam raiva, indignação e desprezo não têm merecido qualquer reação repressiva, seja por conta da inadequação legislativa, seja por conta da pusilanimidade mesmo, de uma sociedade cansada de crise política.

A ruptura com esse padrão de inação foi, porém, recentemente provocada por um fato intestino do governo bolsonarista. A saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça causou divisão nas hostes dos irados apoiadores do status quo. O ministro da Justiça demissionário disparou acusações contra Bolsonaro, inquinando-o de forçar a mudança na cúpula da Polícia Federal para blindar seus filhos e apoiadores investigados de práticas criminosas. E, para piorar, apontou para uma reunião interministerial ocorrida sob a liderança do próprio Bolsonaro, em 22 de abril passado, quando as pressões para demissão do diretor-geral da polícia foram diretas e manifestas.

Como não podia deixar de ser, as acusações de Sergio Moro ensejaram a abertura de um inquérito no STF, sob a relatoria do Ministro Celso de Mello, discreto decano da Corte, requisitado meio a contragosto pelo procurador-geral da República. E, também inexoravelmente, impuseram a requisição do vídeo da malsinada reunião palaciana.

O espetáculo de horrores, de indignidade, de falta de decoro e vulgaridades que se descortinou ao público quando o vídeo da reunião foi desprovido do sigilo pretendido pelo governo causou uma onda de perplexidade. Viu-se ali um presidente da República fora de si, a deblaterar aos palavrões, que não prejudicaria amigos e familiarizares por passividade: interviria, sim, na Polícia Federal, ainda que precisasse demitir o ministro da Justiça. Nunca se viu na história republicana tamanha prevaricação flagrada em todas as cores e tonalidades.

Mas não foi só isso. Além dos despropérios presidenciais, houve um ministro da Educação que sugeriu se colocasse “vagabundos na cadeia, a começar pelo STF” e uma ministra de Direitos Humanos a ameaçar prender, também, governadores e prefeitos que estão a adotar medidas de contenção do alastramento da covid-19.

O ministro do Meio Ambiente saudou a oportunidade da doença, propícia a distrair a opinião pública enquanto se promovesse reforma infralegal para extinguir mecanismos de proteção ambiental e, para coroar o festival de insensatez, o ministro da Economia propôs que se estimulasse turismo de prostituição e jogatina em cassinos para retomar as atividades econômicas, sem contar sua bravata de enganar o funcionalismo, retirando-lhes aumento de ganhos por dois anos com a desculpa do enfrentamento da crise sanitária.

Uma reunião de celerados sem caráter, entremeada de ameaças e desaforos contra desafetos para todos poderem ver e ouvir. Isso no mais alto nível da República. Chegou-se ao ponto em que não era mais permitido às instituições permanecerem passivas, sob pena de esgarçar definitivamente o sensível tecido da institucionalidade democrática.

O STF, provocado pela oposição, reagiu. No bojo de uma investigação ali aberta há mais de ano, por decisão de seu presidente, ministro Dias Toffoli, com o fim de averiguar ataques a magistrados da Corte, foi finalmente determinada a busca e apreensão nos domicílios daqueles que se apurou responsáveis pela alimentação maciça das mensagens de ódio nas redes sociais. Afinal, percebeu-se, que o comando do ódio estava incrustado na cúpula do governo e capilarizado numa rede de “influenciadores” da política e da comunicação social. E, como não podia deixar de ser, o verborrágico ministro da Educação foi chamado a prestar depoimento na polícia, por determinação do relator da investigação, ministro Alexandre de Moraes.

O hidrófobo governo não deixou por menos: os ataques a magistrados da Corte passaram a ser disparados diretamente pelo presidente da República, sempre ameaçando não cumprir mais determinações judiciais contra si e seus ministros. O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, por sua vez, buscou intimidar diretamente o ministro Celso de Mello, que tornara público o vídeo da saturnal reunião palaciana, vaticinando crise institucional caso determinasse a busca e apreensão de celulares e computadores do presidente da República, como requerido por parlamentares da oposição.

A busca e apreensão ordenada pelo ministro Alexandre de Moraes contra “influenciadores” bolsonaristas aumentou a intensidade da crise. Acusam-no de agir à margem da Constituição por estar à frente de um inquérito instaurado de ofício pelo presidente do STF, sem o impulso usual do Ministério Público. Dizem ser desproporcionais as medidas invasivas determinadas e, como seria de esperar, seriam arbitrárias e em violação da liberdade de opinião.

Não passassem essas invectivas de exercício de legítimo direito de espernear, não mereciam nem ser lembradas ou mencionadas. O problema é que se constituem, elas mesmas, num turbilhão de inverdades e distorções do significado de normas e direitos. Bem ao gosto de quem se dedica à atividade cotidiana de depreciar a verdade em prol da manipulação.

Em primeiro lugar, num Estado de Direito quem decide sobre os limites de sua jurisdição no caso concreto, são as próprias Cortes. A “compétence de la compétence”, em francês, ou “Kompetenzkompetenz”, em alemão, é um atributo necessário da independência do judiciário. Não pode uma autoridade administrativa ou um jurisdicionado privado deixar de se submeter às ordens jurisdicionais, ou, até mesmo, desautorizá-las publicamente sob o pretexto de serem emanadas por quem, ao alvitre do jurisdicionado, não deteria competência para exará-las. Quem desfaz ato de juiz incompetente é só o próprio judiciário.

Em segundo lugar, o inquérito ora sob a relatoria do ministro Alexandre de Morais foi instaurado pelo presidente do STF no exercício de poder regimental, na defesa da ordem interna da Corte. Ministros não poderiam jurisdicionar com independência se submetidos a criminosa pressão de “haters” digitais que logram influenciar a opinião pública contra a autoridade do tribunal. Os crimes perpetrados contra os ministros e contra o STF como instituição devem ser objeto de ação repressiva do próprio tribunal, sim, sob pena de fazer a Corte ser refém do alvitre alheio de um procurador-geral da República que se recuse a desencadear a persecutio criminis. Admitir essa impotência da Corte seria fazer de sua independência um tigre de papel, um lobo desdentado.

Não há, por outro lado, qualquer violação da atribuição constitucional do Ministério Público nessa iniciativa, que continuará a ser sozinho o senhor da ação penal que vier eventualmente a suceder à investigação interna. O poder de polícia de autodefesa institucional, porém, garante ao STF tomar todas as medidas necessárias para proteger as garantias constitucionais de seus magistrados e o pleno exercício de sua jurisdição. Tanto é corolário lógico da sua “Kompetenzkompetenz”, esteio da independência judicial numa democracia.

Quanto ao presidente se recusar a dar cumprimento a ordens emanadas do STF, além de configurar crime de responsabilidade que dá causa a sua destituição do mandato, essa atitude põe em cheque sua própria autoridade, que decorre da soberania interna do Estado, emprestada a si pelo voto popular. A autoridade de que se acha investido por força do mandato é a mesma que dá ao STF poder de jurisdicionar. Ambas remetem ao monopólio de violência "Gewaltmonopol" que se irradia sobre toda a atividade estatal.

Se o presidente pode recusar autoridade a uma ordem judicial, qualquer um estará legitimado a recusar cumprimento a decisões administrativas de seu governo ou, até, a obediência às leis promulgadas pelo Poder Legislativo. A recusa ou mera sugestão de recusa à obediência a uma decisão da Justiça é, pois, atitude de total disruptura da soberania, de suma traição à Constituição e de provocação grave da falência estatal. Com isso, tornar-nos-emos uma Somália, ao sabor dos senhores de guerra que fazem suas próprias leis na ponta do fuzil.

As graves competências cometidas ao STF pela Constituição não lhe permitem, como garante maior da ordem constitucional, vacilar: conclamar ao desrespeito a suas decisões, amesquinhando o alcance de sua jurisdição, é causar a erosão do Estado, impondo reação pronta e efetiva. E quem, como autoridade pública, se presta ao triste papel de traidor do Pacto Social que dá estabilidade a esse construto chamado Estado Brasileiro, merece a atuação repressiva, senão do Ministério Público, do próprio STF, em exercício de direito de emergência constitucional que é inato à autodefesa institucional.

Por último, umas palavras sobre o tão brandido “direito à livre opinião”. Trata-se, sem dúvida, de um corolário da liberdade de expressão, quando exercida de modo a preservar todas as outras liberdades que compõem a medula da democracia. Uma liberdade de opinião que sirva a mobilizar hordas para a destruição dessa democracia não pode se qualificar dentro da liberdade de expressão. Não a existe para discurso de ódio, de instigação de crime e violência, de discriminação racial, de gênero, de religião, de opção política ou de opção sexual, quando trazem ínsito o impulso da perseguição, da desqualificação ou do menoscabo.

Esse discurso não convive com a democracia e “haters” em redes sociais têm enorme potencial disruptivo, merecendo permanente vigilância para não se converterem em forças destrutivas de liberdades. No espaço eleitoral, com maior razão, não deve ser tolerado, pois é antípoda da tolerância que deve caracterizar debates em campanha.

Afora os precedentes dos tribunais internacionais, temos, também, na definição do direito inscrito no art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a derrogação implícita de seu âmbito de incidência quando a liberdade de expressão é usada em violação dos “direitos e da reputação dos outros”, ou da “segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas”. Ademais, impõe-se, ali, que a lei proíba “toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.

Não há direitos absolutos. Seu exercício demanda a responsabilidade para com os direitos dos outros, à democracia e ao Estado de Direito. Ofender e agredir magistrados por inconformação com suas decisões não é liberdade de expressão, mas balbúrdia incompatível com nossos preceitos constitucionais. E isso vale para todo discurso violento de ódio, que não deve ter abrigo de nossas instituições. Seja do cidadão comum, seja do presidente da República.

* Eugênio Aragão subprocurador-geral da República aposentado, professor da Universidade de Brasília e ex-ministro da Justiça (2016).

Fonte: https://altamiroborges.blogspot.com/2020/05/instigar-odio-nao-e-liberdade-de.html