Por Marcelo Zero, no site Brasil-247:
Com as eleições estadunidenses bastante próximas, muitos se perguntam como seria a política externa de Trump e como ela poderia afetar o mundo e o Brasil.
Alguns analistas, sem uma fundamentação sólida, argumentam que uma futura administração Trump poderia ser mais pragmática e menos agressiva que a atual administração Biden, especialmente em alguns campos, como o do conflito ucraniano.
Pois bem, recente artigo publicado na Foreign Affairs parece sepultar essa expectativa infundada.
Intitulado The Return of Peace Through Strength-Making the Case for Trump’s Foreign Policy (O Retorno da Paz Através da Força-Defendendo a Política Externa de Trump), e assinado por Robert C. O'Brien, que foi Conselheiro de Segurança Nacional de Trump entre 2019 e 2021, o artigo surpreende pela agressividade bastante crua.
Muito embora o autor comece o artigo afirmando que Trump é um “realista” e um peacemaker (o que não é verdade), a retórica do artigo é belicista e um tanto delirante.
O principal alvo da ira é, evidentemente, em se tratando do “trumpismo”, a China.
Nesse sentido, o autor escreve, sem pejo, que:
Beijing é agora o principal inimigo de Washington no ciberespaço, atacando regularmente redes empresariais e governamentais dos EUA. As práticas comerciais injustas da China prejudicaram a economia americana e tornaram os Estados Unidos dependentes da China para produtos manufaturados e até mesmo alguns produtos farmacêuticos essenciais.
E embora o modelo da China não tenha nada parecido com o apelo ideológico aos revolucionários do Terceiro Mundo e aos radicais ocidentais que o comunismo soviético manteve em meados do século XX, a liderança política da China, sob Xi Jinping, no entanto, teve a audácia suficiente para reverter as reformas econômicas, esmagar a liberdade em Hong Kong, e comprar brigas com Washington e muitos dos seus parceiros.
Xi é o líder mais perigoso da China desde o assassino Mao Zedong. E a China ainda não foi responsabilizada pela pandemia da COVID-19, que teve origem em Wuhan.
Mais adiante, o autor ainda argumenta que:
“O Partido Comunista Chinês procura expandir o seu poder e segurança, suplantando os Estados Unidos como líder global em desenvolvimento tecnológico e inovação em áreas críticas como veículos eléctricos, energia solar, inteligência artificial e computação quântica. Para fazê-lo, Beijing se utiliza de enormes subsídios, roubo de propriedade intelectual e práticas comerciais desleais.”
Para conter a China, o autor afirma que Trump, em seu novo mandato, deverá procurar dissociar (decoupling) inteiramente a economia dos EUA da economia chinesa. Propõe-se uma tarifa de importação de 60% (!) sobre produtos chineses e controles de exportação rigorosos sobre qualquer tecnologia que possa ser útil para a China.
Desnecessário dizer que essa estratégia geoeconômica seria um desastre e agravaria os problemas e a instabilidade da economia mundial. Trump poderá levar o planeta a uma guerra econômica e comercial generalizada.
A contenção da China deverá ter também aspectos militares.
O autor menciona a ideia de os EUA realizarem exercícios militares não apenas com aliados clássicos da zona do Indo-Pacífico, como Austrália e Coreia do Sul, mas também com as Filipinas, Indonésia e Vietnã, países que têm disputas territoriais com a China, principalmente concernentes ao Mar do Sul da China e ao Estreito de Malaka. Para esses últimos países, Trump promete extensa ajuda militar, semelhante à já ofertada para Israel.
De forma alarmante, O'Brien inclui também Taiwan nessa estratégia militar. Segundo ele, Taiwan gasta “apenas” cerca de 19 bilhões de dólares anualmente na sua defesa, cerca de três por cento do seu PIB. Segundo ele, ainda é muito pouco.
Essa “deficiência” de Taiwan, segundo O'Brien, não é apenas culpa sua: as anteriores administrações dos EUA enviaram sinais contraditórios sobre a vontade de Washington de fornecer armas a Taiwan e ajudar a defendê-la.
A próxima administração deverá deixar claro que, juntamente com o compromisso contínuo dos EUA, surge a expectativa de que Taiwan gaste mais na defesa e tome também outras medidas, como a expansão do recrutamento militar.
Em relação ao Oriente Médio, o autor prevê “o retorno da pressão máxima”. Tal pressão será exercida essencialmente sobre o Irã, que, de acordo com O'Brien, “é a fonte de toda a instabilidade na região”, inclusive do conflito israelo-palestino. Nenhuma palavra sobre Netanyahu e sua política desastrosa.
Esse regresso à política de “pressão máxima” de Trump incluiria a aplicação total das sanções dos EUA ao sector energético do Irã, aplicando-as não só a esse país, mas também aos governos e organizações que compram petróleo e gás iranianos.
Em relação à Ucrânia, o autor assevera que a administração Biden forneceu ajuda militar significativa a esse país, “mas muitas vezes demorou a enviar a Kiev os tipos de armas de que necessita para ter sucesso”.
Os 61 bilhões de dólares que o Congresso destinou recentemente para a Ucrânia – além dos 113 bilhões de dólares já aprovados – ‘são provavelmente suficientes para evitar que a Ucrânia perca, mas não o suficiente para lhe permitir vencer.”
O autor sugere, por conseguinte, que Trump poderá enviar armas mais destrutivas e modernas para Kiev. O'Brien e Trump, assim como Biden, parecem apostar, desse modo, numa muito improvável vitória militar da Ucrânia.
O autor prevê que a abordagem de Trump será a de continuar a fornecer ajuda letal à Ucrânia, mas financiada por países europeus, mantendo, ao mesmo tempo, a porta aberta à diplomacia com a Rússia.
Trump também pressionaria a Otan a enviar forças militares para a Polônia, a fim de aumentar as suas capacidades mais perto da fronteira da Rússia e para deixar inequivocamente claro que a aliança defenderá todo o seu território da agressão estrangeira.
Trata-se, assim, de um discurso ambíguo, que fala em possíveis negociações, mas que redobra a aposta na guerra.
Tal aposta na guerra estende-se às armas nucleares. Conforme o autor do artigo, os Estados Unidos têm de manter a superioridade técnica e numérica em relação aos arsenais nucleares combinados da China e da Rússia.
Para tanto, Washington deverá testar novas armas nucleares no mundo real, pela primeira vez desde 1992, e não mais apenas através da utilização de modelos informáticos. E, se a China e a Rússia continuarem a se recusar a participar em conversações de boa-fé sobre o controle de armas, os Estados Unidos também deverão retomar a produção de urânio-235 e plutônio-239, os principais isótopos físseis das armas nucleares.
Enfim, mais armas nucleares com testes reais, que tinham sido abandonados há décadas.
O investimento em armas não será, contudo, suficiente para conter o eixo Beijing-Moscou-Teerã, de acordo com o O'Brien. Será necessária também uma nova política de alianças.
Para O'Brien, os funcionários da administração Biden gostam de falar da boca para fora sobre a importância das alianças, e Biden diz acreditar que os Estados Unidos estão envolvidos numa competição que opõe democracias aliadas a autocracias rivais.
Mas a administração mina a sua própria suposta missão quando questiona a boa-fé democrática dos líderes conservadores eleitos em países aliados dos Estados Unidos, incluindo o antigo presidente brasileiro Jair Bolsonaro, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban, o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu e o presidente polaco Andrzej Duda.
Na verdade, estes líderes respondem aos desejos do seu povo e procuram defender a democracia, mas através de políticas diferentes daquelas defendidas pelo tipo de pessoas que gostam de conviver em Davos.
A administração Biden, no entanto, parece menos interessada em promover boas relações com aliados democráticos do mundo real do que em defender abstrações fictícias como “a ordem internacional baseada em regras”. Esta retórica reflete um elitismo globalista e liberal que se disfarça como apoio aos ideais democráticos.
Trump não disfarça que quer voltar para liderar a extrema-direita em nível global. Esse será o centro de sua política externa. Trump, se eleito, tenderá a criar uma ordem mundial ainda mais fragmentada, conflituosa e incerta.
Uma ordem “hobbesiana” baseada numa única regra: a força, como o próprio título do artigo sugere. E a instituições multilaterais, como a ONU, a OMC etc., depositárias das regras acordadas, que se lixem.
Nada é tão ruim que não possa piorar.
Trump, se eleito, será pior do que Biden para o mundo e para o Brasil.
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