Go to the content

Blog do Miro

Go back to Blog
Full screen Suggest an article

Vivi para ver

September 15, 2025 15:12 , by Altamiro Borges - | No one following this article yet.
Viewed 33 times
Por Frei Betto

Eu tinha 19 anos em junho de 1964. Morava no Rio, em uma “república” de estudantes dirigentes da Ação Católica. Na madrugada de 5 para 6 daquele mês, agentes do serviço secreto da Marinha, o Cenimar, invadiram nosso apartamento armados de metralhadoras. Fomos todos levados para o Arsenal da Marinha.

Aos socos e pontapés me torturaram, convencidos de que eu era Betinho, líder da Ação Popular, uma organização de esquerda, e anos depois da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
Entre o cárcere militar e a prisão domiciliar, fiquei retido um mês. Não houve processo ou reparação. Nem sequer o direito a um advogado. Dei-me conta do que é uma ditadura.

Cinco anos depois fui novamente preso em Porto Alegre por favorecer a fuga do Brasil de perseguidos pelo regime militar. Trazido para São Paulo, presenciei torturas, perdi companheiros e companheiras assassinados por militares e policiais civis.

Ao longo de quatro anos, transitei entre oito cárceres diferentes. Fiquei dois anos entre presos políticos e mais dois na condição de preso comum com narcotraficantes, assaltantes de bancos, assassinos contumazes, estelionatários e estupradores.

Ao completar quatro anos de cárcere, o STF reduziu minha pena para dois anos... Manteve, porém, a cassação de meus direitos políticos por 10 anos. Nenhum de meus torturadores, juízes ou carcereiros jamais respondeu à Justiça pelos crimes e abusos praticados. Foram todos beneficiados pela aberração da “anistia recíproca” decretada pelo general Figueiredo.

Tudo que vivi e sofri sob a ditadura está contido em meus livros “Cartas da Prisão” (Companhia das Letras); “Batismo de Sangue” e “Diário de Fernando” (ambos da Rocco).

Agora, sinto certo alívio ao ver Bolsonaro e seus cúmplices de organização criminosa condenados pelo STF por atentarem contra o Estado Democrático de Direito. Alívio, não por vingança, e sim por reparação simbólica que restitui à vida um sentido. Ver o direito prevalecer sobre a barbárie pode ser, para quem já peregrinou longos anos, a confirmação de que o mundo não é inteiramente injusto.
Esperar é um exercício de resistência. Carreguei a dor em silêncio e envelheci sem jamais perder a esperança de, um dia, ver militares golpistas punidos pela Justiça.

Suporto a cada dia o vazio deixado pela perda de tantos companheiros e companheiras, como frei Tito, meu confrade na Ordem Dominicana; Heleny Guariba, colega de teatro e cárcere; Jeová de Assis Gomes, Carlos Eduardo Pires Fleury, Aderbal Coqueiro e tantos outros(as) a mim irmanados na prisão e na resistência à ditadura.

O escritor grego Ésquilo afirma, em “Agamêmnon”, que “A dor é a mestra mais verdadeira” . A mim, a dor não apenas ensinou; moldou décadas de sobrevivência, sustentadas pela esperança de que um dia arautos da ditadura responderiam por seus atos.

O tempo muitas vezes é cruel. Paradoxalmente, amadurece os frutos da Justiça. Miguel de Cervantes escreveu em “Dom Quixote”: “A verdade pode andar sufocada, mas jamais morre”. Assim, mesmo encoberta por manobras jurídicas, recursos e adiamentos, permanece viva e aguarda a hora de se impor.

Disse Sêneca, filósofo romano: “A justiça não consiste em ser neutra entre o certo e o errado, mas em encontrar o certo e sustentá-lo contra o errado”. Para mim, o tribunal que agora condena os cabeças da intentona golpista de 2023 representa exatamente isto - a recusa em ser neutro diante da barbárie.

Não há sentença capaz de devolver vidas perdidas em 21 anos de democracia sonegada, mas há decisões que devolvem dignidade a quem ficou. Hannah Arendt, ao refletir sobre o mal e a responsabilidade, lembrava que “a justiça deve estar sempre presente, ainda que o mundo acabe”. Sinto-me, agora, amparado pelo peso ético de uma instituição democrática, o STF, que cumpriu seu dever.

Meu estado de tranquilidade não nasce da alegria, mas da paz. Viktor Frankl, sobrevivente dos campos de concentração, escreveu em seu “Em busca de sentido”: “A felicidade deve brotar como efeito colateral da dedicação pessoal a uma causa maior”.

Punir Bolsonaro e sua organização criminosa significa preservar a memória de tantos que fomos e somos vítimas de 21 anos de ditadura. Ao ver a Justiça reconhecer oficialmente os culpados de agressão à democracia, percebo que o exemplo de resistência de Marighella, Lamarca e tantos que lutaram contra o arbítrio, não foi apagado pelo esquecimento. A sentença eterniza suas ausências como presenças.

Um idoso como eu, ao ver golpistas punidos, resgato a confiança - ainda que tardia - no poder humano de distinguir o justo do injusto, o bem do mal. O que sinto não é euforia, mas reconciliação com a vida e a democracia.

* Frei Betto é escritor, autor do romance sobre massacre de indígenas na Amazônia, “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

Source: https://altamiroborges.blogspot.com/2025/09/vivi-para-ver.html