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3 de Abril de 2011, 21:00 , por Desconhecido - | 2 people following this article.
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Mas afinal, quem elegeu esse bando?

7 de Julho de 2017, 18:02, por Feed RSS do(a) News


Tem horas em que vejo pensando com os meus botões: mas, afinal, por que existe tanta gente indignada com os deputados, com os senadores, com o governador, com presidente da República, ou mesmo com o prefeito e os vereadores de sua cidade?

Está certo que, descontando as exceções, os parlamentares e os chefes de Executivo do Brasil são, com a maior boa vontade que possamos ter, deploráveis.

Num chute bem dado, é possível dizer que 90% deles são semialfabetizados, defendem seus próprios interesses, não fazem distinção entre o público e o privado, foram eleitos sem respeitar a legislação eleitoral, e usam o cargo como mero balcão de negócios - são corruptos, ou picaretas, como queiram.

Mas, insisto com os meus botões, quem votou nessa súcia, ou seja, quem botou essa corja nas câmaras municipais, assembleias legislativas, Congresso Nacional, governos estaduais ou nas prefeituras?

O povo brasileiro, responde o Grilo Falante, aquela voz interior que existe para nos apoquentar sempre que dúvidas desconfortáveis nos assaltam.

"Eles não são fruto de geração espontânea", me explica o hóspede indesejado.

Daí em diante, o comichão me rói o cérebro e, vítima de enorme desconforto, chego à conclusão que, se esse povo vota nesses desclassificados, eleição após eleição, é porque confia neles, acha que eles merecem representá-lo, está contente com o "trabalho" que fazem - ou então não dá a menor importância a eles ou à sua atuação.

Seja como for, os parlamentares e os chefes de Executivo brasileiros representam o que é o povo deste imenso país - uma nação, afinal, é formada por seus cidadãos, com suas virtudes e defeitos.

A essa altura, meus botões me viram as costas, tampam seus ouvidos, e se recusam a ouvir a minha peroração.

Não querem ser cúmplices, nem mesmo testemunhas, de tamanho sacrilégio.

Afinal, quem sou eu para criticar o povo brasileiro, tão elogiado por poetas, escritores, intelectuais, pessoas de muito mais valor do que este ordinário indivíduo?

E, sem essa audiência, me calo, certo de que, se falei muita bobagem, sempre haverá um Tiririca, um Bolsonaro, um Dória, qualquer um desses ilustres representantes da classe política, para me contrariar com seus notáveis exemplos. (Carlos Motta)



Livreiros e comerciantes

4 de Julho de 2017, 20:59, por Feed RSS do(a) News


A julgar pelos dois únicos livreiros que conheci, essa é uma profissão de inestimável valor pelo tanto de bem que faz à sociedade.

Na provinciana Jundiaí dos anos 70 do século passado bati longos papos com o Cláudio Trevisan, que foi à cidade montar a Livraria Don Quixote, durante anos a única opção que tínhamos para comprar livros decentes.

O Cláudio, falecido precocemente, era uma grande figura, culto, inteligente, e que fazia da livraria um verdadeiro centro cultural, promovendo todo tipo de atividade artística.

O outro livreiro que conheci é uma pessoa muito querida pelos jornalistas que, como eu, passaram parte da vida em redações paulistanas. 

Trata-se do João Carlos Antipon, ou o João Livreiro, como o chamávamos.

Durante anos ele fez a festa para todos os que, como eu, têm uma relação especial, íntima, quase mística, com os livros.

Bastava a gente vê-lo chegando, na redação do Estadão, carregando umas bolsas enormes, cheias dos mais tentadores livros, para que interrompêssemos o que estávamos fazendo e fôssemos, apressadamente, conhecer as novidades que ele espalhava generosamente em alguma mesa que estivesse desocupada.

Como o Cláudio, o João sempre nos proporcionava uma boa conversa e nunca nos deixava na mão, atendia a todos os nossos pedidos.

Os dois, além de ajudarem muito na minha formação intelectual - e creio, na de muitas outras pessoas -, me fizeram entender que existem comerciantes e comerciantes, ou seja, que o sujeito, ao vender o que quer que seja, também pode transmitir aos seus fregueses uma mensagem de que a cortesia e a civilidade são atitudes imprescindíveis para que vivamos numa sociedade sadia.

Essa lembrança do Cláudio e do João me ocorreu quando li uma entrevista que o dono da Livraria Cultura, Pedro Herz, deu ao Estadão.

Fiquei impressionado com o quanto as suas respostas se distanciam daquilo que, graças ao Cláudio e ao João, sempre achei que um livreiro pensava.

Destaco algumas de suas respostas que, sei lá, revelam um indivíduo que parece entender pouco o mundo em que vive, ou que, preso a uns tantos preconceitos, o vê sob uma óptica estreita e excludente, bem ao contrário do que o extraordinário universo dos livros proporciona a todos nós:

"A maneira de fazer política está errada. No meu entender, cultura é a maneira que eu tenho de enriquecer o meu saber. Que saber eu tenho pra ser enriquecido se eu vou tão mal na escola? Para que precisamos de um Ministério da Cultura? Melhor ter um bom ministro da Educação para ter gente que lê e depois falarmos de cultura. Fazer essas tais de viradas culturais no Brasil inteiro… o que elas trazem? Nada. Bebedeira. É muito mais virada etílica do que qualquer outra coisa. É uma ofensa à palavra. Elas não trazem nada."

"Houve uma somatória de desmandos que aconteceram e que surgiram com a entrada do Lula no governo. O país se desarranja já naquela eleição. Eu lembro que o dólar disparou, diziam até que nossas casas iam ser invadidas e todas aquelas histórias. São muitas coisas somadas ao mais grave: o custo Brasil. A máquina estatal brasileira faliu. Se fosse possível privatizar o Estado, eu diria que essa é a solução."

"Ninguém tem 30 dias de férias com 11 meses de trabalho, gente. Só no Brasil. E querem que este seja um país de Primeiro Mundo."

"Diretas agora não. Ela têm que caber na Constituição, aí sim. Qualquer coisa que fira a Carta eu já fico meio…"

"Desde que eu existo a cidade só vem piorando. Você pode melhorar alguma coisa pontual em algum lugar. Faz uma praça, alguma coisa. Mas acaba transferindo os problemas de lugar. Eu aprecio a tranquilidade de acordar às três da manhã e poder dar uma volta. Isso pra mim é qualidade de vida, mas não consigo mais fazer isso em São Paulo. Não dá mesmo. Eu vivo com pouco, sou modesto. Meu carro tem nove anos. Eu tenho medo de andar de bicicleta por isso, mesmo com a ciclofaixa.
Eu andava de bicicleta no tempo do bonde. Eu tenho medo hoje, não ando mais. Aqui. Eu ando de bicicleta quando vou pra fora, aí alugo bicicleta. Vou pra Berlim, pego a bike e vou embora. Vou ver museus, estaciono, amarro ela num canto lá e faço tudo o que quero."

"Façam rua de lazer, mas não prejudiquem todos os cinemas, os teatros, as pessoas que precisam dos automóveis. E depois, no Rio de Janeiro já fizeram: tem duas pistas em Copacabana e uma delas é aberta e a outra fechada. Normal. Divide o espaço. Aqui [Avenida Paulista] tem um comércio na rua de umas coisas no domingo, sabe lá o que você está comprando."

Pois é. 

A cabeça do dono da Cultura explica, em parte, por que as livrarias estão desaparecendo no Brasil. (Carlos Motta)



A falta que faz ao Brasil o João Sem Medo

4 de Julho de 2017, 9:33, por Feed RSS do(a) News


O brasileiro João Alves Jobim Saldanha, nascido há exatos 100 anos em Alegrete, no Rio Grande do Sul, está sendo homenageado país afora pela sua importância para o futebol e o jornalismo - os mais velhos certamente não se esqueceram da seleção que montou, base daquela que, sob a direção de Zagallo, sagrou-se tricampeã mundial, em 1970, no México, e de suas crônicas e comentários em jornais, emissoras de rádio e de televisão.

O pessoal dessa geração provavelmente conhece muitas histórias que cercam a trajetória de vida desse brasileiro, que recebeu de um de seus mais famosos amigos, o também jornalista, igualmente fanático por futebol, Nelson Rodrigues, o epíteto de "sem medo".

Há vários casos que se tornaram lendas: a perseguição, revólver em punho, a Manga, então goleiro do Botafogo; a invasão da concentração do Flamengo, também de revólver em punho, para tirar satisfações de seu técnico, Yustrich, que o havia criticado; a briga com o cartola e bicheiro Castor de Andrade, em plena transmissão do programa de TV Revista Facit; e a resposta que deu a um jornalista que o informou que o presidente da época, o tenebroso general Médici, queria que ele convocasse para a seleção o centroavante Dario, o Dadá Maravilha ("O presidente manda no seu ministério, na seleção mando eu").

Mas é uma das histórias menos conhecidas que dá a dimensão do caráter do João Sem Medo, que foi um ativo integrante do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro, e um inimigo feroz da ditadura militar - a recíproca era verdadeira, os militares e apoiadores do regime também o odiavam.

Ela se passou em 1987 e envolveu a empregada doméstica que trabalhava para a sua família, Josefa Eduardo do Amaral, a dona Zefa, que foi comprar pilhas para um brinquedo que João trouxera do Paraguai para sua neta. As pilhas estavam com defeito, e ao voltar à drogaria onde as comprara para trocá-las, dona Zefa foi maltratada pelo gerente, um português de nome Ibajones Lemos Leão. 

Ao saber do que se passara, João não teve dúvida: foi à farmácia resolver o caso.

Como o gerente se recusou a trocar as pilhas defeituosas ou a devolver o dinheiro, João chamou-o de ladrão e ao ver que o homem, com a ajuda de outros dois, partia para cima dele, sacou o seu revólver, um Colt 32 que chamava de "Ferrinho", e deu um tiro no chão para assustá-los. 

No fim da história, todo mundo foi para a delegacia, e lá, João resumiu aos jornalistas o que se passara:

- A vítima aqui sou eu e dona Zefa. Se ela fosse loura, talvez ele [o gerente da farmácia] até trocasse a pilha. Mas como é velha e crioula, é esse desrespeito.

O resultado da confusão foi um processo, do qual ele acabou absolvido.

João Saldanha, ou o João Sem Medo, morreu no dia 12 de julho de 1990, em Roma, onde estava a trabalho para a Rede Manchete, cobrindo a Copa do Mundo.

Dá para imaginar quantas histórias ele ainda viveria se tivesse nascido mais tarde e estivesse vendo o seu Brasil ser destruído por essa quadrilha que tomou de assalto o Palácio do Planalto.

Um dos maiores problemas do país é justamente esse: a falta de quem, a exemplo desse João centenário, não tenha medo. (Carlos Motta)






Como Graciliano Ramos descobriu o que é a Justiça

3 de Julho de 2017, 9:01, por Feed RSS do(a) News
O escritor brasileiro de quem mais gosto é Graciliano Ramos. Devo ter lido tudo que publicou. "São Bernardo", "Angústia", "Insônia", "infância", "Linhas Tortas", "Memórias do Cárcere", "Vidas Secas"...

Que obra maravilhosa!

E que figura humana era o "Velho Graça", um homem de princípios, severo, com uma força moral arrebatadora, e que, em sua vida, foi vítima de uma grande injustiça - a sua prisão, sem motivos que a justificassem - e de uma infância com episódios de crueldade sádica por parte do pai, um homem bruto e violento.

Em seu conto "Um Cinturão", de seu livro de memórias "Infância", Graciliano revela como foi o seu primeiro contato com a Justiça.

A sua leitura vale como um manual sobre como, um século depois do ocorrido, as relações sociais no Brasil pouco se alteraram.

No conto, o menino Graciliano sofre injustiças por parte de sua mãe, que o castiga aparentemente sem motivo, e de seu pai, que o pune por julgá-lo culpado pelo sumiço do tal cinturão - sem dar ao garoto sequer a chance de se defender:

"Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a."

(...)

"Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo."

Qualquer semelhança com o que ocorre no Brasil de hoje, com juízes fazendo papel de promotores e investigadores, distribuindo uma justiça preconcebida, preconceituosa e visivelmente dirigida contra inimigos da oligarquia, não é mera coincidência - é simplesmente a parte mais visível do que ocorre, sempre ocorreu, e provavelmente sempre vai ocorrer, neste triste país de tantas e tão iníquas desigualdades.

Para quem não conhece, aí vai o conto "Um Cinturão" na íntegra, um texto formidável do mestre Graciliano:

Um Cinturão

As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.

Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.

Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.

Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente, me livrassem daquele perigo.

Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação.

Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.

Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam.

O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.

Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.

Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.

A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal. Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás de caixões, livre do martírio.

Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.

Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.

Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me num desespero.

O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.

Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.

Pareceu-me que a figura imponente minguava – e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.

Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.

Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.



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