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CEITEC: privatização criminosa

25 de Novembro de 2020, 10:18 , por Correio do Brasil - | No one following this article yet.
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O Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (CEITEC), empresa estatal criada em 2008 para atuar no ramo de semicondutores e áreas correlatas, é o alvo de Paulo Guedes e equipe econômica para próxima privatização.

Por Paulo Kliass – de Brasília

As opiniões do superministro da Economia a respeito do setor público refletem de forma bastante cristalina a visão estreita de parcela significativa das classes dominantes brasileiras sobre o tema. Paulo Guedes jamais perdeu a oportunidade de manifestar sua intenção de privatizar todas as empresas estatais que pudesse, uma vez que, segundo ele, as mesmas seriam ineficientes e provocariam todo o tipo de distorção no interior da economia e da sociedade. Seu diagnóstico a propósito da participação do Estado na economia é tão conhecido quanto inapropriado.

Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (CEITEC) Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (CEITEC)

O aprendiz de neoliberal-fora-de-época trabalha obsessivamente em prol da privatização dos bancos públicos federais, das empresas do setor elétrico, das concessões de infraestrutura, dos Correios, da Telebrás, da Petrobrás e até mesmo da Casa da Moeda. Na sua condição de banqueiro e operador no mercado financeiro, Guedes sempre batalhou para obter ganhos expressivos com esses processos generosos de transferência de patrimônio público para o capital privado. Do ponto de vista da defesa dos interesses do financismo, ninguém mais bem talhado do que ele para cumprir com tal missão de viabilizar esse tipo peculiar de “acumulação primitiva” em pleno século XXI. O seu mote sempre foi “privatizar lucros e socializar prejuízos”.

Mas o ponto é que a sanha privatista desse pessoal trabalha com o conceito próximo à da “solução final”, extinção completa e total da presença do setor público em nossa sociedade. E para chegar a tal objetivo extremo, Guedes não poupa nada nem ninguém. Ele não mira apenas as gigantes do setor governamental. A bola da vez é uma pequena empresa pública federal, pouco conhecida do grande público e também ausente das matérias de declarado viés a favor do processo de privatização geralmente apresentadas pela grande imprensa. Refiro-me à CEITEC, a sigla pela qual ficou conhecido o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A, sediado em Porto Alegre (RS).

Potencial de desenvolvimento de tecnologia de ponta

Trata-se de uma empresa relativamente recente, quando comparada às gigantes como o centenário Banco do Brasil ou a sexagenária Petrobrás. A CEITEC teve sua criação autorizada em julho de 2008, por meio da Lei n° 11.759. Estávamos no segundo mandato do Presidente Lula e o Brasil já começava a sentir os primeiros rumores da grande crise que viria depois da quebra simbólica do banco Lehman Brothers nos Estados Unidos, em setembro daquele ano. Assim, em novembro o Poder Executivo publica o Decreto nº 6.638, documento que passa a oficializar a criação da empresa.

Naquele momento, o programa do governo não pretendia reduzir a participação do Estado na economia. Na verdade, havia um debate no interior das equipes da Esplanada, envolvendo estratégias de se promover o fortalecimento de políticas públicas e consolidar a intervenção do setor estatal em áreas consideradas estratégicas. Ora, desse ponto de vista de vista, nada mais interessante do que se dedicar a ramos como semicondutores, microeletrônica e tudo o que dissesse respeito à chamada indústria 4.0. A ausência de um debate sério e responsável a respeito dos equívocos e acertos de programas anteriores, tal como a Lei de Informática, terminou levando à cristalização de opiniões apriorísticas contra quaisquer tentativas de recuperar políticas de proteção setorial e outras medidas típicas de política industrial. A força devastadora da onda liberal acabava por contaminar também os espaços políticos habitados pelas forças progressistas.

Mas aqui e ali ainda podiam ser encontrados rastros de sobrevivência de um autêntico projeto de desenvolvimento nacional. Esse foi, ao que tudo indica, o sentido da Exposição de Motivos que acompanhou o Projeto de Lei acima referido. Em especial, cabe destacar dois parágrafos do documento:

“ (…)  A Empresa Pública CEITEC atuará no âmbito das tecnologias de semicondutores e áreas correlatas, tendo como finalidade tornar disponível a infra-estrutura tecnológica e oferecer suporte ao setor produtivo eletroeletrônico necessária à elaboração e produção em pequena escala de circuitos integrados.

Há que se considerar ainda que a implantação da CEITEC se constituirá de um passo importante na produção de componentes de microeletrônica, propiciando a substituição seletiva e competitiva de importação que, hoje, apresenta um grande déficit na balança comercial brasileira nessa área, indicando, assim, sua constituição como de relevante interesse coletivo. (…)”

CEITEC: semicondutores, microprocessadores e similares

Talvez fosse até desnecessário reforçar o argumento a respeito da importância estratégica desse ramo da economia, para que um país reunisse condições de ingressar com menos desconforto e dependência nas novas etapas da produção global. No entanto, apesar da criação da empresa em 2008, muito pouco foi feito para que a CEITEC conseguisse deslanchar em seu nicho de mercado. Para tanto concorreram fatores como a falta de vontade política dos governos que se seguiram e o boicote promovidos pelos grandes grupos do capital privado nacional e estrangeiro, que não gostariam de ver uma empresa estatal concorrendo com eles nesse ramo.

No entanto, a experiência internacional demonstra que os proponentes da criação da mesma é que estavam com a razão. A economista e professora Mariana Mazzucato é uma das maiores especialistas do assunto em nosso tempo. Em seus livros e pesquisas, ela reforça a importância do setor público para o dinamismo da economia capitalista em geral. Em O Estado Empreendedor, em particular, ela desmascara a falácia de um certo mito artificialmente criado, enfim uma oposição artificial setor público versus setor privado. Os grandes exemplos utilizados pela autora estão justamente nas áreas de ponta da inovação tecnológica nos próprios Estados Unidos, onde a ausência do apoio estatal não teria propiciado o surgimento de grandes corporações em áreas como informática, economia digital, telecomunicações e defesa.

A maior parte dos países aposta pesadamente na alavancagem da corrida pela inovação tecnológica por meio de iniciativas no âmbito do setor público. Basta ver os investimentos realizados pela China, com um modelo que envolve significativa participação do setor público. A disputa do país asiático com os Estados Unidos e o mundo ocidental, a respeito dos rumos do sistema de transmissão de dados e telecomunicações 5G, por exemplo, expressa bem essa necessidade de definições estratégicas envolvendo os reais interesses dos países e não apenas o lucro dos grandes conglomerado internacionais.

Destruição do Estado e perpetuação do atraso

O Brasil já perdeu muito com decisões estratégicas contrárias ao interesse nacional. Basta relembrarmos alguns casos, como a privatização e posterior venda da Embraer à Boeing, além do sucateamento de importantes centros de pesquisa em inovação, como o famoso CPQD da Telebrás depois dos leilões das empresas de telecomunicação ao capital privado. Em nome do acesso a uma suposta modernidade e por meio da incorporação do conhecido “complexo de vira lata”, as classes dominantes criaram sérios obstáculos à continuidade do processo de desenvolvimento do país.

Pois agora, mais uma vez, Guedes traz à cena a questão da CEITEC. Depois de mais de uma década deixada à míngua, em setor que exige investimentos vultosos para se acompanhar as áreas de ponta da inovação tecnológica, o governo afirma que a empresa não ofereceu retorno compatível com o investimento realizado. Bingo! Ora, esse tipo de empreendimento implica aportes de recursos nos momentos iniciais sem que a perspectiva seja ganho financeiro a curto prazo ou rentabilidade comparável aos demais ramos de atividade econômica. Investir em ciência, tecnologia e inovação pressupõe a realização de gastos com forte conteúdo daquilo que se convencionou chamar de “a fundo perdido”. Os ganhos desse tipo de despesa pública ocorrerão por meio de retornos sociais e econômicos a serem absorvidos pelo conjunto dos atores da sociedade a longo prazo.

A equipe de Bolsonaro percebeu as dificuldades de promover a venda da CEITEC nesse momento de crise e mudou a estratégia. Agora, Guedes pretende simplesmente extinguir a empresa. Uma loucura! A concorrência agradece, até meio envergonhada, com tamanho gesto de desprendimento, uma subserviência completa à dinâmica e aos interesses do capital internacional. Cabe ao Congresso Nacional e às forças progressistas se somarem ao amplo movimento que se inicia para impedir que mais um crime contra a economia nacional seja cometido por esse governo.

A retomada de um projeto nacional de desenvolvimento exige a recuperação de capacidade de investimento em setores de elevada densidade tecnológica. Caso contrário, seguiremos eternamente na condição de forças secundárias nesse novo plano de divisão pós colonial do globo. E as nossas elites parecem se contentar em reproduzir a nossa presença como mero exportador de matérias primas de baixo valor agregado. Com isso, perpetua-se a natureza de uma nova dependência de velho tipo: trocas desiguais com os países mais avançados, uma vez que seguimos importando tudo o que seja relevante e de alto valer agregado na escala produtiva.

 

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil


Fonte: https://www.correiodobrasil.com.br/ceitec-privatizacao-criminosa/

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