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Vergonha: índio Cabixi tinha passaporte de apátrida

December 14, 2017 15:00 , by Jornal Correio do Brasil - | No one following this article yet.
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O índio Daniel Cabixi ficou internacionalmente conhecido quando, em 1979, a ditadura no Brasil lhe negou o visto de saída para ir a III Conferência dos Bispos Latino-Americanos em Puebla, no México, convidado pelo próprio papa João Paulo II. A gritaria, porém, foi tanta que, um ano depois, lhe permitiram ir ao Peru, mas com um passaporte amarelo.

Por José Ribamar Bessa Freire, de Niterói:

Índio Daniel Cabixi, de renome internacional, para viajar tinha de usar passaporte amarelo de apátrida

O sábio Pareci, Daniel Matenho Cabixi, falecido há um mês, foi homenageado pela Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT), que guardou um minuto de silêncio durante a plenária do seu 3º Congresso, em Cuiabá. “Ele viajou ao encontro de Enore, o Criador” – disse no velório celebrado na aldeia Wazare, em Campo Novo, um dos seus filhos, o cacique Rony, formado no Curso de Licenciatura Intercultural. Nessa viagem sem volta não precisou do passaporte que lhe foi negado para outras.   

DANIEL CABIXI, O SÁBIO, NA COVA DOS LEÕES

O sábio Pareci, Daniel Matenho Cabixi, falecido há um mês, foi homenageado pela Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT), que guardou um minuto de silêncio durante a plenária do seu 3º Congresso, em Cuiabá. “Ele viajou ao encontro de Enore, o Criador” – disse no velório celebrado na aldeia Wazare, em Campo Novo, um dos seus filhos, o cacique Rony, formado no Curso de Licenciatura Intercultural. Nessa viagem sem volta não precisou do passaporte que lhe foi negado para outras.   

Daniel Cabixi ficou internacionalmente conhecido quando, em 1979, a ditadura no Brasil lhe negou o visto de saída para ir a III Conferência dos Bispos Latino-Americanos em Puebla, no México, convidado pelo próprio papa João Paulo II. A gritaria, porém, foi tanta que, um ano depois, lhe permitiram ir ao Peru, mas com um passaporte amarelo. Viajamos juntos e, por causa do bendito documento, passamos constrangimentos no aeroporto e no hotel em Lima.

De qualquer forma, lá no Cuzco, Daniel pôde dizer tudo aquilo que não lhe deixaram falar em Puebla. Numa entrevista publicada na revista Amazonia Peruana, com a participação de um líder Shipibo do alto Ucayali, o líder Pareci discutiu o movimento indígena e suas lutas, a posse da terra, o Estado e sua política indigenista, a educação bilíngue e intercultural, a relação com igrejas e academia, que aqui resumo, complementando com falas posteriores publicadas em outras fontes.

No grotão dos leões

Daniel relatou sua experiência na escola, mas não explicitou que foi colega de sala do Gilmar Mendes no Ginásio jesuíta, em Diamantino (MT). Ele foi. É. Desse ai mesmo, ministro do STF. O próprio Gilmar usou recentemente o fato de ter convivido com ele e outros índios para alegar que conhecia bem a realidade indígena e que, por isso, tinha legitimidade para defender o agronegócio. Em reflexão anterior, Cabixi já havia denunciado:  

– “Os fazendeiros têm uma política bastante nojenta. Eles dizem que os índios são preguiçosos, vagabundos. Essa é a política deles. Dizem que o índio não trabalha e, portanto, não precisa de terra. Mas nós nascemos nessa terra, somos filhos dessa terra e estamos aqui antes deles, que são gananciosos, predadores e trazem destruição”.   

Órfão de pai, Daniel foi separado ainda pequeno de sua família e internado no Lar do Menor, mantido pelos jesuítas em Utiariti, Diamantino (MT), sede da fazenda dos Mendes. Por isso – ele diz com distanciamento crítico – “não cresci na aldeia junto com a minha mãe, meus tios, meus avós e bisavós, o que não me deixou conhecer as tradições do meu povo. Esse padrão de escola, desestruturador, não reconhecia as culturas e os saberes indígenas, proibia o uso da língua materna e exigia que o português fosse a única língua”.

Além disso, aqui pra nós, compartilhar a mesma sala com Gilmar Mendes, é dose. As consequências foram desastrosas, mas Daniel salienta que foi possível sair milagrosamente vivo da cova dos leões:

“A minha geração, que sofreu esse modelo de ensino, até hoje sente dificuldades em restabelecer os laços com a tradição para buscar o saber tradicional junto aos velhos, que são seus guardiões. Foi preciso criar uma estratégia contra a desagregação cultural, contra essa perda irreparável. Perdi, mas também ganhei alguma coisa. A escola, apesar de alienante, me deu subsídios para entender o contexto em que fui criado e as necessidades dos Pareci, Nambikwara e Irantxe que habitam a região”.

Dessa forma, Daniel tomou conhecimento da “organização do mundo branco atual, saturado de desconfianças, ódios e ganância, onde impera a lei do mais poderoso, daquele que tem mais bens materiais, que são educados para explorar e destruir seus semelhantes”. Historicamente, o território tradicional Pareci foi invadido no séc. XVIII, quando descobriram lá dentro minas de ouro. Depois vieram os bandeirantes, as linhas telegráficas, as igrejas, as estradas, os gilmares, o capiroto e o diabo a quatro.

A biodiversidade

Quando concluiu a sétima série, em 1972, Daniel foi passar férias na Aldeia de Rio Verde, em Tangará da Serra, e por lá ficou, mergulhando na cultura Pareci. A vivência na região bem na fronteira da bacia Amazônica e da bacia do Prata, permitiu que ele usasse os saberes tradicionais e aqueles adquiridos na escola para observar o ecossistema próprio da Chapada dos Parecis, transformado num grande tapete de soja, arroz, milho, canavial, o que mexeu com a vida dos índios, das árvores, dos pássaros, dos rios, dos peixes.  

Daniel Cabixi, índio Pareci, era reconhecidamente um intelectual produtivo. Suas observações foram registradas no artigo – “As Tecnologias dos Povos Indígenas na preservação do meio ambiente” – que escreveu para a Conferência Mundial das Nações Unidas realizada em junho de 1992, no Rio de Janeiro. Durante sua estadia na Rio-92, recorreu à Clínica Odontológica da UERJ para tratamento de problema dentário, quando nos cedeu seu artigo, editado artesanalmente pelo Programa de Estudos dos Povos Indígenas.   

Trata-se de um texto de 40 páginas com cinco capítulos. No primeiro discute a tecnologia dos povos indígenas da Amazônia para a preservação dos ecossistemas e da biodiversidade. O segundo trata dos conhecimentos etnobiológicos e etnofarmacológicos e sua aplicabilidade na medicina ocidental. O terceiro aborda a troca de conhecimentos entre os povos indígenas e a comunidade científica. O quarto traz sugestões para a preservação das florestas tropicais. Finalmente o quinto finaliza com recomendações a ONU.

Daniel traz muitas informações valiosas como aquela que se refere aos Mẽbêngôkre Kaiapó que classificam mais de 50 tipos de diarreia, cada qual tratada com remédios caseiros específicos, com uma taxonomia mais sofisticada, nesse caso, do que a da medicina ocidental. Defende a necessidade de se ter uma compreensão efetiva dos conceitos indígenas de saúdes e doença para que a ação médica seja mais eficiente.

 – “A etnofarmacologia e a etnomedicina podem, portanto, ajudar os cientistas a compreender melhor as moléstias e seus sintomas, bem como a validade de tratamentos diferenciais, em regiões específicas. Novos preparados farmacêuticos e fontes adicionais às existentes podem tornar mais acessíveis os tratamentos advindos da medicina popular e ocidental” – ele escreve.

Passaporte amarelo

Daniel Cabixi publicou artigos no Porantim, do qual foi correspondente em Mato Grosso. Participou das assembleias indígenas e da 3ª Assembleia Geral do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), realizada em julho de 1979, em Goiânia, que aprovou documento no qual a Igreja Católica reconhece os erros históricos e se compromete a mudar sua prática missionária. Participou de eventos acadêmicos como o Congresso de Leitura do Brasil (COLE) na Unicamp e deu conferências em muitas universidades, incluindo a Universidad Nacional Mayor de San Marcos, em Lima.

Com essa bagagem, foi chamado em 1985 pela FUNAI para ser professor, tornando-se anos depois Coordenador de Assuntos Indígenas do Estado de Mato Grosso. A luta indígena em defesa do conhecimento tradicional foi um dos temas abordado por ele, em 1980, no Encontro de Movimentos Índios da América do Sul realizado em Ollantaytambo, no Cuzco, Peru. Para poder sair do Brasil, depois de muita pressão, o Itamaraty lhe deu um passaporte, mas aquele amarelo, que se concede a quem tem nacionalidade indefinida, aos refugiados e aos apátridas.

Como o voo Lima x Cuzco foi cancelado e transferido para o dia seguinte, a Aeroperu nos hospedou no Hotel Savoy, no centro de Lima. Lá, o recepcionista olhou com desconfiança o passaporte amarelo e chamou o gerente para avaliar aquele estranho documento que, na realidade, devia envergonhar o governo brasileiro capaz de tratar como estrangeiro um índio aqui enraizado há mais de 5.000 anos. Hoje, aquele outro Brasil, solidário, que acompanha a luta indígena, se despede do intelectual e combatente Pareci, que sobreviveu aos leões, em cuja cova falta agora lançar aqueles que vocês já sabem quem são. Nossos pêsames à família enlutada: Maria Adilis e os filhos Rony, Selma, Nayara, Sirlene, Genilson e Evandro.   

P.S. Um pouco da produção de Daniel Cabixi:

1) La población indígena del Brasil a través de Daniel Matenho Cabixi. Entrevista a Nilda Guillén y José Bessa. Amazonia Peruana. N° 5, Vol. III. Junio 1980. (Pgs. 135-141). Lima – Peru.

2) As Tecnologias dos Povos Indígenas na preservação do meio ambiente. Rio. Uerj. 1992. Mimeo

3) O pensamento de Daniel Matenho Cabixi. Nimuendaju. Boletim da Comissão Pro-Indio/RJ. Ano 1,  N° 1 – Jan-fev.1979. Bernardo Karan (org). Editor Marcelo Beraba.

4. Educação Escolar entre os Pareci, Nambikwara e Irantxe no contexto socioeconômico da Chapada dos Parecis – MT. In Juracilda Veiga e Andrés Salanova (orgs). Questões de educação escolar indígena: da formação do professor ao projeto de escola. Brasília. Funai/Dedoc. 2001 (12° Encontro COLE – Congresso de Leitura do Brasil. Unicamp. 1999).

José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no Rio de Janeiro. É colunista do Direto da Redação.

Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.

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