Ontem, dia 16 de junho, foi o aniversário de Ariano Suassuna, nosso querido dramaturgo, que hoje viaja o Brasil apresentando a riqueza da cultura brasileira com suas Aulas-Espetáculo. O video acima é sua apresentação no Sesc São Paulo em abril de 2011. Abaixo vai um texto que explora as influências de uma de suas peças mais famosas e aproveita pra falar de sua irreverência e autenticidade.
Tradição Popular e Recriação no Auto da Compadecida
Fonte: O Auto da Compadecida, 35ª edição, Agir Editora 2005
Autor: Braulio Tavarez
Reza a lenda que certa vez um crítico teatral abordou Ariano Suassuna e o inquiriu a respeito de alguns episódios do Auto da Compadecida. Disse ele: “Como foi que o senhor teve aquela ideia do gato que defeca dinheiro?” Ariano respondeu: “Eu achei num folheto de cordel”. O crítico: “E a história da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa?” Ariano: “Tirei de outro folheto”. O outro: “E o cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro?” Ariano: “Aquilo é do folheto também”. O sujeito impacientou-se e disse: “Agora danou-se mesmo! Então o que foi que o Senhor escreveu?” E Ariano: “Oxente! Escrevi foi a peça!”
O episódio certamente não aconteceu dessa forma, mas não importa; que sirva este exemplo como ilustração dos comentários que se seguem. A verdade de um episódio assim (que o próprio Ariano nunca conta duas vezes do mesmo modo) não necessita de um registro taquigráfico do diálogo acontecido. É um simples pingue-pongue de idéias que pode ser fielmente reproduzido, sem perda, de dezenas de maneiras diferente.
De fato, alguns episódios do Auto da Compadecida baseiam-se em textos anônimos da tradição popular nordestina. No primeiro ato, veem-se trechos do folheto O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), onde se conta o episódio do cachorro morto cujo dono destina uma some em dinheiro para que seu enterro seja feito em latim, o que dá origem a uma série de quiproquós eclesiásticos. No segundo ato, o episódio do gato que “descome” moedas e o da falsa ressurreição ao som do instrumento mágico são inspirados no romance popular anônimo História do cavalo que defecava dinheiro. E no terceiro ato, o julgamento dos personagens no Céu e a intercessão piedosa de Nossa Senhora, a “Compadecida”, correspondem a outro auto popular anônimo, O castigo da Soberba. Estes trÊs textos-fonte, aliás, são reproduzidos no livro de Leonardo Mota, Violeiros do Norte, cuja primeira edição é de 1925; a versão de O castigo da Soberba foi colhida por Mota junto ao cantador Anselmo Vieira de Sousa (1867-1926).

A Auto da Compadecida, como as demais comédias teatrais de Ariano Suassuna, procura recuperar e reproduzir mecanismos narrativos da comédia medieval e renascentista da Europa e da comédia popular do Nordeste. Um aspecto importantíssimo desse tipo de teatro é o seu caráter tradicional e coletivo, no qual a fidelidade a uma tradição é tão importante quanto a originalidade individual, – ou mais até – e onde o autor não julga que escreve por si só, mas com a colaboração implícita de uma comunidade inteira.
Note-se que Suassuna não pediu emprestadas cenas de outra peça de teatro, mas sim episódios narrados em verso nos romances populares. O episódio é transposto do verso para a prosa, e da narrativa indireta para a encenação direta. O “cavalo que defeca dinheiro” transforma-se num “gato que descome dinheiro”, a rabequinha mágica do romance popular é substituída na peça por uma gaita. O autor da peça apropria-se de episódios já existentes mas não tem com eles a atitude reverente ou respeitosa de autores eruditos que recorrem às “fontes populares” Ele muda o que lhe convém, mantém intacto o que lhe interessa, e parece sentir-se totalmente à vontade com isto.
Ao usar episódios tradicionais, Suassuna adota a mesma atitude apropriativa dos artistas medievais ou nordestinos. A Tradição é um imenso caldeirão de ideias, histórias, imagens, falas, temas e motivos. Todos bebem desse caldo, todos recorrem a ele. Todos trazem a contribuição de seu talento individual, mas cada um vê a si próprio com apenas um a mais na linhagem de pessoas que contam e recontam as mesmas histórias, pintam e repintam as mesmas cenas, cantam e recantam os mesmos versos. Histórias, cenas e versos são sempre os mesmos, por força da Tradição, mas são sempre outros, por força da visão pessoal de cada artista.
Um folheto de cordel e uma peça de teatro têm, além disso, um elemento em comum: são obras de Literatura Oral Que só se transformam em livro por questões de ordem prática: preservação e transporte do texto. Mas um folheto de cordel é feito para ser recitado em voz alta: uma peça é feita para ser encenada por atores. Shakespeare ou José Pacheco podem ser lidos no silêncio de uma sala e dar ao leitor uma experiência recompensadora. Mas não é para este tipo de leitura que tais obras foram escritas, e sim para a transmissão oral, viva, em carne e osso, “som e fúria”.
O gesto de Ariano Suassuna ao teatralizar um texto em verso equivale ao gesto de cordelista ao versar uma história em prosa. O verbo versar é de uso corrente entre os autores de cordel. Trata-se de pegar uma história já existente, seja um livro ou uma narrativa oral (lenda popular, conto de fadas, etc.) e recontá-la em forma de sextilhas. Quando um cordelista versa o Romeu e Julieta de Shakespeare, assina-a como obra sua, assim como Shakespeare assinou como obra sua a própria peça, cujo argumento original – a propósito – não é do bardo inglês. Suassuna cita com frequência em suas aulas-espetáculo o caso desse folheto, em que o poeta popular narra a história como ela se passou, mas nos versos finais faz uma ressalva, dizendo que contou a história daquele jeito para ser fiel a ela, mas que não concorda com o final.
O cordelista, ao versar uma história alheia, faz uma distinção intuitiva entre as peripécias que são narradas e as palavras escolhidas para a narração. Recontar uma história alheia, para o poeta e o dramaturgo popular, é torná-la sua, porque parece existir na cultura popular a noção de que a história, uma vez contada, torna-se patrimônio universal e transfere-se para o domínio público. Autoral, apenas, é a forma textual dada à história por cada um que a reescreveu e reescreverá.
Se isto ocorre com uma narrativa inteira, muito mais frequente é a reutilização de pequenos quadros, de cenas curtas, que podem ser recortadas inteiras de uma obra e coladas em outra sem que o seu sentido se perca. Uma tal sem-cerimônia pode ser vista com restrições na mentalidade autoral que vigora na literatura erudita, na qual a imitação é um defeito, e o plágio, um delito. Mas é um processo de uso generalizado nas artes populares: o circo, o teatro de rua, o cordel, o Romanceiro das línguas latinas, as Baladas de língua inglesa. Fatias inteiras de uma obra são transpostas para outra e isto é considerado um recurso moralmente legítimo e esteticamente enriquecedor.
Os dramaturgos populares têm mentalidade coletiva; gostam de recorrer a um repertório de motivos que compartilham com seu público. Os lazzi (cenas curtas, completas em si mesmas) da Commedia dell’Arte e as routines dos cômicos do teatro de vaudeville ou do cinema mudo norte-americano têm o mesmo DNA dramatúrgico dos episódios da gaitinha mágica, do testamento do cachorro e das moedas escondidas no fiofó do gato. São pequenos blocos de engenhosidade narrativa, capazes de serem encaixados em diferentes contextos – um filme, uma peça, um conto em prosa, um folheto em verso, um esquete de palco, uma história em quadrinhos – sem que nada se parca da eficácia de sua construção ou da universalidade de seu entendimento.
Os episódios usados por Ariano têm uma mecânica narrativa simples e divertida, prestam-se à sátira social e lidam com imagens fortes, de impacto imediato. Falsa morte e falsa ressurreição; o dinheiro igualado ao excremento; o ambicioso que engole uma história absurda porque a ambição o cega; os “efeitos especiais” tipicamente de palco (a bexiga com o falso sangue); o cachorro que deixa herança igualado ao gato que descome dinheiro; as sentenças de um juiz severo sendo imediatamente diluídas pelo perdão de um juiz benevolente – são temas e motivos recorrentes no fabulário popular. Sua linguagem é ideogrâmica, visual, palpável e exprime-se mais por imagens concretas (como os “rébus”, ou enigmas figurados, das publicações charadísticas) do que por conceitos abstratos.
Incrustados numa estrutura teatral mais ampla e mais encorpada do que a das peças populares, porque se beneficia da identificação do autor com o teatro clássico europeu do Século de Ouro, esses pequenos episódios são como figuras que ilustram um texto, ou como canções já prontas que surgem a certa altura em um musical. Mantêm sua unidade original, mas são revistas noutro contexto, enriquecendo-o e sendo renovadas por ele.
O mesmo processo de apropriação e renovação ocorro com o uso do personagem João Grilo. Ariano já afirmou que ao dar o nome de João Grilo ao protagonista do Auto da Comparecida pensava estar fazendo uma ponte entre o seu teatro e o cordel nordestino, numa homenagem ao herói do romance de cordel de João Martins de Athayde (1877-1959), intitulado As proezas de João Grilo, e “a um vendedor de jornal astucioso que conheci na década de 1950 e que tinha este apelido”. Descobriu depois, através do português José Cardoso Marques, que em Portugal também existia um herói picaresco com este nome.
João Grilo é claramente uma nova encarnação de Pedro Malazarte, talvez o nosso herói espertalhão mais conhecido, e que na Península Ibérica tinha o nome de Pedro Urdemalas. Outro antepassado ilustre seu é Lazarillo de Tormes, o guia de cego que luta para sobreviver no meio da miséria e da violência, sendo forçado a tornar-se sagaz, trapaceiro e por vezes cruel. Também se relaciona com personagens da Commedia dell’Arte europeia, como o Arlequim: espertalhão, cheio de espírito lúdico.
Todos são típicos heróis pregadores-de-peças, e suas vítimas tanto podem ser os ladrões e bandidos como os burgueses ricos e as autoridades. Foram os modelos em que se inspiraram os demais heróis picarescos do cordel: o “Canção de Fogo”, dos folhetos de Leandro Gomes de Barros (1905-1992),e outros. Cada um deles é uma espécie de reencarnação dos anteriores, mas ao dar-lhe um novo norme o autor meio que se apropria dessas características universais e sente-se à vontade para modificar o personagem de acordo com a sua conveniência.
A interferência mais eficaz feita por Ariano no personagem João Grilo foi dar-lhe um companheiro: Chicó, o mentiroso inofensivo. Inspirado numa figura real que Ariano conhecera em Taperoá, Chicó veio trazer para esse personagem ibérico e cordelesco uma terceira pátria literária: o Circo. Juntos, João Grilo e Chicó reproduzem a tradição circense de mostrar um palhaço espertalhão, cheio de recursos, que gosta de se meter em situações arriscadas, e outro palhaço ingênuo, meio covarde, que se deixa influenciar pelo outro e às vezes acaba atrapalhando-o. Os dois tipos, observa Suassuna, são exemplarmente batizados pelo povo com as denominações de O Palhaço e o Besta.
O modo como Ariano Suassuna utiliza nesta peça episódios e personagens de uma tradição antiga, com séculos de existência, dá-nos um bom exemplo de como recorrer a estas fontes. Copiar, mas transformando. Reutilizar, mas dando sangue novo. Na medida do possível, tentar escrever algo tão novo e tão vivo quanto o original; procurar fazer da cópia uma obra que o autor do original pudesse apreciar com prazer e aplaudir com orgulho.
No Bule Voador
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