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Daniela

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14 de Junho de 2012, 21:00 , por Daniela - | No one following this article yet.

Sob suspeita

17 de Junho de 2012, 21:00, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

Roberto Civita, dono da revista que fez campanha para Collor em 1988-89,
deu um pontapé no traseiro do presidente em 2006
e agora faz piada com o caso Cachoeira.
(Foto: Ana Paula Paiva/Folhapress)
O caso Demóstenes-Cachoeira seria apenas mais um escândalo político a estampar manchetes. Mas no meio do caminho, entre corrompidos e corruptores, tinha uma Veja
De narradora dos acontecimentos a revista semanal da Abril tornou-se personagem, revelando um envolvimento nunca visto de forma tão escancarada na cena política brasileira. Gravações feitas pela Polícia Federal, com autorização da Justiça, não deixam dúvidas. O contraventor Carlinhos Cachoeira era mais do que fonte de informações.
Seu relacionamento com o diretor da sucursal de Veja em Brasília, Policarpo Junior, permitia a ele sugerir até a seção da revista em que determinadas notas de seu interesse deveriam ser estampadas. O pouco que se revelou até aqui permite concluir que a publicação tornou-se instrumento de Cachoeira para remover do governo obstáculos aos seus objetivos.
Um desses entraves estaria no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), do Ministério dos Transportes, e dificultava a atuação da Delta Construções, empresa que teria fortes ligações com o contraventor.
Segundo o jornalista Luis Nassif, a matéria da Veja sobre o Dnit saiu em 3 de junho de 2011. “A diretoria estava atrapalhando os negócios da Delta. Foi o mesmo modo de operação do episódio dos Correios – que daria origem ao chamado “mensalão”. Cachoeira dava os dados, Veja publicava e desalojava os adversários de Cachoeira.” Com isso cumpria também os objetivos de situar-se como vigilante de desmandos e fustigar os governos Lula e Dilma, pelos quais nunca demonstrou simpatia alguma.
Basta lembrar a capa de maio de 2006 com Lula levando um pé no traseiro, juntando numa só imagem grosseria e desres­peito. Para não falar de outras, do ano anterior, instigando o “impeachment” do presidente da República. O sucesso dos dois governos Lula e os altos índices de aprovação recebidos até agora pela presidenta Dilma Rousseff parecem ter exacerbado o furor da revista. A proximidade do diretor da sucursal de Brasília com Cachoeira, e deste com o senador Demóstenes Torres (ex-DEM-GO), sempre elogiado por Veja, veio a calhar. Até surgirem as gravações da Polícia Federal levando a revista a um recolhimento político só quebrado em defesas tíbias de seu funcionário e do que ela chama de “liberdade de imprensa”.
Veja diz-se “enganada pela fonte”, argumento desmentido pelo delegado federal Matheus Mella Rodrigues, coordenador da Operação Monte Carlo. O policial mostrou que o jornalista Policarpo Junior sabia das relações de Demóstenes com Cachoeira, mas nunca as denunciou, protegendo “meliantes”, como resumiu com propriedade a revista CartaCapital.

Livre, pero no mucho

Segundo Veja, a “liberdade de imprensa” estaria ameaçada se o jornalista, ou seu patrão Roberto Civita, fosse chamado a depor na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) aberta no Congresso Nacional para investigar o caso. Mas, na mesma edição em que supostamente põe o direito à informação acima de tudo, clama por um controle planetário da internet, agastada com a circulação de informações sobre seus descaminhos na rede. A internet foi o principal meio de exposição dos detalhes da suspeita relação Cachoeira-Demóstenes-Veja, e uma enxurrada de expressões nada elogiosas levaram a revista ao topo dos assuntos mais mencionados no Twitter.
Os principais veículos de alcance nacional silenciaram ou apoiaram a relação – exceção feita à Rede Record e à revista CartaCapital. Alguns, como O Globo, não titubearam em tomar as dores da Editora Abril. Por um de seus colunistas, Merval Pereira, o jornal isentou a revista de responsabilidades. Depois, em editorial, reagiu à comparação feita por CartaCapital entre o dono da Editora Abril e o magnata Rupert Murdoch, punido pela Justiça britânica pelo mau uso de seus veículos de comunicação no Reino Unido.
A Folha de S.Paulo, também em editorial, aliou-se a Veja. Mas sua ombudsman, Suzana Singer, que tem a incumbência de criticar o desempenho do jornal, pelo menos levantou uma dúvida ao dizer que “não se sabe se algo comprometedor envolvendo a imprensa surgirá desse lamaçal”. Para lembrar em seguida que ao PT interessa com o caso Cachoeira empastelar o “mensalão” a ser julgado em breve, e conclui dizendo: “A imprensa não pode cair na armadilha de permitir que um escândalo anule o outro. Tem o dever de apurar tudo – mas sem se poupar. É hora de dar um exemplo de transparência”. Mas a cobertura da Folha das relações Cachoeira-Demóstenes-Veja limita-se a notas superficiais.

Intocável

A ideia de que o caso Cachoeira seria uma forma de desviar as atenções sobre a campanha pelo julgamento dos acusados no caso do “mensalão” foi alardeada pela mídia. E utilizada pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, para se livrar da acusação de ter sido negligente. A PF encaminhou a Gurgel a denúncia sobre as relações promíscuas entre Cachoeira e Demóstenes em 2009. Se ele tivesse dado andamento à denúncia, o processo se tornaria público e poderia ter comprometido no ano seguinte a eleição de Demóstenes ao Senado, de Marconi Perillo (PSDB) ao governo de Goiás e de outros políticos suspeitos de servir a Cachoeira.
Em vez de explicar por que segurou o processo, Gurgel respondeu às acusações sob a alegação de que partiam dos envolvidos no processo do “mensalão”, temerosos diante da iminência do julgamento no qual ele será o acusador.
A CPMI começou em maio e tem seis meses para concluir as apurações. Ainda não havia mostrado, porém, o mesmo ânimo convocatório em relação aos governadores envolvidos com a Delta Construções e muito menos ao jornalista de Veja e seu patrão. Os governadores, por acordos político-partidários; o jornalista e o empresário, não se sabe bem as razões, embora possam ser formuladas hipóteses.
Uma delas é a de que o maior partido da base governista, o PMDB, estaria sendo sensível ao lobby da mídia por uma blindagem. Com uma CPMI em banho-maria, o partido não seria muito arranhado com a exposição de políticos peemedebistas a investigações. E o PT, concorrente na disputa por espaço no governo, não capitalizaria demais os resultados.
A concentração em poucos e poderosos grupos nacionais e transnacionais deu à mídia um poder nunca antes alcançado, muitas vezes superior aos próprios poderes republicanos. Assim, governos e outras instituições públicas tornam-se reféns dos meios de comunicação e temem enfrentá-los. Apenas em três ocasiões de nossa história veículos de comunicação foram alvo de investigações por parte de CPIs.
Em 1953, o dono do Última Hora, Samuel Wainer, sugeriu ao presidente Getúlio Vargas que seu jornal fosse investigado quanto às operações de crédito mantidas com o Banco do Brasil, como lembra o professor Venício Lima, da Universidade de Brasília. Dez anos depois, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) foi acusado de ter ligações com a CIA e receber recursos dos Estados Unidos para interferir nas eleições brasileiras. O instituto chegou a alugar por três meses, num período pré-eleitoral, o jornal A Noite do Rio, para colocá-lo a serviço da oposição ao presidente João Goulart. E em 1966 foi aberta investigação do acordo entre as Organizações Globo e o grupo de mídia estadunidense Time-Life. Uma operação de US$ 6 milhões, em benefício da TV Globo, acabou com o império dos Diários Associados de Assis Chateaubriand.

Testemunha de defesa

Há uma outra inquirição de jornalista que não se enquadra entre os casos mencionados, embora seja altamente significativa para os dias de hoje. Trata-se da ida a uma Comissão Parlamentar de Inquérito, em 2005, do mesmo Policarpo Junior. Na ocasião, o chefe de organização criminiosa se dizia vítima de chantagem por parte de um deputado carioca que estaria exigindo propina para não colocar seu nome no relatório final de uma CPI instalada na Assembleia Legislativa do Rio. Policarpo testemunhou em defesa do bicheiro e nenhum jornal nem a ABI alegaram tratar-se de uma intimidação à imprensa.
Uma das explicações para essa baixa exposição de jornais e jornalistas a investigações está no poder de interferência dos grupos midiáticos na política eleitoral. Exemplo clássico é a frase da viúva do proprietário das Organizações Globo referindo-se ao governo Collor: “O Roberto colocou ele na Presidência e depois tirou. Durou pouco. Ele se enganou”, disse com candura dona Lily no lançamento do seu livro Roberto & Lily, em 2005. Mas essa não foi uma ação isolada. Para derrotar Lula em 1989, Globo e Veja faziam dobradinha perfeita, como agora. Demonizavam Lula e exaltavam o jovem governador de Alagoas, “caçador de marajás”.
Essa articulação tornou-se hoje mais orgânica. A presidenta da Associação Nacional de Jornais (ANJ), que representa os proprietários de veículos, Judith Brito, assumiu o papel de oposição ao governo Lula. De modo mais discreto, mas não menos eficiente, trabalha o Instituto Millenium, que reúne articulistas, jornalistas e patrões da imprensa. E realiza eventos em que os convidados aliam-se ao que há de mais conservador na sociedade para afinar suas linhas de cobertura. Em um deles estavam Roberto Civita (Abril), Otavio Frias Filho (Folha) e Roberto Irineu Marinho (Globo).
Vários colaboradores, exibidos no site do instituto, escrevem e falam contra as cotas raciais nas universidades, criticam a política econômica dos governos Lula e Dilma, seja qual for, louvam o governo Fernando Henrique Cardoso, discordam da atual política externa brasileira e fizeram campanha contra a criação da CPMI do Cachoeira. São ações orquestradas que lembram as do Ibad, antes mencionado.
As evidências atuais indicam a necessidade de uma investigação séria sobre o papel de setores da mídia no caso Cachoeira. Os indícios vão além do jogo político e apontam para conluios com o crime comum. No entanto, até o momento, a CPMI não mostrou disposição para enfrentar o poder da mídia, que, quando acuada, conta com a defesa não apenas dos proprietários como também de parte de seus empregados.
Cabe lembrar a observação frequente do jornalista Mino Carta sobre a peculiaridade brasileira de jornalista chamar patrão de colega. Com isso diluem-se interesses de classe e uma difusa “liberdade de imprensa” é utilizada para encobrir contatos altamente suspeitos.
Até entidades respeitáveis como a Associação Brasileira de Imprensa, por seu presidente, Maurício Azêdo, confundem as coisas. Em depoimento ao programa Observatório da Imprensa, da TV Brasil, Azêdo não admite a ida de jornalistas à CPMI para prestar depoimentos, sob a alegação de intimidação ao trabalho jornalístico, mas condena a promiscuidade de alguns profissionais com fontes próximas ou ligadas ao crime. Com isso dá ao jornalista uma imunidade que nenhum outro cidadão tem.
Nesse mesmo programa, o professor Venício Lima ressaltou o impacto do caso das escutas ilegais promovidas pelo jornal News of the World sobre as relações mídia-sociedade na Inglaterra. “Levou Murdoch (o dono do jornal) e seus jornalistas a depor não só na Comissão de Esportes, Mídia e Cultura da Câmara dos Comuns como na Comissão Leveson, que tem caráter de inquérito policial.” Nada disso ameaçou a liberdade da imprensa britânica.
Aqui, apesar da resistência com forte apelo corporativo da mídia e de parte dos seus empregados, vozes importantes lembram que ninguém está imune a convocações feitas pelo Congresso Nacional para prestar esclarecimentos. À Record News, o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT-RS), foi direto ao ponto: “Todos devem ser investigados no setor público, privado e na imprensa. Sem paixões e sem arroubos. Nós vamos descobrir muitas coisas quando forem feitas as quebras de sigilo – o fiscal, por exemplo. Devemos apoiar sempre a liberdade de expressão. Mas não podemos confundi-la com uma organização criminosa. Para o bem da sociedade e da própria liberdade de expressão.”
Lalo Leal
No Rede Brasil Atual



Charge online - Bessinha - # 1305

16 de Junho de 2012, 21:00, por Desconhecido - 0sem comentários ainda



Parabéns Ariano Suassuna: 85 anos

16 de Junho de 2012, 21:00, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

Ontem, dia 16 de junho, foi o aniversário de Ariano Suassuna, nosso querido dramaturgo, que hoje viaja o Brasil apresentando a riqueza da cultura brasileira com suas Aulas-Espetáculo. O video acima é sua apresentação no Sesc São Paulo em abril de 2011. Abaixo vai um texto que explora as influências de uma de suas peças mais famosas e aproveita pra falar de sua irreverência e autenticidade.

Tradição Popular e Recriação no Auto da Compadecida


Fonte: O Auto da Compadecida, 35ª edição, Agir Editora  2005

Autor: Braulio Tavarez

Reza a lenda que certa vez um crítico teatral abordou Ariano Suassuna e o inquiriu a respeito de alguns episódios do Auto da Compadecida. Disse ele: “Como foi que o senhor teve aquela ideia do gato que defeca dinheiro?” Ariano respondeu: “Eu achei num folheto de cordel”. O crítico: “E a história da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa?” Ariano: “Tirei de outro folheto”. O outro: “E o cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro?” Ariano: “Aquilo é do folheto também”. O sujeito impacientou-se e disse: “Agora danou-se mesmo! Então o que foi que o Senhor escreveu?” E Ariano: “Oxente! Escrevi foi a peça!”
O episódio certamente não aconteceu dessa forma, mas não importa; que sirva este exemplo como ilustração dos comentários que se seguem. A verdade de um episódio assim (que o próprio Ariano nunca conta duas vezes do mesmo modo) não necessita de um registro taquigráfico do diálogo acontecido. É um simples pingue-pongue de idéias que pode ser fielmente reproduzido, sem perda, de dezenas de maneiras diferente.
De fato, alguns episódios do Auto da Compadecida baseiam-se em textos anônimos da tradição popular nordestina. No primeiro ato, veem-se trechos do folheto O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), onde se conta o episódio do cachorro morto cujo dono destina uma some em dinheiro para que seu enterro seja feito em latim, o que dá origem a uma série de quiproquós eclesiásticos. No segundo ato, o episódio do gato que “descome” moedas e o da falsa ressurreição ao som do instrumento mágico são inspirados no romance popular anônimo História do cavalo que defecava dinheiro. E no terceiro ato, o julgamento dos personagens no Céu e a intercessão piedosa de Nossa Senhora, a “Compadecida”, correspondem a outro auto popular anônimo, O castigo da Soberba. Estes trÊs textos-fonte, aliás, são reproduzidos no livro de Leonardo Mota, Violeiros do Norte, cuja primeira edição é de 1925; a versão de O castigo da Soberba foi colhida por Mota junto ao cantador Anselmo Vieira de Sousa (1867-1926).
A reação de estranheza do crítico (supondo-se que o episódio de fato ocorreu) deve-se certamente à frustração de uma expectativa, a de que o Autor de um texto teatral deva tirar esse texto inteiro de sua própria cabeça, de sua própria imaginação. Um Autor que se apropria de cenas concebidas por outra pessoa pode parecer, por um tal critério, um sujeito meio desonesto. E se confessa abertamente tê-lo feito, parece, ainda por cima, cínico. Este modo de pensar do crítico não é de todo injustificado, porque se olharmos em torno de nós e virmos a pirataria e a picaretagem que campeiam no mundo das artes e da cultura-de-massas, pensaremos de imediato que é preciso vigiar muito de perto qualquer indivíduo que admita ter-se apossado da criação alheia. Não é isto, entretanto, que ocorre no presente caso.
A Auto da Compadecida, como as demais comédias teatrais de Ariano Suassuna, procura recuperar e reproduzir mecanismos narrativos da comédia medieval e renascentista da Europa e da comédia popular do Nordeste. Um aspecto importantíssimo desse tipo de teatro é o seu caráter tradicional e coletivo, no qual a fidelidade a uma tradição é tão importante quanto a originalidade individual, – ou mais até – e onde o autor não julga que escreve por si só, mas com a colaboração implícita de uma comunidade inteira.
Note-se que Suassuna não pediu emprestadas cenas de outra peça de teatro, mas sim episódios narrados em verso nos romances populares. O episódio é transposto do verso para a prosa, e da narrativa indireta para a encenação direta. O “cavalo que defeca dinheiro” transforma-se num “gato que descome dinheiro”, a rabequinha mágica do romance popular é substituída na peça por uma gaita. O autor da peça apropria-se de episódios já existentes mas não tem com eles a atitude reverente ou respeitosa de autores eruditos que recorrem às “fontes populares” Ele muda o que lhe convém, mantém intacto o que lhe interessa, e parece sentir-se totalmente à vontade com isto.
Ao usar episódios tradicionais, Suassuna adota a mesma atitude apropriativa dos artistas medievais ou nordestinos. A Tradição é um imenso caldeirão de ideias, histórias, imagens, falas, temas e motivos. Todos bebem desse caldo, todos recorrem a ele. Todos trazem a contribuição de seu talento individual, mas cada um vê a si próprio com apenas um a mais na linhagem de pessoas que contam e recontam as mesmas histórias, pintam e repintam as mesmas cenas, cantam e recantam os mesmos versos. Histórias, cenas e versos são sempre os mesmos, por força da Tradição, mas são sempre outros, por força da visão pessoal de cada artista.
Um folheto de cordel e uma peça de teatro têm, além disso, um elemento em comum: são obras de Literatura Oral Que só se transformam em livro por questões de ordem prática: preservação e transporte do texto. Mas um folheto de cordel é feito para ser recitado em voz alta: uma peça é feita para ser encenada por atores. Shakespeare ou José Pacheco podem ser lidos no silêncio de uma sala e dar ao leitor uma experiência recompensadora. Mas não é para este tipo de leitura que tais obras foram escritas, e sim para a transmissão oral, viva, em carne e osso, “som e fúria”.
O gesto de Ariano Suassuna ao teatralizar um texto em verso equivale ao gesto de cordelista ao versar uma história em prosa. O verbo versar é de uso corrente entre os autores de cordel. Trata-se de pegar uma história já existente, seja um livro ou uma narrativa oral (lenda popular, conto de fadas, etc.) e recontá-la em forma de sextilhas. Quando um cordelista versa o Romeu e Julieta de Shakespeare, assina-a como obra sua, assim como Shakespeare assinou como obra sua a própria peça, cujo argumento original – a propósito – não é do bardo inglês. Suassuna cita com frequência em suas aulas-espetáculo o caso desse folheto, em que o poeta popular narra a história como ela se passou, mas nos versos finais faz uma ressalva, dizendo que contou a história daquele jeito para ser fiel a ela, mas que não concorda com o final.
O cordelista, ao versar uma história alheia, faz uma distinção intuitiva entre as peripécias que são narradas e as palavras escolhidas para a narração. Recontar uma história alheia, para o poeta e o dramaturgo popular, é torná-la sua, porque parece existir na cultura popular a noção de que a história, uma vez contada, torna-se patrimônio universal e transfere-se para o domínio público. Autoral, apenas, é a forma textual dada à história por cada um que a reescreveu e reescreverá.
Se isto ocorre com uma narrativa inteira, muito mais frequente é a reutilização de pequenos quadros, de cenas curtas, que podem ser recortadas inteiras de uma obra e coladas em outra sem que o seu sentido se perca. Uma tal sem-cerimônia pode ser vista com restrições na mentalidade autoral que vigora na literatura erudita, na qual a imitação é um defeito, e o plágio, um delito. Mas é um processo de uso generalizado nas artes populares: o circo, o teatro de rua, o cordel, o Romanceiro das línguas latinas, as Baladas de língua inglesa. Fatias inteiras de uma obra são transpostas para outra e isto é considerado um recurso moralmente legítimo e esteticamente enriquecedor.
Os dramaturgos populares têm mentalidade coletiva; gostam de recorrer a um repertório de motivos que compartilham com seu público. Os lazzi (cenas curtas, completas em si mesmas) da Commedia dell’Arte e as routines dos cômicos do teatro de vaudeville ou do cinema mudo norte-americano têm o mesmo DNA dramatúrgico dos episódios da gaitinha mágica, do testamento do cachorro e das moedas escondidas no fiofó do gato. São pequenos blocos de engenhosidade narrativa, capazes de serem encaixados em diferentes contextos – um filme, uma peça, um conto em prosa, um folheto em verso, um esquete de palco, uma história em quadrinhos – sem que nada se parca da eficácia de sua construção ou da universalidade de seu entendimento.
Os episódios usados por Ariano têm uma mecânica narrativa simples e divertida, prestam-se à sátira social e lidam com imagens fortes, de impacto imediato. Falsa morte e falsa ressurreição; o dinheiro igualado ao excremento; o ambicioso que engole uma história absurda porque a ambição o cega; os “efeitos especiais” tipicamente de palco (a bexiga com o falso sangue); o cachorro que deixa herança igualado ao gato que descome dinheiro; as sentenças de um juiz severo sendo imediatamente diluídas pelo perdão de um juiz benevolente – são temas e motivos recorrentes no fabulário popular. Sua linguagem é ideogrâmica, visual, palpável e exprime-se mais por imagens concretas (como os “rébus”, ou enigmas figurados, das publicações charadísticas) do que por conceitos abstratos.
Incrustados numa estrutura teatral mais ampla e mais encorpada do que a das peças populares, porque se beneficia da identificação do autor com o teatro clássico europeu do Século de Ouro, esses pequenos episódios são como figuras que ilustram um texto, ou como canções já prontas que surgem a certa altura em um musical. Mantêm sua unidade original, mas são revistas noutro contexto, enriquecendo-o e sendo renovadas por ele.
O mesmo processo de apropriação e renovação ocorro com o uso do personagem João Grilo. Ariano já afirmou que ao dar o nome de João Grilo ao protagonista do Auto da Comparecida pensava estar fazendo uma ponte entre o seu teatro e o cordel nordestino, numa homenagem ao herói do romance de cordel de João Martins de Athayde (1877-1959), intitulado As proezas de João Grilo, e “a um vendedor de jornal astucioso que conheci na década de 1950 e que tinha este apelido”. Descobriu depois, através do português José Cardoso Marques, que em Portugal também existia um herói picaresco com este nome.
João Grilo é claramente uma nova encarnação de Pedro Malazarte, talvez o nosso herói espertalhão mais conhecido, e que na Península Ibérica tinha o nome de Pedro Urdemalas. Outro antepassado ilustre seu é Lazarillo de Tormes, o guia de cego que luta para sobreviver no meio da miséria e da violência, sendo forçado a tornar-se sagaz, trapaceiro e por vezes cruel. Também se relaciona com personagens da Commedia dell’Arte europeia, como o Arlequim: espertalhão, cheio de espírito lúdico.
Todos são típicos heróis pregadores-de-peças, e suas vítimas tanto podem ser os ladrões e bandidos como os burgueses ricos e as autoridades. Foram os modelos em que se inspiraram os demais heróis picarescos do cordel: o “Canção de Fogo”, dos folhetos de Leandro Gomes de Barros (1905-1992),e outros. Cada um deles é uma espécie de reencarnação dos anteriores, mas ao dar-lhe um novo norme o autor meio que se apropria dessas características universais e sente-se à vontade para modificar o personagem de acordo com a sua conveniência.
A interferência mais eficaz feita por Ariano no personagem João Grilo foi dar-lhe um companheiro: Chicó, o mentiroso inofensivo. Inspirado numa figura real que Ariano conhecera em Taperoá, Chicó veio trazer para esse personagem ibérico e cordelesco uma terceira pátria literária: o Circo. Juntos, João Grilo e Chicó reproduzem a tradição circense de mostrar um palhaço espertalhão, cheio de recursos, que gosta de se meter em situações arriscadas, e outro palhaço ingênuo, meio covarde, que se deixa influenciar pelo outro e às vezes acaba atrapalhando-o. Os dois tipos, observa Suassuna, são exemplarmente batizados pelo povo com as denominações de O Palhaço e o Besta.
O modo como Ariano Suassuna utiliza nesta peça episódios e personagens de uma tradição antiga, com séculos de existência, dá-nos um bom exemplo de como recorrer a estas fontes. Copiar, mas transformando. Reutilizar, mas dando sangue novo. Na medida do possível, tentar escrever algo tão novo e tão vivo quanto o original; procurar fazer da cópia uma obra que o autor do original pudesse apreciar com prazer e aplaudir com orgulho.
No Bule Voador



Cadê o texto?

16 de Junho de 2012, 21:00, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

"O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem." Curioso que essa perfeita descrição tenha sido feita por um padre em cima de um púlpito.
Era o ano 1655. O púlpito, o da Capela Real em Lisboa. O padre, Antônio Vieira (1608-1697). Autor dos celebérrimos Sermões - coletânea organizada por ele de suas várias pregações na capital alfacinha e na baiana Salvador. A passagem citada está no Sermão da Sexagésima.
Mas o assunto da nossa crônica não é o padre Vieira, nem o púlpito, nem o sermão e menos ainda uma discussão sobre estilo. É uma conversa mais direta e cotidiana. Quase um lamento. Quero registrar uma ausência que sinto em 90% das matérias, posts, comentários e quejandos que ando lendo. A ausência do texto.
Pois é claro que uma frase depois de outra e depois de outra terminando com um ponto final não constitui por si só um texto. Para ser, um texto precisa de um mínimo de tessitura. Uma costura mesmo que modesta. Um texto que pode até não ter brilho, mas que dê um pouco de sabor para quem o lê.
Jornalista, blogueiro, redator publicitário, pesquisador acadêmico, comentarista da internet, em suma todos os que lançam mão das palavras para tornar algo público, deveriam levar mais a sério a construção do texto.
Tentar separar o conteúdo da sua expressão verbal. Uma coisa é o que se pretende dizer. Outra, é como dizer. Esse como é a tessitura. Saber escrever bem o conteúdo, seja ele qual for, é o grande prazer dos escrevinhadores. E, por extensão, a fruição dos leitores.
Eu não sei se as faculdades de jornalismo mantêm cursos de redação. Não tenho notícia se a moçada da área exercita modos de escrever. Sei que se conversa muito acerca da convergência digital, o que é ótimo. Se conversa acerca de princípios éticos, o que é ótimo também.
Agora, será que a moçada debate sobre como contar uma história de forma que o leitor guarde, por um tempinho que seja, alguma sensação após a leitura? Será que alguém exclama: "Nossa, isso está bem escrito" ou "Puxa, isso está mal escrito".
Tenho certeza: nenhuma história é boa ou ruim. O que a qualificará, para cima ou para baixo, é o jeito como é escrita. A mais correta ideologia do mundo não sobreviverá se os textos que a propagarem forem fracos, confusos, opacos.
Tanto faz se o texto será impresso ou exibido nas telas dos computadores, tablets, smartphones. Ele seguirá sendo um texto. Seguirá almejando o que António Vieira sacou no remoto século XVII: "O estilo há de ser muito fácil e natural".
Repare. A ideia e a expressão podem, num primeiro pensar, parecer uma só. Mas não. A ideia se forma na mente. A expressão se concretiza no arranjo das palavras, frases, parágrafos.
Elementar, caros escribas.
fernanda pompeu, webjornalista e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé e do Yahoo. Escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.



Justiça autoriza exumação do corpo de aposentado espancado por PMs no Pinheirinho

16 de Junho de 2012, 21:00, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

Ivo Teles dos Santos, espancado em São José dos Campos
Imagem do Blog do Gusmão.
No dia 22 de janeiro desse ano, os Moradores de Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), foram expulsos de suas residências por uma força policial que uniu dois mil homens da PM paulista, mais um contingente ignorado da guarda civil do município.
A ação obedeceu a uma ordem da juíza Márcia Loureiro, que determinou a reintegração de posse, com aprovação do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e do prefeito de São José dos Campos, Eduardo Cury, ambos do PSDB.
A área onde estavam os moradores de Pinheirinho possui mais de um milhão de metros quadrados, e pertence ao especulador financeiro, Naji Nahas, preso em 2008 pela polícia federal (operação Satiagraha), por crimes contra o sistema financeiro.
Cerca de 1600 famílias (aproximadamente 8000 pessoas) foram expulsas violentamente. Segundo a jornalista Conceição Lemes (do site Viomundo), “trabalhadores foram espancados, um baleado nas costas, dois óbitos de alguma forma relacionados à reintegração de posse, pais barbarizados (tiveram armas apontadas para a cabeça) na frente dos filhos, animais mortos a tiros. Tudo o que tinham – de moradia, móveis, geladeiras, computadores, TV a brinquedos, livros, fotos, filmes, documentos – foi destruído. Gente que ficou sem passado, vive um presente miserável (há pessoas morando na rua) e não sabe qual será o futuro”.
Entre os flagelados, se encontrava Ivo Teles dos Santos, um ilheense de 69 anos, aposentado, suspeito de ter sido barbaramente espancado pelos policiais.
No mesmo dia da expulsão, 22 de janeiro, Ivo Teles deu entrada no Hospital Municipal de São José dos Campos, onde ficou internado por dois meses. O aposentado, que morava só em Pinheirinho num lugar chamado “Cracolândia”, só foi encontrado no dia 03 de fevereiro, por sua ex-companheira, Osorina Ferreira de Souza, com quem viveu durante 20 anos. A ex-mulher afirma ter encontrado Ivo Teles entubado e em pleno estado de coma.
Ivo Teles chama os pms de covardes, após a primeira sessão de espancamentos. Horas depois,
foi internado no hospital municipal de São Jose dos Campos.
Imagem do Blog do Gusmão
Ivo Teles saiu de Ilhéus nos anos 80, para buscar emprego em São Paulo. Deixou uma filha de sete anos, Ivanilda Jesus dos Santos.
O Blog do Gusmão conversou com a filha do aposentado, hoje com 34 anos. Ivanilda, camareira de um hotel da zona sul de Ilhéus, afirmou que teve pouco contato com o pai. “Passei quase toda a minha vida procurando ele. Depois que foi para São Paulo, só veio aqui quando eu tinha nove anos. Sofri muito pela falta de meu pai. Certa vez, quando eu tinha 13 anos, fiquei sabendo que ele estava em Itabuna (a 26 km de Ilhéus). Fugi de casa, sem avisar a ninguém e voltei triste, pois não achei ele. Depois de um tempo, fiquei sabendo que ele já estava aposentado e morava em São José dos Campos, com uma senhora. Eu não sabia que ele morava naquele lugar, em condições tão ruins. Só fui descobrir quando ele estava internado no hospital, em coma. Fui avisada por Onorina no início de março, e fui para São Paulo cuidar dele”.
Ivanilda não quis ser fotografada, mas relatou seu sofrimento durante duas horas a este blog. Ela conta que foi para São José dos Campos no dia 16 de março desse ano. Custeou a passagem área (ida) com dinheiro do próprio bolso, parcelada no cartão de crédito.
Em São José, depois de muitos anos sem vê-lo, ela encontrou o pai internado, com vários hematomas espalhados pelo corpo, pernas paralisadas, muitos pontos na cabeça e com um furo no pescoço (devido à traqueostomia: infiltração de um tubo para passagem de ar).
Ivo Teles mostra o braço machucado pelos policiais.
A imagem é do dia 22 de janeiro de 2012, data do "massacre de Pinheirinho".
No dia 21 de março, o pai teve alta médica, entretanto, não conseguia falar, e só podia se locomover em cadeira de rodas. Com todas as dificuldades, Ivanilda trouxe o pai de volta a Ilhéus. “Apesar dos problemas, enfim consegui ver meu pai. Eu estava disposta a cuidar dele. Ele estava doente, mesmo assim, ele me reconhecia e me abraçava. Mesmo sofrendo, ele queria carinho e não queria que eu saísse de perto dele”.
Quando cuidou do pai, Ivanilda teve a ajuda da tia paterna, Roseneide Santos Barreto, 47 anos. Apesar dos cuidados da família, Ivo Teles não suportou as complicações. No dia 08 de abril, deu entrada no Hospital Regional de Ilhéus em estado grave.
Segundo Ivanilda, o médico plantonista não o atendeu. Alegou não ser especialista no tipo de atendimento necessário, e recomendou que o aposentado fosse levado para casa. O nome do médico não foi revelado.
No dia 10 de abril, Ivo Teles dos Santos faleceu, aos 70 anos, diante dos prantos da filha desgarrada que pouco conviveu. O sepultamento ocorreu no dia 11, no cemitério São João Batista, no bairro do Pontal, Ilhéus.
As causas da morte de Ivo Teles são alvo de intensa discussão entre a Defensoria Pública Estadual de São Paulo e representantes da Polícia Militar paulista.
O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE) acusa a Polícia Militar de ter espancado o aposentado, diante dos olhares de várias testemunhas. O caso tem o acompanhamento do defensor público Jairo Salvador.
O Hospital Municipal de São José dos Campos afirma que o senhor Ivo Teles sofreu um acidente vascular hemorrágico (AVCH). Parlamentares e integrantes do Condepe questionam, pois o aposentado apanhou muito e foi visto, mal conseguindo andar, cheio de hematomas. O hospital não divulgou o boletim de atendimento de urgência (BAU), documento que descreve as condições de Ivo Teles quando recebeu os primeiros cuidados.
A filha, Ivanilda, tem sido procurada pela imprensa paulista, incluindo a Folha de São Paulo e a apresentadora Sonia Abrão. Entretanto, prefere a discrição do que atender os apelos da mídia. Apenas o Blog do Gusmão, graças às informações do blogprog SP, conseguiu manter um contato mais duradouro.
Wilker dos Santos Lopes e Luis Magda Nascimento, oficiais da polícia militar paulista procuraram Ivanilda duas vezes, no hotel em que ela trabalha. Queriam saber se Ivo Teles foi bem tratado em Ilhéus e acompanharam um depoimento dela na Defensoria Pública da cidade. Os pms disseram que o aposentado não deveria ter saído de São José dos Campos.
Aos policiais, Ivanilda questionou os hematomas encontrados no corpo do pai. Segundo ela, um homem de 70 anos não deveria ter sido tratado com violência. Os policiais teriam dito: “quando seu pai ofereceu resistência, ele não se comportou como um velho”. Eles levaram uma cópia do atestado de óbito. No documento, consta como causa da morte “falta de atendimento médico”.
O defensor público, Jairo Salvador, por meio da justiça baiana, solicitou a exumação do corpo de Ivo Teles. O juiz Antônio Alberto Faiçal Júnior, da 2° Vara Criminal de Ilhéus, determinou a realização do procedimento para quinta-feira, 14 de junho.
Após a exumação, Ivanilda pretende voltar a São José dos Campos, para retirar uma cópia do boletim de atendimento de urgência, do hospital municipal.
O Blog do Gusmão conseguiu imagens exclusivas do aposentado Ivo Teles, gravadas no dia do “Massacre de Pinheirinho”.