Dois pesos e dois mensalões
4 de Agosto de 2012, 21:00 - sem comentários aindaA premissa de serem crimes conexos os atribuídos aos réus do mensalão do PT não valeu para o mensalão mineiro
Na sua indignação com o colega Ricardo Lewandowski, o ministro Joaquim Barbosa cometeu uma falha, não se sabe se de memória ou de aritmética, que remete ao conveniente silêncio de nove ministros do Supremo Tribunal Federal sobre uma estranha contradição sua. São os nove contrários a desdobrar-se o julgamento do mensalão, ou seja, a deixar no STF o julgamento dos três parlamentares acusados e remeter o dos outros 35, réus comuns, às varas criminais. De acordo com a praxe indicada pela Constituição.
Proposto pelo advogado Márcio Thomaz Bastos e apoiado por longa argumentação técnica de Lewandowski, o possível desdobramento exaltou Barbosa: "Essa questão já foi debatida aqui três vezes! Esta é a quarta!" Não era. Antes houve mais uma. As três citadas por Barbosa tratavam do mensalão agora sob julgamento. A outra foi a que determinou o desdobramento do chamado mensalão mineiro ou mensalão do PSDB. Neste, o STF ficou de julgar dois réus com "foro privilegiado", por serem parlamentares, e remeteu à Justiça Estadual mineira o julgamento dos outros 13.
Por que o tratamento diferenciado?
Os nove ministros que recusaram o desdobramento do mensalão petista calaram a respeito, ao votarem contra a proposta de Márcio Thomaz Bastos. Embora a duração dos votos de dois deles, Gilmar Mendes e Celso de Mello, comportasse longas digressões, indiferentes à pressa do presidente do tribunal, Ayres Britto, em defesa do seu cronograma de trabalho.
A premissa de serem crimes conexos os atribuídos aos réus do mensalão petista, tornando "inconveniente" dissociar os processos individuais, tem o mesmo sentido para o conjunto de 38 acusados e para o de 15. Mas só valeu para um dos mensalões.
Os dois mensalões também não receberam idênticas preocupações dos ministros do Supremo quanto ao risco de prescrições, por demora de julgamento. O mensalão do PSDB é o primeiro, montado já pelas mesmas peças centrais - Marcos Valério, suas agências de publicidade SMPB e DNA, o Banco Real. Só os beneficiários eram outros: o hoje deputado e ex-governador Eduardo Azeredo e o ex-vice-governador e hoje senador Clésio Andrade.
A incoerência do Supremo Tribunal Federal, nas decisões opostas sobre o desdobramento, é apenas um dos seus aspectos comprometedores no trato do mensalão mineiro. A propósito, a precedência no julgamento do mensalão do PT, ficando para data incerta o do PSDB e seus dois parlamentares, carrega um componente político que nada e ninguém pode negar.
A Polícia Federal também deixa condutas deploráveis na história do mensalão do PSDB. Aliás, em se tratando de sua conduta relacionada a fatos de interesse do PSDB, a PF tem grandes rombos na sua respeitabilidade.
Muito além de tudo isso, o que se constata a partir do mensalão mineiro, com a reportagem imperdível de Daniela Pinheiro na revista "piauí" que chegou às bancas, é nada menos do que estarrecedor. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, com seu gosto de medir o tamanho histórico dos escândalos, daria ali muito trabalho à sua tortuosa trena. Já não será por passar sem que a imprensa e a TV noticiosas lhes ponham os olhos, que o mensalão do PSDB e as protetoras deformidades policiais e judiciais ficarão encobertas.
É hora de atualizar o bordão sem mudar-lhe o significado: de dois pesos e duas medidas para dois pesos e dois mensalões.
Um julgamento de exceção
4 de Agosto de 2012, 21:00 - sem comentários aindaO julgamento do mensalão é exemplar de algo que o sistema judiciário não costuma fazer: vigiar e punir com rigor aqueles que estão incumbidos do mais alto exercício do poder. Neste sentido, é um julgamento de exceção. Para o Partido dos Trabalhadores, já se impôs uma de suas mais duras lições.
Como nunca antes
Dizer que o mensalão é o maior escândalo de corrupção da história do país é corromper a própria história da corrupção do Brasil. É um favor que se faz a uma legião de notórios corruptos e corruptores de tantas épocas que jamais foram devidamente investigados, indiciados, julgados, muito menos condenados.
O que se pode de fato dizer sobre a Ação Penal 470 é que nunca antes, na história desse país, um escândalo foi levado, com está sendo agora, às suas últimas consequências.
Como é possível que, em apenas 2 anos (supostamente, de 2003 a 2005, quando foi denunciado), um único esquema tenha sido capaz de superar aqueles constantes de 242 processos engavetados e 217 arquivados por um único procurador-geral? Também falta um pouco de noção de grandeza a quem acha que o financiamento irregular a políticos, de novo, em apenas dois anos, pudesse ter causado mais prejuízo aos cofres públicos do que o esquema que vendeu um setor econômico inteiro, como foi o caso da privatização do sistema de telecomunicações. Será mesmo que o mensalão também superaria, em valores e número de envolvidos, os esquemas que levaram ao único “impeachment” de um presidente brasileiro? Improvável.
Um espetáculo para inglês ver
O mensalão é o ponto culminante de um processo de crescente ativismo judicial que transborda para o jogo da política. Longe de ser um julgamento técnico, trata-se de um exemplo da politização da pauta do Judiciário. O grande problema para a Justiça é que a linha entre a politização e a partidarização é tênue. O bastante para que este Poder passe a ser alvo de suspeitas de que sua atuação esteja sendo orientada e dosada com base em quem se julga, e não no que se julga.
É óbvio que o ex-ministro José Dirceu e o ex-presidente do Partido, José Genoíno, por exemplo, serão julgados menos pelo que fizeram e mais pelo que representam. É a própria imagem do PT que estará exposta à condenação. Dirceu, em particular, se tornou o maior troféu desta ação penal, sobretudo pelo seu significado para o PT. Mas o tamanho do castigo a ele encomendado em certa medida se explica por Dirceu ter encabeçado, em 2004, a proposta de controle externo sobre as ações do Ministério Público, no que acabou conhecido como projeto de ‘lei da mordaça”.
Embora singular, o mensalão é mais um dentre os inúmeros episódios que foram explorados visando criar uma aversão pública e uma rejeição à marca PT. A tentativa de criminalizar este Partido vem desde o nascedouro, em 1980, quando Lula foi preso e enquadrado na Lei de Segurança Nacional pelas greves dos metalúrgicos do ABC paulista, em 1980. O PT já nasceu indiciado, denunciado e exposto ao escárnio, poucos meses após sua fundação.
O atual julgamento tem de tudo para ser um exemplo. Elogiado pela revista “The Economist” como um avanço, já pode ganhar o status de processo feito para Inglês ver. É um exemplo do rigor que a Justiça não costuma empregar. Um exemplo de inquérito que se conclui a tempo de produzir consequências políticas profundas (de longo prazo) e imediatas (bem em meio a uma campanha eleitoral). O escândalo e seu desdobramento judicial foram meticulosamente trabalhados para serem como um carimbo, repetido incansavelmente até que possa tornar-se parte indissociável de uma memória de longa duração sobre a sigla.
Os crimes dos Tupinambás
Embora pareça uma novidade, a ação reproduz padrões de desigualdade que marcaram a administração da justiça no Brasil desde sempre.
Quando o governador-geral, Tomé de Souza, por aqui chegou, no século XVI, deparou-se com o episódio da morte de um colono português por um Tupinambá. A tribo foi ameaçada pelo novo governante e o responsável pelo crime se entregou. Em um espetáculo público “exemplar” e inédito, que permaneceria por muito tempo na lembrança dos que assistiram à punição, o Tupinambá teve sua cabeça amarrada à boca de um canhão e destroçada. "Haveria até um inglês para relatar a execução, Robert Southey, a quem devemos uma História do Brasil".
É claro que as práticas que supostamente constituem a base das acusações da AP 470 são vergonhosas e inadmissíveis, mas não é esta a questão. A dúvida que permanece é sobre o critério utilizado para se estabelecer punições. Afinal, os Tupinambás estão sendo punidos com tal rigor por seus crimes, ou por serem Tupinambás? Crimes desse tipo serão punidos, doravante, da mesma forma, ou apenas se demonstrará que os “portugas” podem, os Tupinambás não podem? Os chefes políticos de outros esquemas, como o que é objeto de uma CPMI em curso, terão suas cabeças igualmente amarradas à boca do canhão pelo procurador-geral?
Até o momento, a AP 470 é exemplar de algo que o sistema judiciário não costuma fazer: vigiar e punir aqueles que estão incumbidos do mais alto exercício do poder. Neste sentido, é um julgamento de exceção. Mais uma daquelas feitas para confirmar a regra.
Para o Partido dos Trabalhadores, já se impôs uma de suas mais duras lições. Mesmo quando aculturado pelos usos e costumes da política tradicional, continuará sendo vigiado e punido por sua natureza: a de ser um partido de Tupinambás.
Antonio Lassance, cientista político e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.
No Carta Maior
FHC atira no pé
4 de Agosto de 2012, 21:00 - sem comentários aindaTiro no pé. FHC pede que outra de suas façanhas seja esquecida. Seu escudeiro Serjão ainda se ri. Fotos: Reprodução de vídeo e Epitácio Pessoa/AE |
Já de olho na eleição de 2014, os tucanos pretendem abalar a popularidade e o prestígio de Lula. Assim, o PSDB anuncia também uma programação própria das sessões no STF na página do partido na internet. O show precisa continuar.
Essa tática tucana é reafirmada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Na vanguarda das ações contra Lula, ele aparece na blogosfera em vídeo de 1 minuto e 25 segundos, no qual bota pressão no Supremo Tribunal Federal (STF). FHC, em linguagem sibilina, usa e abusa de sociologia rasteira, comum nos botequins e, também, nos bons restaurantes que frequenta. O tema é o dito mensalão. “O comentário de que não há punição no Brasil, e que a corrupção é ligada a isso, é frequente…”
Dessa forma, o ex-presidente abre o discurso sobre o julgamento em andamento no Supremo. Ao falar de impunidade como estimuladora da corrupção, ele responsabiliza os juízes, os ministros, a Justiça. Enfim, esbofeteia a própria Têmis. E faz corar a estátua de granito de Ceschiatti, mantida em frente ao prédio do STF, em Brasília.
Além de agredir a Magistratura, o ex-presidente também se agride. Descuidado, atira no próprio pé ao fazer a conexão entre corrupção e impunidade. Tal aproximação sugere esta pergunta:
Teria ocorrido o chamado mensalão se tivesse havido punição para os corruptores do governo e os parlamentares corrompidos para aprovar, no Congresso, a emenda constitucional que deu a FHC a reeleição?
Recordar é viver. Em 1997, surgiram gravações de escutas telefônicas levantando fortes evidências de que havia um esquema para compra de votos de deputados arregimentados por Sérgio Motta, o Serjão, então ministro das Comunicações.
O jornal Folha de S.Paulo foi o primeiro a apontar o escândalo e, para ilustrar a sequência de reportagens, criou um “selo” com a frase: “Reeleição comprada?”
Além de dois governadores, Orleir Cameli (AC) e Amazonino Mendes (AM), dois deputados, João Maia e Ronivon Santiago, ambos do PFL, integravam o projeto. Curiosamente, o deputado Maia era um egresso do PT. Os tucanos mais ortodoxos podem argumentar que o ex-petista inoculou nas negociações para a aprovação da emenda o vírus da corrupção. Não poderia ser também resultado do encontro de Maia, já então pefelista, com o peessedebista Serjão, o fator de formação dessa pororoca venal?
A oposição daquela época, os partidos de esquerda essencialmente, tinha força reduzida no Congresso e não conseguiu criar uma CPI para investigar as denúncias. O rolo compressor governista, PSDB, PFL e PMDB, botou uma pedra sobre a história. Impediu a punição dos culpados. E, neste caso, a Magistratura não tem culpa. FHC sabe disso.
Mauricio DiasNo CartaCapital
Ação Penal 470 é a última esperança de FHC
4 de Agosto de 2012, 21:00 - sem comentários aindaDizendo-se obcecado com o mensalão, ex-presidente fala em despertar das instituições democráticas, elogia colunistas conservadores, aponta uma economia nas cordas e diz que o PT está prestes a beijar a cruz das privatizações; será o julgamento a oportunidade para revigorar uma oposição combalida e enfrentar Dilma em 2014?
A última pesquisa CNT Sensus foi cristalina. Se as eleições de 2014 fossem hoje e Lula o candidato, ele teria 69% do votos. Trocando Lula por Dilma Rousseff, ela teria 59%. Aécio Neves, a alternativa apresentada pelo PSDB, ficaria pouco acima de 10% em ambos os cenários. Ou seja: apesar de todo o desgaste causado pelo “maior e mais atrevido escândalo de corrupção da história”, segundo o procurador-geral Roberto Gurgel, o PT caminha para um ciclo de, pelo menos, 16 anos de poder. Esta é a realidade, goste FHC dela ou não. No entanto, o ex-presidente é ainda a voz mais articulada do PSDB e das oposições como um todo. E é também o regente do discurso que se espalha nos meios de comunicação de corte mais conservador – aquilo que os petistas mais radicais chamam de PIG, o Partido da Imprensa Golpista.
Num artigo publicado neste domingo em vários jornais, o ex-presidente dá a linha do discurso e elogia também colunistas “perspicazes”, como Merval Pereira, do Globo. Aponta uma economia nas cordas, diz que o governo Dilma está prestes a beijar a cruz das privatizações para retomar investimentos em infraestrutura (sem lembrar, é claro, do seu apagão na área energética) e afirma de forma acaciana que, na Ação Penal 470, “houve crime” – o que não é negado nem pelos réus. A questão é: quais crimes? Caixa dois eleitoral ou compra regulamentar e sistemática de votos no Congresso, com desvios de recursos públicos?
No fim, FHC deixa escapar que o julgamento representa, talvez, a última esperança de uma oposição já combalida no Brasil, depois de três derrotas consecutivas. “Basta que seja sereno e justo para injetar mais ânimo em nossa política”, diz ele.
Seja qual for o resultado do julgamento, não será ele o fator determinante nas eleições de 2014. A avaliação do eleitor levará em conta um único fator: qual projeto será capaz de oferecer maior bem-estar no presente e maior esperança no futuro. Isso, sim, é inescapável. Leia, abaixo, o artigo de FHC:
O inescapávelFernando Henrique Cardoso
Ao voltar de férias, percorri os jornais: só dá mensalão e Olimpíadas. Não é para menos, mas é pouco. Consolou-me o haver lido uma matéria de David Brooks sobre a campanha eleitoral em seu país. Basta ler o título, “A campanha mais tediosa”, para que o leitor se dê conta do baixo astral que envolveu o comentarista ao seguir os embates entre Obama e Romney. Isso a despeito de os americanos ainda estarem sufocados pela crise e de haver muito que debater sobre como sair dela e sobre o papel dos Estados Unidos em um mundo cheio de incertezas. Mas o cotidiano não se alimenta de decisões históricas...Como seria bom que pudéssemos apenas nos deliciar com a sensibilidade e a inteligência da crônica de Roberto Da Matta sobre os elos humanos que aparecem na novela Avenida Brasil, não tão diferentes dos que relacionam o antropólogo com seus objetos de estudo. Ela nos dá um banho de vida. Infelizmente, nesta semana não dá para falar apenas das estrelas. A dura realidade é que nela começou um julgamento histórico sobre o qual não faltaram palavras sensatas. Uns, como José Nêumanne, mostraram as falácias e enganos acerca do mensalão de maneira crua e direta. Outros, como Dora Kramer, desvendaram a falsa dicotomia entre julgamento técnico e julgamento político. Outros ainda, como Elio Gaspari, sem negar que torcer faz parte da alma humana, insistem em que o importante é que os magistrados julguem de maneira compreensível para o povo. Que não nos confundam com o jargão da toga. E há os que abrem o jogo, mostram suas apostas, como o Zuenir Ventura, para logo dizer que tudo é mero palpite, pois não se pode saber o que passa na cabeça dos julgadores.
Por mais que se deseje ser objetivo, tenho tentado, e por mais prudente que se deva ser na antevéspera do julgamento (no momento em que escrevo este artigo) é inegável a sensação de que talvez estejamos no começo de uma nova fase de consolidação das instituições democráticas. Existe também o temor de que ela se perca. É isso que produz ansiedade e faz com que os comentaristas mais perspicazes (incluo neles Merval Pereira) ao falar sobre o tema acabem por deixar transparecer o que gostariam que acontecesse. De minha parte torço para que não haja impunidade. Calo sobre quem deva ser punido e em que grau, mas não se deve obscurecer o essencial: houve crime.
No 247Embora, portanto, esteja engrossando o número dos obcecados com o mensalão, não posso esconder certa perplexidade diante da despreocupação com que recebemos as notícias sobre a crise internacional como se, de fato, a teoria da marolinha tivesse substituído o bom senso na economia. Não dá para ignorar que com toda a inundação de dólares a baixo custo, feita pelo Fed americano, a economia do país não reage. Na Europa, por mais que seu Banco Central se diga disposto a cobrir qualquer parada dos especuladores, os mecanismos para tornar efetiva a gabolice estão longe da vista. Resultado: mal estar social e desemprego crescente. A própria China, bastião da grandeza capitalista mundial, parece mergulhar em taxas decrescentes de crescimento, as quais, se bem nos deem água na boca (entre 6% e 7 %), são insuficientes para atender aos reclamos dos chineses e, mais ainda, para sustentar a maré dos preços elevados das matérias-primas, principalmente minerais.Tudo indica, portanto, que os efeitos da crise mundial, somados à inércia nas transformações de fundo da economia que marcou o governo Lula, acabaram por levar nossa economia senão às cordas, ao canto do ringue. O governo atual, não querendo beijar a cruz, embora já ajoelhado diante da realidade, despejou uma série de paliativos de todos conhecida: redução setorial de impostos, créditos de mãos beijadas a alguns setores beneficiados, expansão dos gastos públicos correntes e até desvalorizações da moeda e redução das taxas de juros.Em situações “normais” de crise, o receituário funcionaria. Um pouco de sustentação da demanda, jogando-se nos ombros de Keynes a responsabilidade pela ligeireza de certas medidas, animaria o consumo e daria aos empresários o apetite para investir. Diante, entretanto, da duração e da profundidade da crise atual, é pouco. Serão necessárias medidas verdadeiramente keynesianas que dizem respeito à sustentabilidade dos investimentos, públicos e privados, e ao incremento da produtividade. Desafio duro de roer e que não se pode levar adiante só com os recursos públicos nas mãos de uma burocracia politizada.É este o desafio que o governo Dilma Rousseff tem pela frente. Quem sabe, premido pelas circunstâncias, ele finalmente reconheça, na prática, o que o lulo-petismo sempre negou: que as reformas que meu governo iniciou precisam ser apoiadas e retomadas com maior vigor. Nem as estradas, nem os aeroportos e muito menos as fontes de energia darão o salto necessário sem alguma forma de privatização ou de concessão. Elas terão de vir se quisermos de fato crescer mais aceleradamente. Só com estabilidade jurídica, aceleração dos investimentos em infraestrutura e educação e melhor balanceamento energético será possível despertar, não apenas como está na moda dizer-se, o “espírito animal” dos empresários, mas a crença de todos nós no futuro do Brasil.Ao contribuir para a consolidação da Justiça como um valor, parte essencial da modernização do Brasil, o julgamento do mensalão poderá ser um marco histórico. Basta que seja sereno e justo para injetar mais ânimo em nossa política e para que esta volte a olhar o país com a clareza de que somos um país capaz de andar com as próprias pernas graças a nossa seriedade e aos conhecimentos que desenvolvemos. Só assim deixaremos de flutuar ao sabor das ondas favoráveis às economias primário-exportadoras para poder dar rumo próprio a nosso futuro.
Supremos poderes
4 de Agosto de 2012, 21:00 - sem comentários aindaJurista Oscar Vilhena Vieira explica por que o STF brasileiro, hoje, é até mais poderoso que a Suprema Corte americana
Corte já conseguiu para si até a prerrogativa de derrubar emendas constitucionais Dida Sampaio/AE |
Nas transmissões ao vivo da TV ou repicadas em tempo real pela internet, nas páginas dos jornais ou nas revistas semanais, as atenções do País estiveram voltadas para ela: a corte. Desde o início do julgamento da Ação Penal 470, o famoso mensalão, na quinta-feira, os primeiros lances do Supremo Tribunal Federal (STF) eclipsaram até os debates dos candidatos a prefeito e só encontraram rival na audiência dos Jogos Olímpicos de Londres.
Desde a tensão do primeiro dia, quando o ministro revisor Ricardo Lewandowski, ao acolher pedido de desmembramento do processo feito pelo advogado Márcio Thomaz Bastos, foi rebatido com um "termo forte" pelo relator Joaquim Barbosa: "deslealdade". Passando pelo momento em que o ministro José Antônio Dias Toffoli se apresentou para o jogo, ignorando pressões para que se declarasse impedido de julgar. E prosseguindo no lançamento da detalhada peça acusatória do procurador-geral Roberto Gurgel, sobre o que chamou de "mais atrevido e escandaloso caso de corrupção e desvio de dinheiro público realizado no Brasil". Uma competição de retórica e argumentos em que, até agora, submergem em silêncio os réus e seus renomados advogados - exceção feita ao ex-ministro Thomaz Bastos.
"O Supremo jamais julgou um caso desses", explica o jurista Oscar Vilhena Vieira, que entende como poucos o protagonismo atlético que o STF tem exercido na modalidade "instituições brasileiras". Professor e coordenador do programa de mestrado da Direito GV, em São Paulo, ele é autor de um dos mais instigantes ensaios sobre a mais alta corte do País, intitulado Supremocracia.
Na entrevista a seguir, Vilhena Vieira mostra como, ao acumular funções de órgão de última instância e corte constitucional guardiã de uma Carta Magna ambiciosa como a de 1988, o STF ganhou enorme musculatura num contexto político de "amesquinhamento" do Poder Legislativo. E, para vencer seus desafios, alerta o professor, ele deve abrir mão de arbitrar questões eminentemente políticas e tomar suas decisões de maneira cada vez mais colegiada.
Por que o sr. diz que o Supremo jamais julgou um caso como este?
Porque, especialmente a partir de 1988, o STF agregou o que em outros países do mundo está distribuído em uma série de órgãos jurisdicionais. Desde sua criação, em 1891, ele vem exercendo função de órgão de última instância, que revê as decisões de todos os tribunais inferiores - um volume enorme. E começou, um pouco em 1937, um tanto mais na década de 1960 durante o regime militar, e de maneira intensiva a partir da Constituinte de 1988, a função de corte constitucional - que é a de julgar a constitucionalidade de um ato ou lei. Isso é o que dá ao Supremo o destaque que vemos quase todos os dias nos jornais e na TV: ao discutir se a lei que permite a pesquisa de células-tronco é válida ou não, se a que define cotas para as universidades é válida ou não, se a de desarmamento é válida ou não. Mas em relação a sua terceira atribuição, que a Constituição de 88 consolidou, que é o julgamento de autoridades, muito pouco se viu até agora. A parte civil, sim, mas na criminal nós vemos que há uma enorme fila de processos: hoje são mais de 250 deputados aguardando julgamento no STF. Nesse sentido, ele inaugura uma nova etapa, julgando um grande caso criminal envolvendo autoridades.
Embora o STF tenha estado diversas vezes nas manchetes, durante o julgamento do mensalão estará no centro do debate político nacional. Os holofotes afetam a corte?
Se fosse uma corte tradicional sueca ou austríaca, talvez sim. Mas não podemos atribuir ao Supremo brasileiro uma posição de neófito nesse jogo. Ao longo dos últimos anos ele tem assumido a competência - muito incomum para um tribunal - de tomar decisões finais sobre questões de alta relevância política, econômica, moral e religiosa. É um tribunal experimentado, com tensões internas, mas que têm sabido resolvê-las institucionalmente. Se a visibilidade o afeta? Tomemos como exemplo o julgamento do presidente Collor. Por mais que ele tenha sofrido processo de impeachment, tenha sido execrado publicamente e a imprensa tenha dito o que disse dele, o STF o absolveu. E tem feito isso com a maior tranquilidade. Há ministros que não têm a menor preocupação em serem voto vencido ou em tomar decisões que contrariem o senso comum. É evidente que o Supremo sabe que tem de prestar contas à sociedade, que ela o está fiscalizando e que isso impõe um ônus enorme. Mas eu não teria o medo de que, no atual julgamento, o Supremo fosse levado a uma posição que ele não quer ter. Até porque não há desestabilização institucional em jogo: não estamos julgando um presidente em exercício ou uma causa que afete interesses mais diretos das Forças Armadas, por exemplo.
Forças políticas que se digladiam no julgamento pediram o afastamento de ministros. Para uns, José Antônio Dias Toffoli deveria declarar-se impedido por ter sido advogado do PT. Outros alegam que Gilmar Mendes é que deveria se afastar, pelo conflito que teve com o ex-presidente Lula. Quem tem razão?
Esse é um problema pelo qual passam todos os juízes do mundo. Não precisa ser da Suprema Corte: você imagina lá em Paraibuna (interior paulista), de onde eu venho, o juiz certamente estudou com um no primário, namorou outra, foi chefe do terceiro, trabalhou como estagiário no escritório do quarto. Isso é interessante que a população entenda: nós, do meio jurídico, temos uma comunidade de advogados, juristas, pessoas que se conhecem e travam contatos profissionais umas com as outras. O que o Código de Processo Civil determina é que existem algumas condições objetivas em que se está impedido de julgar por não se ter a imparcialidade. Aparentemente, o que nós temos nesse julgamento é que as condições impeditivas objetivas não estão presentes. Imagine o seguinte: Toffoli foi advogado-geral da União, assim como o ministro Mendes no governo FHC e Celso de Mello na presidência Sarney. Então eles não vão poder julgar nenhuma causa da União? Não existe isso. Antes de se chegar ao STF ninguém é escoteiro: foi-se procurador-geral, juiz do Tribunal de Justiça, advogado. Senão, só um professor que não advogou poderia vir a ser ministro do Supremo.
Dessa forma parece que cabe exclusivamente ao magistrado declarar-se impedido.
Claro que se houver uma dúvida contundente de que ele não está sendo honesto com isso, o procurador-geral da República está lá para dizer: "Existe aqui uma série de elementos que comprometem a imparcialidade..." Caberia a ele pedir. Da mesma forma, se os advogados dos réus entendessem que Gilmar Mendes não poderia participar, teriam solicitado isso. A priori todos os ministros atuaram em mil casos e nada impede, inclusive, que votem contra aquilo que já sustentaram enquanto advogados ou consultores de clientes.
E a afirmação do ex-presidente Fernando Henrique de que embora o STF julgue pela lei ele deve também ouvir a opinião pública?
Eu não vou interpretar o que o ex-presidente Fernando Henrique acha. O que me parece fundamental é o seguinte: claro que o STF não é um órgão alienado da sociedade brasileira. Como, aliás, nenhum juiz de comarca. Imagine quando acontece o homicídio de uma criança em uma pequena cidade do interior. É evidente que há uma comoção e que o juiz tem sua opinião e intuições sobre aquilo. É da natureza da justiça humana. Da mesma forma que um jornalista carrega para o trabalho as suas concepções e simpatias. Agora, em ambos os casos o exercício da profissão é tentar fazer a distinção entre aquilo que acho, aquilo de que gosto, daquilo que são os fatos apresentados. Nestes últimos anos o Supremo tem demonstrado que dialoga com a sociedade. Todas as vezes em que o STF criou audiências públicas para discutir certos temas ele vocaliza isso: "Quero ouvir a sociedade sobre as cotas, ou os cientistas sobre as células-tronco". Mas no fundo ele tem que justificar sua decisão do ponto de vista jurídico - e é isso o que distingue suas decisões das do Parlamento. A legitimidade do Supremo decorre de sua capacidade de justificar juridicamente as decisões.
No ensaio Supremocracia, o sr. afirma que o processo de expansão da autoridade dos tribunais no mundo adquiriu, no Brasil, contornos mais acentuados. Por quê?
A meu ver, no Brasil ocorreu uma situação razoavelmente distinta da de outros países. A Constituição de 88 é extremamente ambiciosa. Ela quer dizer como o Estado, a sociedade, a economia vão funcionar. Há constituições no mundo muito mais discretas, que se propõem a regular apenas a relação entre os poderes. A nossa fala de sistemas tributário e previdenciário, direito penal e financeiro... Ela não só quer regular tudo como quer mudar muitas coisas: afirma que a função do Estado é reduzir a desigualdade, por exemplo. É uma Constituição que busca dirigir a sociedade brasileira em todos os seus aspectos. É um diferencial mesmo em relação a outras Constituições do mundo com essa mesma oratória. Por exemplo, a indiana, extremamente ambiciosa também, trata desses aspectos apenas como princípios que regem o Estado. Mesmo a alemã, que as pessoas dizem ser uma Constituição social, tampouco especifica as medidas para se atingir determinado fim. A brasileira, não. Ela diz: "25% da arrecadação tributária de Estados e Municípios devem ser aplicados na educação". É uma Constituição que dá ordens a todos os setores da sociedade e atribui ao STF a função de guardá-la. O STF é um órgão ubíquo porque tem que guardar uma Constituição ubíqua.
Foi ela que conferiu tantos poderes ao STF? É a razão pela qual o Supremo sai de um órgão razoavelmente discreto na organização da República para a proeminência que vemos hoje. Outra questão, também de matriz institucional, é a junção de atribuições de que falei. No pós-guerra, diversos países - como a Alemanha em 1949, a Itália em 1947, Portugal, Espanha, África do Sul e Hungria - optaram por manter sua suprema corte com funções de órgão de revisão e criar uma nova, com funções de órgão constitucional. No Brasil, nós juntamos tudo. Ou seja, além de a Constituição ser muito grande, deu-se a um mesmo órgão muitas atribuições: guardar a Constituição, rever os atos do Judiciário e, como estamos vendo agora, julgar casos em primeira instância relativos a altas autoridades do País. É isso que a meu ver leva a uma "supremocracia". Com outra característica ainda mais peculiar: o poder de controlar a constitucionalidade de emendas à Constituição. Se o Congresso faz uma lei, o Supremo não gosta e os parlamentares em resposta aprovam uma emenda constitucional, o STF pode derrubá-la também, argumentando que a emenda fere "as cláusulas pétreas da Constituição". Esse mecanismo poucos países têm, e os que tem não o exercem. É por isso que, tecnicamente, o STF é mais poderoso do que a Suprema Corte americana.
Essa proeminência dada ao STF aponta para uma fragilidade do sistema representativo brasileiro, segundo o sr. Por quê?
Vários analistas têm dito que temos no Brasil hoje uma democracia em que se delegaram funções do Congresso. Por razões de estrutura institucional, mais especialmente a presença das medidas provisórias, a iniciativa legislativa do presidente da República e a capacidade que ele tem de determinar a agenda do Congresso, teria havido uma delegação de competências para o Executivo. O Legislativo brasileiro foi muito amesquinhado. E o Executivo, dado a pluralidade de partidos, tem sempre que formar uma base de sustentação ampla - fato que estaria inclusive, como se discute, na raiz do mensalão. Há uma pesquisa muito importante do (cientista político) Fernando Limongi que comprova essa realidade: o grau de sucesso nas proposições de um presidente no Brasil é muito alto. Enquanto um presidente americano tem às vezes enorme dificuldade em aprovar certos projetos no Congresso, aqui temos quase o índice de sucesso de um regime parlamentarista. O que eu digo no trabalho é que, diante dessa mutação do papel do Legislativo, as decisões de natureza política mais importantes tomadas pelo presidente com apoio de sua base no Congresso prescindem do debate público, da mobilização da população.
De que maneira?
A decisão simplesmente sai. E aí o STF vira o locus onde os derrotados vão questioná-la. Não é que o Supremo faça o debate público, mas ele é organizado a partir de uma decisão judicial. Note que nos engajamos na discussão sobre o aborto dos fetos anencéfalos ou sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo a partir do momento em que tais temas chegaram ao STF. Lá se manifestaram grupos e movimentos sociais, talvez porque já não se sintam representados no Congresso ou não encontrem ali a polarização adequada ao debate. Nesse sentido, o STF faz uma substituição quase que simbólica do Legislativo, como articulador do debate público. Embora as decisões concretas sejam tomadas no Congresso com hegemonia forte do Executivo, é o STF que faz o double check, revendo-as e colocando-as em discussão.
Embora tenha aspectos positivos, o sr. diz que a 'supremocracia' gera tensões no modelo institucional brasileiro. Como contorná-las?
Existem dois problemas que deveríamos atacar, um deles ao qual vamos assistir de maneira muito forte nos próximos dias. Tribunais de última instância com função constitucional são órgãos colegiados: discutem, maturam uma decisão e a maioria formada representa a vontade da corte. Em outros países, a decisão da corte é normalmente lavrada por um dos juízes que convenceu os outros de que sua opinião era mais correta ou que foi capaz de juntar todas as opiniões e construir um voto de consenso. O voto da corte. Se alguém discorda, escreve seu voto em apartado. Isso não acontece no Brasil. É evidente que os juízes do STF discutem, batem boca, etc., mas cada um faz seu voto. E um órgão com tanto poder assim deveria exercê-lo de forma mais colegiada, como: "Esta não é a opinião do ministro Marco Aurélio ou do ministro Toffoli, é a da corte. Estamos em consenso quanto a isso". É um aspecto ainda mais preocupante quando se leva em conta que há uma quantidade enorme de decisões - cerca de 95% delas - tomadas por um único ministro. A concessão da liminar, o agravo, etc., são julgados individualmente, o que põe em risco a integridade das decisões da corte, que é o que minimiza a possibilidade de erro. Mas a mudança mais relevante seria o Supremo ter uma boa doutrina sobre o que chamamos de "deferência". São aquelas questões em que ele não deve se imiscuir por serem estritamente políticas. Não se trata de omissão, mas de uma deferência à democracia, o reconhecimento de que certos temas só podem ser decididos por representantes eleitos pelo povo. O STF, que avançou em face de uma certa omissão simbólica do Legislativo, não pode substituir as opiniões dos poderes democráticos pela sua própria. É o que resta ao Supremo esclarecer, definindo uma doutrina a respeito de qual é o seu papel.
Oscar Vilhena Vieira, jurista, professor e coordenador do mestrado da Direito GV, autor de SupremocraciaNo Estado de S.Paulo