"Aquele abraço", que é uma das canções mais tocadas de Gilberto Gil e regravada por meio mundo de intérpretes, é uma ironia que, tudo leva a crer, ninguém nunca parou para perceber.
Ao contrário, a música sempre é cantada como se fosse (e não é) uma exaltação ao Rio de Janeiro fevereiro e março, à moça (garota) de Ipanema, ao Realengo e à torcida do Flamengo.
Na quarta-feira de cinzas de 1969 Gil saía da prisão (um quartel perto de Realengo) e rabiscaria a letra da canção num guardanapo, num vôo do Rio para a Bahia, às vésperas da viagem para o exílio em Londres.
Aquele abraço, um bordão do humorista Lilico, era um jeito irônico com que os soldados saudavam Gil, que estava preso porque sua arte incomodava a ditadura dos quartéis (e ainda tem gente pedindo a volta desse regime em nosso país).
Os soldados que cortaram à força a barba de Gil e os longos cabelos de Gil e Cateano, eram os mesmos que lhes sorriam sarcasticamente -na tortura psicológica – e lhes diziam: “Aquele abraço”.
O país era governado pelos militares, que tomaram o poder com um golpe. E passaram a prender, torturar e matar cidadãos, jornalistas, escritores e artistas que eles olhassem para a cara e achassem que eram comunistas.
Gilberto Gil e Caetano Veloso, para a ditadura militar, parecia que eram comunistas. E foram presos porque pareciam ser comunistas. E depois foram exilados (expulsos) do seu país porque pareciam comunistas.
A letra foi feita naquele contexto, ele preso, depois expulso, o país vivendo os anos de chumbo, as prisões, as torturas, a censura. Uma música só era liberada se dissesse que o Rio (o Brasil) é lindo.
"Foi uma catarse para representar aquele momento", escreveu Gil em sua página oficial. Catarse é a "purgação ou expulsão do que é estranho à essência ou natureza de um ser e que, por isso, o corrompe".
Há uma clara ironia em "Alô, alô, Realengo/ Aquele abraço", pois Realengo representa a prisão, o quartel e, portanto, o regime militar e a censura, elementos de opressão e repressão de que Gil era vítima.
Nos versos "Alô, torcida do Flamengo/ Aquele abraço", Gil - um torcedor tricolor no Rio e na Bahia - usa a "saudação" para cutucar o rival, que acabara de perder um título para o seu Fluminense.
Na letra, o Rio representa o Brasil. O Rio, nos versos, é a imagem símbolo do país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Assim, quando Gil diz que o Rio (Brasil) continua lindo, ele usa a figura de linguagem da ironia ou antífrase.
Porque, naqueles dias, naqueles tempos sombrios, só um artista alienado para só “falar de coisas boas” - “Para não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, era outro título irônico, da mesma forma que “Aquele abraço”.
É possível que, na letra, a única homenagem de Gil tenha sido a Chacrinha. Ainda assim, percebe-se que, querendo ou não, há uma referência a circo (panis et circenses), na alusão ao "velho palhaço”, que “continua balançando a pança".
Já no final da letra, Gil se revela mais, quando diz: "Meu caminho pelo mundo/ Eu mesmo traço/ A Bahia já me deu, graças a Deus, régua e compasso/ Quem sabe de mim sou eu [...] E pra você que me esqueceu/ Aquele abraço".
Prestem atenção no verso - "Quem sabe de mim sou eu". Há aqui uma dor, uma mágoa. É como se ele dissesse "Só eu sei o que passei nesta prisão, nesta cidade, neste país, neste regime; só eu sei o que sofri".
No ano seguinte, Gil já em Londres, o Brasil iria conceder um prêmio a ele por essa música. Gil recusou. E escreveu no Pasquim: "Os que cortaram meus cabelos e minha barba pensam que, com Aquele Abraço, eu pedi perdão".
Ainda segundo ele, “Aquele abraço não significa que eu tenha me tornado bom crioulo puxador de samba; eles querem que sejamos negros que sabem qual é o seu lugar; eu [recuso] não estou mais servindo a mesa dos senhores brancos”.
Em resumo, a exaltação ao Rio - cidade maravilhosa, cheia de encantos mil - nesta letra não passa de uma bela antífrase, uma belíssima ironia. Assim como são irônicas as referências à garota de Ipanema, ao Realengo e obivamente à torcida do Flamengo.
Por Marcelo Torres.