Foram quase dois anos de preparação para a Agência Pública receber nesta semana uma turma de formação em jornalismo investigativo. Se valeu a pena, Tumi Matis, Puré Juma, Helena Corezomaé, Cocokaroti Metuktire, Maikson Serrão e Yolis Lión poderão dizer neste próximo domingo. De nosso lado, o aprendizado, as surpresas positivas e a fé na qualidade dos trabalhos que virão dali têm superado as expectativas.
A ideia de oferecer oficinas de formação para jornalistas e comunicadores de povos originários veio depois de 18 meses de trabalho com dez microbolsistas indígenas no moldes do programa que fazemos desde 2012 para dar oportunidade a jornalistas de realizar sua “pauta dos sonhos” – até o ano passado, foram 83 microbolsas ofertadas. Mas o programa para os indígenas começou dez anos depois, em 2022.
“Moro na terra indígena mais desmatada do Brasil”, escreveu, reforçando a importância de participar. “Mas não sou jornalista”, explicou.
Perguntei se ele já tinha feito alguma reportagem antes – afinal, o programa de microbolsas até então era dedicado apenas a profissionais de jornalismo. Além disso, a experiência como repórter, o risco para a segurança do profissional e a viabilidade da pauta estavam entre nossos critérios de seleção. Nos três quesitos, a proposta não se encaixava.
Por outro lado, o pedido era tão justo que prometi pensar em um projeto específico, adequado à realidade dos comunicadores indígenas – que nem sempre têm experiência em jornalismo, correm riscos ao fazer denúncias, sobretudo se vivem no território, mas desempenham um papel informativo importante dentro de comunidades e associações.
A diretoria da Pública abraçou o desafio com entusiasmo. Sabíamos que teríamos um aliado fundamental para elaborar esse projeto, o que o tornava mais viável: o jornalista e doutor em antropologia Spensy Pimentel, amigo de longa data e editor da primeira grande investigação socioambiental que realizamos, o “Amazônia Pública”, de 2012.
Spensy é coordenador do curso de jornalismo da Universidade Federal do Sul da Bahia, onde o sistema de cotas facilitou o ingresso de estudantes indígenas daquela região. Também é convidado frequente dos congressos de jornalismo, em que orienta os profissionais que cobrem o tema – quase 100% não indígenas e sem conhecimento da complexidade de culturas e realidades. Uma ponte entre muitos mundos.
Nosso amigo se empolgou de imediato, e depois de meses de trabalho, que envolveu o empenho de muita gente da Pública, conseguimos realizar o primeiro concurso de microbolsas para comunicadores indígenas, com cinco selecionados em 2022 e mais cinco premiados em 2023. Apesar das dificuldades vividas no decorrer desse período – de barreiras culturais a distâncias gigantes e ameaças no território –, quase todos os trabalhos foram publicados (um foi retirado do ar a pedido do autor, que foi ameaçado, e o outro não pôde ser concluído por dificuldades logísticas).
A partir do que aprendemos nessa experiência, decidimos avançar um passo, ou, como prefere o Spensy, recuar para uma primeira etapa, e assim aprimorar o processo de aprendizado mútuo: antes de sair para realizar as pautas, teríamos oficinas presenciais de uma semana para os seis microbolsistas selecionados – três homens e três mulheres de idades e regiões diferentes – na sede da Pública, em São Paulo.
Ministradas por profissionais da Pública e parceiros na área do direito, da documentação audiovisual e da segurança digital, as oficinas, que começaram na segunda-feira, têm como objetivo afinar pautas e métodos antes do processo de apuração das reportagens, quando mentores e indígenas trabalharão juntos até a publicação dos trabalhos em nosso site.
Em resumo: se as primeiras reportagens são como “gritos de socorro” de comunidades indígenas, a intenção agora é que eles se apropriem das técnicas do jornalismo investigativo para qualificar as denúncias, apontando responsáveis e cobrando o poder público assentados em bases sólidas: evidências, dados, depoimentos, documentos.
Ainda tem muita água para rolar debaixo dessas pontes, mas o certo é que essa turma já tem nos ensinado muito sobre resistência cultural, racismo, estereótipos e outras violências e nos presenteado todos os dias com novos olhares – e uma curiosidade infinita – sobre autonomia indígena e o jornalismo como ferramenta de justiça social e conhecimento.
Também aprendemos muito sobre o valor da convivência solidária – não apenas em relação a nós, “brancos”, mas entre eles. Afinal, a mesma sala de aula reune indígenas que atuam com sucesso no mercado formal de trabalho e comunicadores que nunca pisaram em uma redação ou sequer saíram de sua região. Pois é assim que tem funcionado esse processo de aprendizado – e muito bem.
Leio nos jornais que também nesta mesma semana, na sede do CNPq, em Brasília, aconteceu o 1o Encontro Internacional de Pesquisadores Indígenas entre Aldeias e Universidades. Além de pesquisadores indígenas de cinco países da América Latina, participaram representantes do governo federal, professores, estudantes, cientistas e personalidades como o cacique Raoni. A ideia é unir conhecimento tradicional e ciência acadêmica para encontrar respostas globais e locais para a emergência planetária dentro dos princípios da justiça climática.
Os indígenas já romperam barreiras na universidade, na ciência, nos tribunais, no Congresso, até no Executivo. Sempre com avanço para o desenvolvimento do conhecimento e da democracia em todos esses campos.
Está na hora de ocuparem as redações para o bem do jornalismo e de todos nós.
Por: Marina Amaral - Diretora Executiva da Agência Pública.