De senhor à raça superior era apenas um passo; portanto, o direito de dominar, a inquestionável superioridade do burguês como espécie, implicava não apenas inferioridade mas idealmente uma inferioridade aceita nas relações entre homens e mulheres (que mais uma vez simbolizavam muito sobre a visão burguesa do mundo). Os trabalhadores, como as mulheres, deveriam ser leais e satisfeitos. Se não o fossem, era devido àquela figura crucial do universo social da burguesia, “o agitador de fora”. Embora nada fosse mais óbvio a olho nu que o fato de que os membros dos sindicatos eram sempre os melhores trabalhadores, os mais inteligentes, os mais preparados, o mito do “agitador de fora” explorando as mentes simples mas basicamente operativas dos trabalhadores era indestrutível. (Eric Hobsbawn, A Era do Capital).
O agitador de fora, Luiz Inácio, é o centro das atenções, de novo. Essa figura extraordinária, que dominou a disputa de poder no Brasil, desde os anos 1970, e que projetou-se para o cenário internacional, alinhando-se às grandes referências do planeta. Começou agitando as mentes simples dos metalúrgicos de São Bernardo, afirmando que não deveriam aceitar o arrocho salarial imposto pela ditadura. Sim, afirmava que era possível derrotar a ditadura na questão salarial. Por conta disso, tornou-se peça importante da luta pela redemocratização do país. Claro que os políticos profissionais e os sociólogos aspirantes a político profissional definiram um papel restrito para ele. Ser um peão no jogo de xadrez da luta contra o autoritarismo.
O agitador de fora não se limitou. Liderou a fundação de um partido político, fadado ao fracasso, na visão de políticos e sociólogos aspirantes. Não havia como dar certo. E não foi fácil superar as primeiras frustrações. Mas, talvez por teimosia, também comandou a criação de uma central sindical, que foi acusada de promover a divisão dos trabalhadores. No partido e na central, surgia uma geração de jovens agitadores de fora. Na luta contra as manipulações macroeconômicas dos governos que se sucederam à ditadura, no debate sobre a igualdade racial e da questão de gênero, nos embates ambientais, na discussão sobre as estratégias da soberania nacional, lá estavam incontáveis agitadores de fora, seguidores e construtores da imagem do Luiz Inácio.
Contra o agitador de fora, muitas acusações, intrigas, mentiras. Casa no Morumbi e no Guarujá, hábitos burgueses, fofocas e piadas. Era ignorante e manipulador. Aproveitador e demagogo. Como o partido que não podia dar certo crescia, começou a despertar inveja nos profissionais e nos aspirantes. A prova de que o time modesto do agitador podia jogar na primeira divisão veio em 1988, com a eleição de Erundina, Olívio e Vitor Buaiz. O partido fadado ao fracasso agitava o imaginário político do país. Um ano depois, o agitador ousou propor-se presidente da República e, pior, foi ao segundo turno, exigindo que o burguês superior unificasse sua tropa em torno de Collor e usasse a manipulação midiática para derrotar o agitador de fora.
O agitador Luiz Inácio estava definitivamente na primeira divisão, com seu time estrelado. Como o presidente da burguesia superior não termina o mandato, eles resolvem que um dos sociólogos aspirantes seria o nome ideal para ser o anti-Lula. Afinal, tinha um verniz de intelectualidade esquerdista, ainda que falsa. O professor seria o anteparo para manter a burguesia calma e não permitir que o agitador de fora, teimoso em disputar, fosse capaz de alcançar a vitória. Mas, ao final de oito anos de sôfrega adesão ao Consenso de Washington, o país estava à beira do abismo, com desemprego nas nuvens e exclusão social ainda mais crítica. O agitador de fora foi eleito para demonstrar sua inferioridade e fracassar, pedagogicamente cair por terra em seu delírio de grandeza.
Mas, ora vejam, não foi bem isso o que a vida nos apresentou. O agitador de fora, sempre atacado, ironizado e avacalhado pela mídia burguesa, superou suas crises, mobilizou energias, inclusive de parcela da burguesia superior, ávida por lucros, e conduziu o país a um renascimento de autoestima. Saneou as contas, gerou crescimento e emprego, acumulou reservas, construiu programas sociais e projetou uma nova política externa, na qual era o Brasil um agitador de fora na cena diplomática. Fortaleceu a Petrobras, que descobriu as formidáveis reservas do pré-sal. Tratou de igualdade racial, dos direitos das mulheres, da cidadania de gays e lésbicas, reconheceu terras indígenas, ousou realizar a transposição das águas, e reduziu a desigualdade. Tudo isso, apesar de um Congresso Nacional fisiológico, repleto de partidos de aluguel. Enfrentou a crise financeira mundial com ousadia, fazendo o tsunami reconhecer que poderia ser tido como marolinha se enfrentado com determinação. O agitador de fora fez sua sucessão, com a primeira mulher a presidir o país, embora as mulheres da burguesia superior torcessem o nariz para aquela militante que superou a prisão, a tortura e um câncer.
Os burgueses superiores, depois de tantas derrotas, decidiram que era preciso romper as regras para derrotar o time do agitador. Juízes devidamente orientados garantiriam a legalidade dos gols de mão. Golpe, que golpe?? Trata-se de impedimento da mandatária que pedalou. As instituições estão funcionando.
Mas, rapidamente, a torcida percebe a fraude, e nota que a maracutaia era pra empobrecer a própria torcida, retirar seus direitos trabalhistas e previdenciários, entregar o patrimônio da Nação, inclusive o petróleo do pré-sal, que era o passaporte para um outro Brasil possível. Como o assunto ficou grande demais para a superioridade burguesa tupiniquim, foi preciso da burguesia do Norte. Afinal, geopolítica do petróleo e os movimentos para criar o Banco dos BRICS e o Fundo dos BRICS, ousando desafiar FMI e Banco Mundial são assuntos importantes em Washington. Esse é um trabalho para Uncle Sam.
É preciso colocar o agitador de fora em seu devido lugar. Mas a torcida não abandona as arquibancadas e pede em coro, a cada nova pesquisa, a escalação do agitador, meia-esquerda de tiro certeiro. O desemprego, a desesperança, pedem de novo um sonhador para sonhar um sonho bom.
Perplexa, a burguesia superior acelera o passo. Algo precisa ser feito, nem que precisemos romper a tradição judiciária, de só retornar em fevereiro e, ainda em janeiro, reafirmar o que a mídia burguesa afirma e reafirma. O agitador é corrupto. O agitador não será escalado, não terá condições legais de disputar mais uma final. O agitador tem que ser preso, humilhado, massacrado.
O agitador e seu time de agitadores não se resignam. Vão, mais uma vez, encarar a superioridade burguesa. Vão agitar os pobres, os operários, as mulheres, os negros, os índios, os gays e lésbicas, pra mostrar que não somos um bando num território, mas podemos ser uma Nação, num país. Uma sociedade, sem superiores nem inferiores.
O agitador despertou nos operários a vontade de lutar, mostrou que era possível um partido dos trabalhadores, uma central sindical de combate, que mulheres e negros devem lutar, que é possível vencer eleições, contra a máquina midiática, que é possível gerar milhões de empregos e fortalecer o salário mínimo, que empregados domésticos são trabalhadores. Que o Brasil pode falar grosso com Washington e ser irmão de La Paz.
Os trabalhadores, como as mulheres, deveriam ser leais e obedientes. Mas tem sempre um agitador de fora pra atrapalhar o sono da burguesia. Não dá pra parar um rio, quando ele corre pro mar, não dá pra calar um Brasil, quando ele quer cantar.
Ricardo Berzoini foi deputado federal por quatro mandatos, ex-presidente do Partido dos Trabalhadores, é ex-ministro da Previdência Social e do Trabalho, nos governos Lula e das Comunicações e Relações Institucionais no governo de Dilma Rousseff.