Neste 7 de novembro se completam 107 anos do início da Revolução Rússa, seguida de uma sucessão de experiências socialistas em diferentes países – como China, Vietnã, Coréia, Laos, Cuba, Mongólia e Leste Europeu –, além de outros processos revolucionários na Ásia, África e América, que se reivindicam socialistas.
Os fundadores do marxismo sempre manifestaram grande cautela em indicar “modelos” para a futura sociedade comunista, considerando que somente a experiência concreta das lutas do proletariado em distintos países poderia fundamentar uma teoria científica da revolução socialista:
“Em Marx não há nem rastro de utopismo, pois não inventa nem extrai de sua fantasia uma ‘nova’ sociedade. Não, Marx estuda como um processo histórico natural como nasce a nova sociedade da velha, estuda as formas de transição da segunda à primeira. Toma a experiência real do movimento proletário de massas e se esforça em tirar dela ensinamentos práticos.” (LENIN, V.I. O Estado e a Revolução)
Marx e Engels deram demonstração dessa compreensão ao estudarem com grande atenção a experiência de apenas 72 dias da Comuna de Paris, em 1871, corrigindo e desenvolvendo, a partir dela, a sua teoria sobre o socialismo, especialmente quanto à forma que deveria assumir o Estado do proletariado:
“A Comuna devia ser (…) executiva e legislativa ao mesmo tempo. (…) todos que desempenhavam cargos públicos deviam receber salários de operários. (…) Assim como os demais funcionários públicos, os magistrados e juízes deviam ser funcionários eletivos, responsáveis e demissíveis. (…) a Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política afinal descoberta para levar a cabo a emancipação econômica do trabalho.”
(MARX, Karl. Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra civil na França em 1871)
Da mesma forma, Lenin debruçou-se atentamente sobre os diversos problemas teóricos e práticos da experiência da transição socialista na primeira revolução proletária –, abordando temas como a aliança operário-camponesa, a ditadura do proletariado, a existência de formas distintas de propriedade e de produção nas primeiras etapas do socialismo, etc.
Os enormes êxitos obtidos pela URSS nesse processo – apesar dos naturais erros e insuficiências da primeira experiência do proletariado mundial – levaram a uma absolutização dos caminhos desbravados por ela e à sua transformação em um “modelo universal” para a construção socialista, nos mais diferentes países.
O dogmatismo e a escolástica substituíram em grande parte o marxismo, dificultando a apreensão da realidade viva. Importantes reflexões de eminentes pensadores marxistas ficaram obscurecidas por “verdades absolutas oficiais”. Apesar disso – como os dogmas não têm o poder de aprisionar a vida – novas experiências e caminhos vieram à luz em distintos processos revolucionários, principalmente em países semi coloniais e coloniais como a China, Vietnã, Coréia, Laos e Cuba, entre outros.
Seja em decorrência dos erros cometidos, seja como resultado do agressivo cerco imperialista e da acirrada luta de classes em nível internacional, a URSS e o Leste Europeu experimentaram primeiro a estagnação e a seguir a reversão de seus processos de transição socialista, culminando com o desmoronamento das chamadas “democracias populares” da Europa Oriental e o esfacelamento da URSS, com a subsequente restauração do capitalismo nesses países.
Já a China, Vietnã, Cuba, Coréia e Laos, persistiram na busca de caminhos próprios e inovadores para a transição socialista, e conseguiram impedir a reversão de seus processos revolucionários.
Todos esses processos acumularam uma enorme e variada experiência, que tem sido pouco estudada e carece de uma maior sistematização e teorização.
Alguns importantes ensinamentos já podem ser extraídos dessa difícil e contraditória caminhada: que não há um “modelo único” ou uma “receita universal” para a transição socialista; que a análise concreta da realidade concreta é decisiva para a vitória; que a transição socialista é mais longa do que se pensava e não é irreversível; que a consciência social joga um papel fundamental nesse processo; que a construção socialista passa necessariamente por várias etapas:
“Demos somente os primeiros passos para nos livrarmos do capitalismo e começar a transição para o socialismo. Não sabemos, não podemos saber quantas etapas de transição para o socialismo haverá ainda.” (LENIN,V.I. Obras Completas, vol. XXVII)
Mas a justa compreensão de que não devemos nos fixar em “modelos” ou “receitas” para o socialismo não pode nos fazer ignorar a importância e a necessidade de desenvolver uma “teoria da transição socialista” – renovada e não dogmática –, que leve em conta as especificidades de cada país. Da mesma maneira que a diversidade de formas assumidas pelo capitalismo nos distintos países não impediu que Marx desenvolvesse a sua teoria sobre o Capital e o Capitalismo.
Alguém poderia objetar que, para sermos fiéis a Marx, não deveríamos “especular” sobre o processo de transição do capitalismo ao comunismo. Passados mais de cem anos das mais variadas experiências nesse sentido – com os seus erros e os seus acertos – parece-nos completamente descabida essa objeção. Pois não podemos Confundir a negação de “modelos” e “receitas” para a revolução com a negação da teoria e da sua sistematização e generalização a partir da prática; pois “sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário”.
Outros podem argumentar que essa teoria renovada já existe e já está elaborada. Pergunto: onde? Nos manuais soviéticos, que teorizam sobre a sociedade socialista como “um modo de produção intermediário” entre o capitalismo e o comunismo? Com suas “leis próprias”? Em uma visão estática que (no nosso entender) converteu um “processo” em um “estado” ou “etapa”? Que generalizou a experiência baseada em uma realidade específica? Penso que não.
Ou, quem sabe, essa teoria de caráter geral sobre a transição socialista se encontra nas importantes e originais contribuições teóricas dos camaradas chineses, vietnamitas, cubanos, coreanos e laosianos, quando sistematizam as suas experiências concretas? Sem negar que aqui encontramos contribuições inestimáveis para uma teoria do socialismo para o século XXI, entendemos que ainda são desenvolvimentos teóricos voltados para suas realidades concretas, onde convivem questões gerais e questões particulares, específicas de cada processo.
A nossa afirmação da necessidade do desenvolvimento de uma teoria socialista para o século XXI, em resposta à crise do socialismo – que já perdura décadas – tampouco nega importantes contribuições que vários intelectuais marxistas deram ao longo desses quase cem anos, que precisam ser resgatadas.
Como não pretendemos “inventar a roda”, apontamos a necessidade de um trabalho coletivo do nosso partido, em conjunto com os partidos irmãos, no sentido de realizar um balanço histórico e teórico desses mais de cem anos de revoluções socialistas – acertando contas com seus erros e insuficiências – única forma de podermos apresentar aos trabalhadores de todo o mundo um socialismo renovado, alternativo ao capitalismo dos dias de hoje, em profunda crise. Como nos ensinou Lenin:
“O proletariado não teme reconhecer que a revolução realizou algumas coisas de maneira esplêndida e outras não. Todos os partidos revolucionários que sucumbiram no passado foram vencidos porque se superestimaram e não souberam avaliar onde estava sua força, nem falar de suas fraquezas.” (LENIN, V. I. Obras Completas, vol. XXIII)
Para ter resultados a médio-prazo, esse processo de pesquisa documental e investigação in loco das principais experiências socialistas, intercâmbio de opiniões com partidos irmãos e com a intelectualidade progressista, precisa ser planejado, incluindo especialização e distribuição de tarefas. A criação de grupos de estudo de temas ou processos revolucionários concretos, a realização de seminários internos e com os partidos irmãos – abertos à intelectualidade progressista e à academia – são algumas das alternativas possíveis.
Como a temática é muito ampla, é preciso delimitar alguns temas centrais para o debate.
Sem pretender esgotar o assunto, penso que se impõe, em primeiro lugar, uma análise histórica dos principais processos de transformação socialista, pois só poderá ser fecunda uma teoria que tenha por base as experiências revolucionárias concretas.
Em segundo lugar, é necessário identificar as principais questões teóricas enfrentadas nos diferentes processos de transição socialista. Como a multiplicidade de caminhos para construir a hegemonia revolucionária e efetivar a ruptura necessária para a transição socialista; a questão do Estado e da Democracia no socialismo; as relações entre Estado, Partido e massas trabalhadoras; a persistência da luta de classes no socialismo; o papel da consciência social e da revolucionarização das estruturas ideológicas na construção socialista; o socialismo como um processo contínuo de transição revolucionária entre o capitalismo e o comunismo (e não como um “modo de produção intermediário”):
“Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista medeia o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do proletariado.” (MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha)
No campo econômico, o papel do planejamento e do mercado durante a transição socialista; a existência de diferentes formas de propriedade e de produção; os mecanismos para a distribuição da riqueza e da produção; a combinação dos incentivos materiais e morais; a dialética entre as relações de produção e as forças produtivas durante as distintas fases da transição; o papel da ciência, da tecnologia e da inovação nas transformações socialistas; o socialismo e suas formas de integração internacional em um mundo cuja hegemonia ainda é capitalista-imperialista.
Estamos diante do desafio de um grande debate teórico sobre o passado, o presente e o futuro do socialismo, decisivo para que ele volte a ser uma alternativa real de transformação social para as amplas massas trabalhadoras de todo o mundo.
Em 1992, João Amazonas afirmou:
“A verdade é que vivemos uma crise do marxismo que já dura mais de 30 anos. E muita gente até hoje não se deu conta que essa é uma questão fundamental. Desde que os revisionistas ocuparam o poder na União Soviética, verificou-se a degenerescência do socialismo, com forte repercussão na teoria. […] Temos de nos debruçar seriamente sobre esse problema da crise do socialismo, temos de enfrentá-la, ou não conseguiremos passar à ofensiva contra o capitalismo e fazer a revolução. […] Afirmamos com muita consciência que, sem superar essa crise, não haverá revolução socialista, proletário-revolucionária, em nenhuma parte do mundo. […] Hoje, a direita avança por toda parte. […] O movimento de esquerda está em descenso. […] A ausência de uma teoria de vanguarda atualizada priva o movimento de massas do fator consciente. Como seria possível fazer a revolução prescindindo do fator consciente? […] Os operários, ao ouvir falar de um socialismo desatualizado, respondem que o socialismo fracassou na União Soviética e em toda parte. Não nos darão atenção. […] Estamos diante de uma tarefa de significação histórica a ser realizada […] nos sentimos muito pequenos diante da magnitude dessa tarefa. Impõe-se a conjugação de esforços no plano mundial. Se ainda não temos base suficiente para enfrenta-la devidamente, devemos, ao menos, começar a trabalhar nessa direção, compreendendo que sem teoria revolucionária não existe movimento revolucionário. Estagnada como se encontra, a teoria não poderá cumprir sua missão.” (AMAZONAS, João. Pela Unidade do Movimento Comunista)
O tempo urge.
Mãos à obra!