O caso julgado em 2009, Féret c. Bélgica, pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (CEDH ou TEDH), também conhecido como Tribunal de Estrasburgo, um tribunal internacional do Conselho da Europa que interpreta a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tem uma sentença que ajuda muito a compreender limites da liberdade de expressão e a caracterizar discursos nocivos e formas de expressão que propagam, incitam, promovem ou justificam o ódio, a discriminação racial, xenofobia e qualquer outra forma de ódio baseada em intolerância, agressividade e etnocentrismo, discriminação e hostilidade contra minorias, imigrantes e pessoas nascidas da imigração. Nessa decisão, por quatro votos a três, o TEDH considerou que não era contrária à liberdade de expressão a condenação pelo crime de incitação à discriminação imposto ao presidente do partido político de extrema-direita Frente Nacional pela divulgação de diversos panfletos nos quais exigia a expulsão de imigrantes irregulares da Bélgica.
A consequência imediata de tal caracterização é a exclusão desse tipo de conduta do âmbito da liberdade de expressão, criando doutrina e jurisprudência na Europa. Há restrições à liberdade de expressão no discurso político desde que existam razões imperiosas, como as já descritas por aqui. Esse precisa ser um princípio do mundo civilizado, que se aplique em todas as situações, independente do lado ideológico de quem profere o discurso abusivo. Tal posição protege o jogo político e qualifica a democracia. E não o contrário.
Estamos, no entanto, assistindo uma escalada de ódio e retrocesso na maior nação dita democrática do mundo. Nos Estados Unidos, o novo presidente promete sepultar (para usar um termo muito condizente com o fascismo necrófilo) investigações e barreiras ao discurso de ódio, além de transformar o discurso em ação contra imigrantes e minorias. Tudo isso com a parceria estratégica, poderosa e malévola de pelo menos um dos bilionários que detém a chave das vitrines digitais que hoje controlam e moldam o debate público. Elon Musk é um vilão de filme. Performático, excêntrico e assustador, que provoca, manipula e põe o mundo todo em perigo. É justo pensar mal dele e sucumbir à vontade de mandá-lo longe? Sim. Mas é efetivo e razoável entrar para a arena dos insultos?
Usar dos mesmos termos parece até infantil e demonstrativo da ausência de outros mecanismos para fazer o enfrentamento, não apenas a ele, face mais visível e patética, mas contra o poder cada vez maior das grandes plataformas na disputa política e humanista que precisamos realizar. O incontornável caminho da regulação das big techs, da ampliação da autonomia tecnológica e da normatização da IA em todos os níveis, deveria ser uma obsessão governamental, arquitetada com inteligência, estratégia e participação da sociedade.
Atentar contra a dignidade de grupos sociais, perverter o processo eleitoral, moldar um estilo de vida totalitário, manipular consciências, negar ciência e verdade, são fenômenos que tomam corpo e respondem com violência à crise capitalista que nos assola e poderá nos levar à extinção. Vejam, portanto, o tamanho do desafio e o papel da comunicação pública nesse emaranhado caótico que favorece os negócios mais espúrios.
A comunicação pública se ocupa dos acontecimentos que suscitam a participação e resposta dos vários atores na cena pública. Precisamos compreender e disputar essas posições. Para tanto, é imprescindível promover a integridade da informação, não apenas combater a fabricação de falsidades. Quanto mais límpida, assertiva, informativa, simples e atraente for a comunicação em torno dos assuntos de interesse público, maior nossa chance de mudar condutas e alcançar compreensões qualificadas democraticamente.
Nos coube um tempo de insultos, xingamentos, fórmulas estereotipadas que se impõem sobre os argumentos racionais, incompatíveis com um clima social sereno e de confiança. Também é tarefa política, moral e humanista o resgate de uma expressão democrática merecedora do bom senso e dos bons modos.
Seguindo nessa linha, precisamos reconhecer que sim foi um erro ocupar manchetes mundo afora com um desaforo ao bilionário perverso. A situação que envolveu a primeira-dama do Brasil em manifestação de insulto a Elon Musk é negativa por pelo menos três motivos: ele joga muito melhor na lama, partir para o insulto permite supor ausência de medidas realmente sérias e efetivas, e usar dos mesmos termos nos apequena e não nos diferencia, inclusive trai o motivo pelo qual muitos, mesmo não sendo petistas, votaram no presidente Lula.
Por fim, neste terreno movediço de redes sociais e o ímpeto da lacração, precisamos prestar atenção para o fato de que grupos minorizados são agredidos, mas não raro suas pautas justas são usadas como escudo para também praticar condutas ruins. Penso que o incidente ocorrido no G20 não se relaciona com nenhum tipo possível de empoderamento feminino ou autonomia política. Foi um lamentável deslize, sob holofotes não ignorados. Para ser voz pública coerente não basta muito engajamento digital. Precisa de acúmulo, conhecimento sobre as pautas e contextos que se pretende debater, consciência dos ritos e das consequências da posição que se ocupa e, mais importante, compromisso público com a representação que se tem e as causas em jogo. Como me disse um querido amigo no encontro do G20 na semana passada, precisamos estar prontos para exercer três papeis dependendo da situação: o de protagonista, o de coadjuvante e o de figurante. Em muitos casos, o de figurante é o mais sensato. E de insensatez estamos fartos.
Sandra Bitencourt Genro
Jornalista, doutora, pesquisadora do NUCOP, integrante do Conselho Consultivo do OBCOMP e coordenadora do Conselho Mídia e Democracia da FGV
Originalmente publicado no OBSERVATÓRIO DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA UFRGS