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‘Depois de trabalhar três meses em uma fazenda, não quiseram me pagar’

21 de Junho de 2017, 18:23 , por ONU Brasil - | No one following this article yet.
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Pedro Piauí (primeiro à direita), sua mulher e seus oito filhos. Foto: CPT

Pedro Piauí (primeiro à direita), sua mulher e seus oito filhos. Foto: CPT

O trabalhador rural Pedro Alves dos Santos, conhecido como Pedro Piauí, trabalhou três meses em uma fazenda de Campos Lindos, no Tocantins. Após dormir debaixo de uma barraca de lona, comer pouco e trabalhar o dia todo recolhendo e queimando árvores, ele foi informado de que não receberia pagamento.

“Era o ano 2000, eu estava vulnerável, ainda não tinha a minha família”, diz Pedro em entrevista por telefone ao Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil (UNIC Rio). “Estava difícil, um ‘gato’ (agenciador de mão de obra rural) me procurou e me disse que tinha um serviço. Eu fui com um cunhado, mas no final, não quiseram nos pagar”, lembra.

Indignados, os trabalhadores entraram em contato com sindicatos locais, que acionaram a Comissão Pastoral da Terra (CPT) que, por sua vez, informou o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, do governo federal.

Os fazendeiros chegaram a fugir após a denúncia, mas foram localizados em uma cidade vizinha, de acordo com Pedro. Tanto o camponês como os cerca de 20 trabalhadores rurais que atuavam na fazenda receberam posteriormente os salários devidos, mas não entraram com ação judicial contra os empregadores.

Hoje aos 47 anos, Pedro desistiu de trabalhar para fazendeiros. Vive da produção de sua própria horta e da criação de animais, por meio das quais sustenta seus oito filhos. Ele ainda aguarda receber os documentos definitivos da terra em que vive e produz há quase 20 anos.

Pedro é um dos mais de 50 mil trabalhadores resgatados de situação de trabalho escravo no Brasil desde 1995. Em 2015, foram liberados ao menos 1,1 mil trabalhadores, o que mostra que o problema está longe de ser erradicado. Segundo o Ministério do Trabalho, a maior parte das vítimas é homem, tem entre 18 e 44 anos — 33% são analfabetos e 39% só estudaram até a quarta série.

“Converso com outros trabalhadores da região sobre isso. Muitas vezes, eles me ligam de outras cidades para entrar em contato com a CPT, pois hoje sou voluntário da organização”, conta Pedro. Ele também alerta seu filho de 20 anos sobre os riscos de se aceitar trabalho por meio de “gatos”, assim como sobre a importância de continuar os estudos.

Grande parte dos casos de trabalho escravo está no campo, apesar de o problema também ocorrer nas cidades. Segundo o Ministério do Trabalho, 29% dos trabalhadores libertados entre 1995 e 2015 atuavam na pecuária e 25% na cana de açúcar. No entanto, outros 5% envolveram o setor de construção e 1% o de confecção, indústrias mais presentes nas grandes metrópoles.

Pedro Piauí (segundo da esquerda para a direita) durante lançamento da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, em 2016. Foto: CIMI

Pedro Piauí (segundo da esquerda para a direita) durante lançamento da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, em 2016. Foto: CIMI

Desde 1940, o artigo 149 do Código Penal prevê pena de dois a oito anos para quem reduzir alguém à condição análoga à de escravo. Em 2003, a lei foi ampliada e passou a ser considerado trabalho escravo expor o trabalhador a condições degradantes de trabalho, a jornadas exaustivas, ao trabalho forçado ou à servidão por dívida.

A ampliação do conceito fez com que o país fosse reconhecido internacionalmente como uma das nações mais combativas a esse crime no mundo. Em maio do ano passado, documento de posicionamento da ONU sobre o tema elogiou a legislação criminal brasileira sobre trabalho escravo, e pediu que ela fosse mantida.

As Nações Unidas referiam-se a projetos de lei em tramitação no Legislativo brasileiro que têm como objetivo retirar os conceitos de condições degradantes de trabalho e de jornada exaustiva dos elementos que configuram o crime de trabalho análogo à escravidão.

Para o professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Ricardo Rezende Figueira, a legislação brasileira é considerada referência no mundo justamente por incluir não apenas a restrição de liberdade e a servidão por dívidas.

“A proposta de restringir a noção de escravidão apenas à noção de trabalho forçado é um equívoco. Claro que o trabalho forçado é um crime abominável, mas a escravidão não se restringe a isso”, disse. “A questão que agora está em pauta é a dignidade humana ofendida”, completou.

A posição também é defendida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo a qual condições degradantes de trabalho e jornadas exaustivas têm sido mais marcantes na exploração ilegal de trabalhadores tanto no Brasil como no mundo.

“Realmente, temos visto com muita preocupação determinadas propostas legislativas que vem tentando mudar esse conceito (de trabalho escravo)”, disse Antônio Carlos Mello, coordenador do programa de trabalho forçado da OIT.

“As questões de condições degradantes e jornada exaustiva são mais marcantes na exploração do ser humano, onde não é somente a liberdade que é limitada, mas a dignidade do trabalhador, que é submetido a tal forma de exploração que, mesmo tendo capacidade de ir e vir, acaba sendo submetido de maneira inegociável à exploração”, explicou Mello.

“Instamos o país a manter os avanços que fizeram com que o Brasil se tornasse referência no combate ao trabalho escravo nesses últimos 22 anos”, completou.

São consideradas condições degradantes situações que colocam em risco a saúde ou a vida do trabalhador. Em geral, são um conjunto de irregularidades, como alojamentos precários, péssimas condições de alimentação, falta de saneamento básico, entre outros fatores.

Já a jornada exaustiva ocorre quando o trabalhador é submetido a esforço excessivo e jornadas extremamente extensas, que não permitem um intervalo longo o suficiente para um descanso adequado, acarretando danos à saúde e à segurança, podendo, inclusive, levar à morte. (Saiba mais neste guia sobre trabalho escravo da ONG Repórter Brasil).

Um dos principais avanços conquistados recentemente pelo Brasil e citados pela OIT foi a criação, há mais de 20 anos, do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, do Ministério do Trabalho. Outra evolução foi o estabelecimento, em 2003, do cadastro de empregadores flagrados explorando mão de obra escrava, a chamada Lista Suja do Trabalho Escravo.

No entanto, segundo especialistas ouvidos pelo UNIC Rio, ambos os mecanismos enfrentam riscos. O grupo especial está com reduzido número de fiscais devido à falta de concursos públicos e orçamento, o que tem resultado em redução das operações de fiscalização, de acordo com Xavier Plassat, coordenador da Campanha de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da CPT.

Segundo Plassat, faltam fiscais para completar as vagas existentes. “Por alguns anos, vimos essa redução sendo compensada pelo aumento das ações das Superintendências Regionais do Trabalho. Mas, nos últimos dois ou três anos, isso deixou de acontecer”, completou.

De fato, segundo dados do Ministério do Trabalho compilados pela CPT, o número de estabelecimentos fiscalizados caiu quase 19% desde 2011, passando de 344 naquele ano para 279 em 2015. O número de operações de fiscalização, por sua vez, foi reduzido de 189 em 2013 para 115 no ano passado, uma baixa de 40%. Segundo uma fonte do governo federal, a tendência se acentuou este ano.

De acordo com essa fonte, a fiscalização se torna ainda mais frágil na medida em que os empregadores passaram a adotar novas estratégias para driblá-la, como utilizar mão de obra análoga à escrava de forma dispersa, ou seja, sem concentrar grande número de trabalhadores em um só local, mas em vários.

“Algum tempo atrás, era comum entrar em uma fazenda e encontrar 300 trabalhadores em situação de escravidão, o que gerava bastante repercussão”, disse a fonte. “Agora, os empregadores se reorganizaram para evitar o flagrante. Passaram a usar equipes bem pequenas em períodos curtos de tempo. É comum os ‘gatos’ combinarem rodízio entre fazendas”, declarou.

Lista Suja do Trabalho Escravo

Cadastro de empregadores flagrados utilizando mão de obra análoga à escravidão, a Lista Suja do Trabalho Escravo teve sua publicação suspensa em 2015 e 2016 após medida cautelar do Superior Tribunal Federal (STF), a pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC), que questionava a constitucionalidade do cadastro.

Em maio de 2016, a medida foi revertida pelo próprio STF, depois de portaria do governo federal prever o aprimoramento do mecanismo de entrada e saída da lista, de forma a respeitar o direito dos empregadores à ampla defesa.

O cadastro voltou a ser publicado somente em maio deste ano (clique aqui para acessá-lo). A Lista Suja, atualizada semestralmente desde 2003, é utilizada por governos, instituições financeiras e empresas nacionais e estrangeiras no gerenciamento do risco de manter relações comerciais e financeiras com outras companhias.

Mais de 90% dos trabalhadores resgatados da escravidão vêm de municípios com baixo IDH-M, revelam OIT e @MPT_PGT https://t.co/Hfw8CQTlhF pic.twitter.com/fspFiTWR8I

— OIT Brasil (@OITBrasil) 1 de junho de 2017

Fazenda Brasil Verde

Outro fato recente que colocou o Brasil de volta ao escrutínio internacional no tema do trabalho escravo foi a condenação do Estado brasileiro, em dezembro do ano passado, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA).

O Brasil foi condenado por não garantir a proteção de 85 trabalhadores submetidos à escravidão contemporânea e ao tráfico de pessoas, além de não ter assegurado Justiça para outros 43 resgatados desta condição na Fazenda Brasil Verde, no Pará.

“A decisão foi histórica porque levou a corte a definir o que entende como trabalho escravo contemporâneo. Foi interessante porque incorporou não somente a servidão por dívida e a privação de liberdade, mas também a degradação à qual os trabalhadores foram submetidos”, disse a CPT em nota na ocasião.

Além disso, em maio deste ano, o Brasil recebeu uma série de recomendações da comunidade internacional para melhorar a situação de direitos humanos no país, entre elas o combate ao trabalho escravo. As sugestões foram feitas no âmbito da Revisão Periódica Universal (RPU), um exame detalhado ao qual o país precisa ser submetido a cada quatro anos.

No total, foram oito recomendações referentes ao tema. A Nicarágua pediu que o Brasil desse andamento a seus esforços de combate ao crime, enquanto o Peru pediu o combate a essa prática especialmente na indústria têxtil. O Reino Unido pediu que o país ratificasse o Protocolo da OIT sobre Trabalho Forçado, de 2014, já ratificado por 17 países.

Em maio, a OIT lançou no Brasil a Campanha 50 For Freedom para pedir que o país reforce o combate ao trabalho forçado com a ratificação do protocolo. Ele complementa a Convenção nº 29 da OIT sobre Trabalho Forçado e fornece orientações sobre medidas que devem ser tomadas para eliminar as novas formas de escravidão moderna, incluindo o desenvolvimento de ações de prevenção e assistência a vítimas.

Além disso, o protocolo identifica a necessidade de ações específicas para combater o tráfico humano, que alicia pessoas para a exploração sexual e para o trabalho forçado.

Trabalho da OIT no Brasil

A OIT adota uma série de iniciativas junto a parceiros como Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho (MPT) e governos estaduais para combater práticas de exploração ilegal de trabalhadores no país.

No fim de maio, a agência da ONU lançou um laboratório digital, com o objetivo de ampliar o conhecimento sobre o assunto e, assim, orientar políticas públicas.

Dados preliminares dessa experiência indicaram que 25% dos trabalhadores resgatados vêm do Maranhão. “São resultados que trazem necessidade de fazer nesse estado um trabalho mais focado no fortalecimento da comunidade de origem”, explicou Antônio Carlos de Mello, da OIT.

Outra frente é o impulso institucional de entidades que combatem esse crime. A agência da ONU tem projetos de capacitação tanto com a Polícia Rodoviária Federal, como com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e secretarias de Justiça e de Direitos Humanos.

Além disso, a agência da ONU apoia iniciativas de atenção às vítimas em pelo menos quatro estados: Mato Grosso, Bahia, Ceará e Maranhão. Há ainda uma iniciativa regional chamada Rede Ação Integrada de Combate à Escravidão (RAICE), também apoiada pela OIT, que engloba os estados de Piauí, Tocantins, Pará e Maranhão para fortalecer as comunidades de origem das vítimas do trabalho escravo.

“O foco está no atendimento holístico ao trabalhador, e também nos processos de luta contra o analfabetismo, pela qualificação profissional e conscientização dos trabalhadores sobre seus direitos”, disse Mello. “Muitas vezes são explorados por estar em condição de vulnerabilidade, muitas vezes porque evadiram a escola e começaram a trabalhar muito cedo”, completou.

A OIT estima que suas ações já tenham alcançado diretamente até 1 mil trabalhadores. No entanto, algumas iniciativas têm resultados indiretos. “Individualmente, é importante recuperar a dignidade do trabalhador resgatado, mas, mais importante, é blindar a comunidade, por meio do fortalecimento na perspectiva de geração de renda e acesso à terra”, declarou Mello.

As iniciativas empresariais de combate a esse crime em suas cadeias de produção também são de extrema importância, na avaliação do representante da OIT, que citou o caso do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPACTO), que reúne 45 empresas e 14 associações empresariais.

Uma das iniciativas nascidas dentro do InPACTO foi a parceria entre a OIT e a Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX), a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), o Instituto C&A, o Instituto Lojas Renner e a Zara Brasil para a promoção do trabalho decente no setor têxtil e de confecção de São Paulo.

“O projeto é recente, mas a movimentação que esse setor vem fazendo já data de algum tempo e vem sendo feita em conjunto com outras entidades”, disse Mello.

Além de evitar realizar transações comerciais com os integrantes da lista suja, ele ressaltou a importância de os setores econômicos atuarem de maneira ativa para monitorar e auditar suas cadeias de produção, com o objetivo de prevenir violações dos direitos humanos dos trabalhadores, como o trabalho infantil e o trabalho escravo.

Necessidade de mudanças estruturais

Para os especialistas ouvidos pelo UNIC Rio, além dos esforços de punição, são necessárias mudanças estruturais na sociedade brasileira para que esse crime deixe de ocorrer, entre elas, uma maior distribuição de renda e de terras.

Para Ricardo Rezende Figueira, da UFRJ, as fiscalizações do Ministério do Trabalho e a própria Lista Suja representaram uma evolução no combate ao trabalho escravo no Brasil, no entanto, “não resolveram o básico: reforma agrária e distribuição de renda com geração de emprego”.

“Num período melhor, o grupo móvel era muito eficiente e pouco eficaz. Eficiente porque libertava os trabalhadores, ineficaz porque outros casos continuavam ocorrendo”, disse.

Durante a entrevista, Pedro Piauí demonstrou ansiedade ao falar sobre o processo de obtenção do título de propriedade da terra em que vive e trabalha há décadas. “Estou aguardando a visita do perito”, declarou. A ansiedade se justifica: somente por meio da terra Pedro e seus filhos não precisarão se submeter novamente ao trabalho agenciado pelos “gatos”.

Depoimentos

Assista abaixo a depoimentos de trabalhadores que participaram da iniciativa Ação Integrada, projeto fruto de parceria entre Ministério Público do Trabalho, Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Mato Grosso (SRTE/MT) e Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com o apoio da OIT.


Fonte: https://nacoesunidas.org/depois-de-trabalhar-tres-meses-em-uma-fazenda-nao-quiseram-me-pagar/

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