ASSOCIAÇÃO DOS GÉOGRAFOS BRASILEIROS – SEÇÃO LOCAL VITÓRIA
OBSERVATÓRIO DOS CONFLITOS NO CAMPO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO-UFES
RELATÓRIO DE IMPACTOS SÓCIO-AMBIENTAIS DA FÁBRICA DA SUCO MAIS (COCA-COLA) NO CÓRREGO DAS PEDRAS E NO CÓRREGO DO ARROZ, LINHARES/ES
VITÓRIA
2011
ÍNDICE
- INTRODUÇÃO
- ANÁLISE DE CAMPO
2.1- Pontos de Observação
2.2- Análise da Água
- LEGISLAÇÃO
- TERMO DE COMPROMISSO AMBIENTAL – TCA
- SOBRE O INTERDITO PROIBITÓRIO
-
CONSIDERAÇÕES
- Quanto ao TCA
- Quanto ao Córrego das Pedras
- Quanto ao Córrego do Arroz
- PROPOSIÇÕES
- ANEXO
- BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
1. INTRODUÇÃO
O presente documento se propõe a fazer o levantamento e análise dos elementos e atores envolvidos na situação de conflito pelo uso das águas do Córrego das Pedras e Córrego do Arroz, no município de Linhares, norte do Espírito Santo. Nesse sentido, trazemos alguns pontos apresentados pelos Relatórios do Ministério Público Estadual (MPES)1, assim como elementos trazidos pela comunidade de Santa Cruz, a partir de estudo de campo realizado no córrego das Pedras (local específico do conflito), em junho e em dezembro de 2010. As populações locais apontam para a necessidade de um relatório alternativo ao do MPES, bem como de outra análise da qualidade da água do córrego das Pedras, e questiona a forma como ela está sendo utilizada pela empresa Suco Mais/Coca-Cola, que aí despeja seus efluentes industriais, contaminando e comprometendo sua utilização.
Foto 1: Imagem aérea adaptada do Córrego das Pedras. Destacados em vermelho a fábrica da Suco Mais (canto superior esquerdo) e o ponto de lançamento do efluente que vai até o até o Bairro Santa Cruz. [fonte: Relatório Técnico MP-ES 075/2008)
A partir desta problemática, o Observatório de Conflitos do Campo da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e a Associação de Geógrafos Brasileiros – Seção Local Vitória, dialogando com a comunidade local, realizaram juntos este relatório a fim de contribuir com a leitura dos atuais impactos envolvendo a comunidade local e a empresa.
A relação conflituosa entre a empresa e a comunidade do entorno do Córrego das Pedras representa uma situação muito comum pelo Brasil afora e, sobretudo, no estado do Espírito Santo, no qual grandes empresas se apropriam de recursos naturais de maneira a gerar sérios impactos sócio-ambientais e, dessa forma, não cumprem ou cumprem em parte o que determina a legislação ambiental, não sendo punidos por isso. Neste caso específico, como conseqüência direta, temos o impacto social e ambiental das áreas afetadas pelos resíduos industriais da fábrica, comprometendo a qualidade da água para outros usos. Além disso, há relatos de intimidação policial no que tange à instalação dos dutos que passam por dentro das propriedades localizadas no entorno da fábrica.
Foto 2: Ponto de lançamento do efluente industrial da empresa Suco Mais/ Coca-Cola no Córrego das Pedras.[Fonte: AGB – 2010]
Iniciaremos a discussão da situação em questão a partir de alguns pontos relevantes para nosso objetivo, em torno da Legislação relacionada aos recursos hídricos e ambientes próximos.
2. ANÁLISE DE CAMPO
No primeiro campo realizado no local, em junho de 2010, levantamos as seguintes condições:
2.1- Pontos de Observação
Ponto 01 de observação em campo (X: 391837; Y: 7864834)
Trecho do córrego dentro de uma pequena propriedade agrícola, onde se verifica, por observação e depoimentos, a contaminação da água pelo efluente industrial despejado pela empresa Sucos-Mais/Coca-Cola:
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Observam-se presenças constantes e numerosas bolhas por toda a represa que, segundo o proprietário, surgiram após a instalação do emissário.
Foto3: Situação atual do lago do Sr. Valdo Zanetti [Fonte: AGB – 2010]
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Também se pode sentir um forte odor, indicando grande presença de material em estado de putrefação;
“Eles dizem que a água despejada é tratada, mas como pode ser tratada se está assim?” (agricultor – junho/2010)
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O proprietário não consegue mais utilizar a água para molhar sua roça de café e maracujá, considerando o agravamento provocado pelo clima com as chuvas fora de época. Isto provocou a perda das suas lavouras:
“A gente não consegue mais equilibrar a lavoura, tomamos muito prejuízo e o boi que bebia da água começou a perder peso; tirou a vida do córrego e o capim colonião está invadindo” (agricultor junho-2010);
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O proprietário, até o momento (março de 2011), possui uma dívida referente a um crédito que buscou, no intuito de investir numa lavoura de café. Acontece que, ao utilizar da água do córrego para irrigação, ele perdeu toda a lavoura e, conseqüentemente, a safra. Dessa forma, ficou impedido de efetuar o pagamento do empréstimo.
Ponto 02 de observação em campo (X: 388752; Y: 7861908)
Ponto de lançamento dos rejeitos industriais.
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A barragem localizada alguns metros atrás da fábrica apresenta dois dutos: um para escoamento da água do córrego, e outro para lançamento do efluente industrial. Esses dutos se encontram numa galeria e escorrem juntos para o córrego das Pedras.
Foto 4: Dutos de lançamento do efluente da Sucos Mais e do Córrego das Pedras. (Fonte: MP-ES Relatório Técnico 075/2008).
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Há relatos acerca da morte de animais que bebem da água contaminada do Córrego das Pedras. Por coincidência, presenciamos a perda de uma vaca leiteira (no valor de R$ 1.500,00 reais) de uma agricultora, cuja suspeita seria o envenenamento por ter ingerido água do Córrego das Pedras. O corpo desta vaca foi encontrado a aproximadamente 100 metros do leito do córrego. Segundo a agricultora, depois da emissão do efluente industrial, já perdeu 10 animais por beberem da água contaminada.
Foto 5: Vaca leiteira morta (junho/2010); por provável contaminação pela água do Córrego das Pedras. A agricultora já havia perdido mais três, além desta. [Fonte: AGB – 2010]
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No segundo trabalho de campo, realizado em dezembro de 2010, verificamos que a represa que havia à montante do ponto de lançamento dos efluentes foi retirada. A coloração verde da água aumentou em vários pontos do córrego, desde a área de lançamento dos efluentes e em pontos a jusante, bem como o lançamento e o odor.
2.2- Análise da água: a partir das observações empíricas
Segundo depoimentos de moradores mais antigos, atividades como nadar, pescar, entre outras recreações, eram comuns, como mostram as fotos abaixo:
Fotos 6 e 7: imagens anteriores à poluição. Lago do Sr. Valdo Zanetti [Fonte: Moradores locais – 1986]
As lavouras da região (maracujá, café, côco, entre outras) tiveram grandes perdas, devido à péssima qualidade da água superficial (utilizada através de irrigação) e do subsolo (lençol freático).
Os moradores que antes captavam água do poço para uso próprio, deixaram de fazê-lo, pois a água se tornou imprópria para ingestão. Agora, eles são obrigados a comprar água, até para beber.
No próprio relatório do Ministério Público do Estado do Espírito Santo, os técnicos se referem à diferença da qualidade da água antes e depois da chegada da indústria, assim como às diferenças existentes no corpo hídrico à montante da empresa – onde a água apresenta melhor qualidade – e à jusante – onde a água apresenta pior qualidade.
Além disso, os próprios técnicos ressaltam a importância de considerarem os relatos dos moradores locais e sua percepção sobre a qualidade e o uso da água.
No tópico V – Análise Quanto aos Outros Usuários da Águas do Córrego das Pedras e do Córrego do Arroz, o técnico Eliezer Cunha, do MP-ES, ainda prioriza o saber tradicional e a história dos agricultores atingidos pela indústria.
“Mesmo sem o aporte de conhecimento técnico não se pode desprezar as informações das pessoas que residem nas áreas percorridas pelo curso do córrego das Pedras. Pelo contrário, a representação e percepção que eles desenvolveram pelo espaço geográfico com interações envolvendo sentimento, apego e hábitos facilitam aos mesmos a identificação de alterações que o pesquisador ou cientista nunca seria capaz de conhecer ou prever sem tais informações. Os conhecimentos da vegetação e da fauna extintos são exemplos de informações que existem na memória desses moradores e não nos livros científicos. Logo não temos como rejeitar as fotos de mortandade de peixes apresentadas, as reclamações do odor desagradável e dos impactos que estão sendo sentidos por esses moradores que convivem e interagem com o Córrego das Pedras em seu dia-a-dia.
Não há como refutar a indagação dos moradores quando dizem: “quem está à montante do lançamento da empresa Mais pode criar seus peixes e nós a jusante não podemos nem sequer molhar nossos plantios”. (ANÁLISE TÉCNICA Nº. 05/2010, p. 19 e 20)
No entanto, não adianta considerar tudo isso se a indústria ainda consegue privilégios para continuar despejando os dejetos industriais no rio. Vale ressaltar que os agricultores não podem mais usufruir do córrego das Pedras há mais de três anos, e a tendência é ficar mais alguns anos sem pode usar essa água, devido à má qualidade da mesma.
3. LEGISLAÇÃO
A Lei n.˚ 9433/97 que estabelece a Política Nacional de Recursos Hídricos promove a mercantilização da água, favorecendo a iniciativa privada na utilização desse recurso através da outorga da água.
Conforme o Artigo 1, inciso II da referida lei: “a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico”. Evidentemente, o valor econômico adquirido pela água se dá, em parte, pelas condições de escassez hídrica em que muitos locais se encontram.
Acreditamos que a água sendo um insumo essencial a todos os tipos de vida, deve-se sim se valer a lei que estabelece a água como “bem de domínio público” – Artigo 1, inciso I – da referida Lei.
A outorga é o mecanismo legal que dá direito à utilização da água mediante pagamento e concessão pública. Contudo, sua concessão depende do enquadramento que é dado aos corpos d’água. Este mecanismo tem por objetivo assegurar o controle qualitativo e quantitativo da água e o exercício do direito ao acesso, sendo necessário para o gerenciamento dos recursos. A Lei prevê que um usuário pode requerer a outorga de volumes de água para a finalidade de “disposição final de efluentes” (com finalidade de diluição, transporte ou disposição final). Um exemplo prático: um empreendedor pode avaliar, através de consultoria, que os efluentes produzidos por sua atividade exigem um volume de 30 ou 17 ou 55 m³/s para serem diluídos e, assim, solicita a outorga para direito de uso de água para tal finalidade.
Se o pedido for deferido, o usuário passa a ter o direito de emitir seus efluentes nos cursos d’água. Isso pode se tornar um facilitador para ocasionar casos de poluição, ou conforme a Resolução CONAMA (Conselho Nacional de Meio Ambiente) n.º 357, Capítulo I, Inciso XVIII – efeito tóxico crônico: efeito deletério aos organismos vivos causados por agentes físicos ou químicos que afetam uma ou várias funções biológicas dos organismos, tais como a reprodução, o crescimento e o comportamento, em um período de exposição que pode abranger a totalidade de seu ciclo de vida ou parte dele.
Como visto, a Política Nacional é permissiva, admitindo a poluição não-controlada2.
Vejamos o que a legislação nacional diz sobre este tema. Na definição da Lei n.° 6938/1981, que estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente, “poluição é a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: prejudiquem a saúde, a segurança e o bem estar da população, criem condições adversas às atividades sociais e econômicas, afetem desfavoravelmente a biota, afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente, lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos.” (Artigo 3, Inciso III).
Todas as características assinaladas como indicativos de poluição estão atualmente presentes no Córrego das Pedras. Após a instalação da fábrica e principalmente após a venda da mesma para a multinacional Coca Cola no ano de 2005, que acarretou um investimento de 32 milhões de reais em estruturas e um aumento na produção de 70 para mais de 100 milhões de litros por ano3. Esse aumento excessivo da produção que, consequentemente, aumentou a vazão de efluentes, passa a trazer problemas relacionados à poluição.
Segundo os moradores, a contaminação das águas acarretou a mortandade de animais que a ingeriram, além de impedir o uso para abastecimento urbano, lazer e irrigação. Os jacarés que viviam nas beiras do córrego sumiram em sua maioria, e os pouquíssimos que restaram encontram-se atrofiados devido à forte contaminação. Os agricultores perderam suas lavouras e, alguns deles, já não contam mais com a renda de seus produtos agrícolas.
Fotos 8e 9: Peixes mortos no Córrego das Pedras. Localização: lago da propriedade agrícola do Sr.Valdo Zanetti [Fonte: Moradores locais – 2008]
Na análise dos relatórios do Ministério Público do Espírito Santo, a AGB verificou uma diferença no tratamento do caso entre o relatório de 2008 e o de 2010. Enquanto o primeiro condena diversos atores pelo uso indevido da água (Estação de Tratamento de Esgoto – ETE, Sucos Mais, agricultores e governo local), o segundo condena especificamente a empresa, solicitando uma readequação da utilização da água, conforme a Portaria de Outorga nº. 216/084. Acontece que, mesmo condenada, a empresa requereu uma prorrogação de 24 meses no prazo para atendimento à Portaria, ou seja, mais dois anos poluindo e com consentimento dos órgãos públicos, como pode ser verificado no relatório de 2010:
“Avaliando o cenário da subbacia do Córrego das Pedras e contando com informações e figuras de moradores da região, chega-se à conclusão de que os primeiros usuários usufruíam um corpo hídrico que lhes permitiam o contato primário (nadar, lavar vasilhas e roupas, pescar e criar peixes, irrigar seus plantios), entretanto, com o advento da instalação da empresa Mais Indústria de Alimentos S.A, com lançamento de efluentes com altíssima carga orgânica e ainda crescimento da ocupação e aumento do volume de esgotos lançados no Córrego, as condições de uso passaram a ter restrições severas, principalmente à jusante do lançamento de efluentes da citada empresa.
O Cenário descrito acima enquadra e insere a Mais Indústria de Alimentos S.A na categoria de degradadora e poluidora dos recursos naturais, ora entendidos como o Córrego das Pedras. Tal afirmação está fundamentada na qualidade e quantidade dos efluentes lançados no córrego ao longo dos anos de operação e dos eventos ocorridos como mortandade de peixes, degradação de lavouras e inadequação do uso das águas do córrego para irrigação e outras atividades” (Tópico IV – Análise Quanto à legislação existente, p.17).
E continua:
“Como já ressaltado e mostrado nas figuras acima, a garantia de uso múltiplo das águas está sendo comprometida, inclusive e principalmente no trecho situado logo após lançamento dos efluentes da empresa” (Análise Técnica nº. 05/2010, ps. 17/18).
Ou seja, o Ministério Público já declarou a empresa como poluidora e degradadora e o que deveria ocorrer era enquadrá-la na legislação ambiental existente; porém, concedeu mais dois anos para adequação a tal legislação, o que pode acarretar o agravamento das condições ambientais degradantes.
Seguem abaixo alguns pontos da legislação que deveria ser aplicada às atividades da indústria:
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A LEI Nº 6.938, DE 31 DE AGOSTO DE 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, diz:
Art. 2º. A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios:
I – ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo;
III – poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;
Art. 4º – A Política Nacional do Meio Ambiente visará:
à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados, e ao usuário, de contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos.
Ainda nessa mesma Lei, há um artigo que prevê a responsabilidade dos órgãos executivos e fiscalizadores em cumprir suas atividades, a fim de garantir que os princípios contidos na lei sejam respeitados. Sendo assim, ao pensar a função do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA vemos que:
Art. 8º Compete ao CONAMA: (Redação dada pela Lei nº 8.028, de 1990)
VII – estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos.
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LEI N.º 9.605, DE 12 DE FEVEREIRO DE 1998 – Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências.
Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º Se o crime é culposo:
Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.
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LEI 9.433 DE 08/01/1997 – Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Art. 1º – A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:
I – a água é um bem de domínio público;
II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;
III – em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais;
IV – a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas;
V – a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;
VI – a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.
Com relação às audiências públicas obrigatórias ao processo de licenciamento para construção e ampliação da fábrica, pode-se dizer que elas não foram realizadas. Segundo depoimento dos moradores locais, em nenhum momento eles foram consultados oficialmente, assim como não receberam cópia do EIA/RIMA5, infringindo tanto a Resolução Federal quanto a Estadual que dispõem sobre os procedimentos necessários para o licenciamento ambiental.
Segundo a RESOLUÇÃO n.º 237 do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, de 19 de dezembro de 1997:
Art. 3º- A licença ambiental para empreendimentos e atividades consideradas efetiva ou potencialmente causadoras de significativa degradação do meio dependerá de prévio estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto sobre o meio ambiente (EIA/RIMA), ao qual dar-se-á publicidade, garantida a realização de audiências públicas, quando couber, de acordo com a regulamentação;
Art. 10 – O procedimento de licenciamento ambiental obedecerá às seguintes etapas:
V – Audiência pública, quando couber, de acordo com a regulamentação pertinente;
VI – Solicitação de esclarecimentos e complementações pelo órgão ambien tal competente, decorrentes de audiências públicas, quando couber, podendo haver reiteração da solicitação quando os esclarecimentos e complementações não tenham sido satisfatórios.
Já a Constituição Estadual, na seção IV do Meio Ambiente, diz que:
Art. 187: Para a localização, instalação, operação e ampliação da obra ou atividade potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente será exigido Relatório de Impacto Ambiental na forma de lei que assegurará a participação da comunidade em todas as fases de sua discussão. E ainda:
§1º: Ao estudo prévio do Relatório de Impacto Ambiental será dada em ampla publicidade.
4. TCA – Termo de Compromisso Ambiental
A partir dos resultados negativos da qualidade da água analisados pelo relatório, por conta das atividades de despejo e do tratamento inadequado de efluentes por parte da Empresa Sucos Mais/ Coca Cola, foi acordado entre ela, o Ministério Público Estadual e o Instituto Estadual de Meio Ambiente (IEMA) um Termo de Compromisso Ambiental (TCA), a fim de traçar metas para a adaptação dos procedimentos corretos, dentro de um determinado prazo.
Com o objetivo de “equalizar medidas e soluções que propiciem o funcionamento da Empresa com as condições de qualidade ambiental necessária à manutenção da vida e da biodiversidade, bem como, harmonizar a insatisfação de produtores (comunidade ribeirinha) com a situação do córrego e de suas propriedades devido ao lançamento dos efluentes da Empresa Suco Mais há cerca de 8 anos”, este Termo de Compromisso Ambiental se encontra presente na ANÁLISE TÉCNICA n.º 05/2010, elaborada pelo MPES com o objetivo de “analisar os procedimentos de outorga dos Córregos da Pedra e do Arroz e suas implicações”.
Aqui já observamos a ausência da comunidade neste acordo. Acreditamos que, neste acordo, deveria ter sido levado em consideração o Artigo I da LEI n.o 9.433, de 08/01/1997, sobretudo em seu inciso VI:
VI – a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.
Isto porque o caso vem afetando diretamente a vida dos moradores locais mais do que a do Poder Público ou da própria empresa. Além disso, como ‘harmonizar a insatisfação de produtores’, se eles não estão inclusos no processo de discussão?
Este Termo de Conduta Ambiental tem por objetivo adequar as atividades da Empresa ao sistema de tratamento de efluentes industriais, a fim de manter-lhe a outorga da água. A empresa não havia conseguido realizar as condicionantes da outorga e o TCA lhe autorizou a lançar um efluente com Demanda Biquímica de Oxigênio (DBO) de até 700 mg/l no prazo de 24 meses, para adequação de seu sistema de tratamento. Salienta-se que o descumprimento das condicionantes da outorga poderia levar à suspensão parcial ou total da outorga.
Seguem dois pontos importantes da cláusula de compromisso presente no TCA.
CLÁUSULA SEGUNDA – DO COMPROMISSO
Para a implementação do presente Termo, têm-se como obrigações da COMPROMISSÁRIA:
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Apresentar projeto da adequação a ser realizado para regularização do sistema de tratamento de efluentes industriais atualmente existentes na empresa ao processo nº. 23022825. Prazo: 90 (noventa) dias.
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Implantar e operar adequação do Sistema de Tratamento de Efluentes Industriais (STEI), de forma que o efluente apresente as seguintes características: DBO inferior a 56 mg/l, concentração de fósforo total inferior a 0,40 mg/l e vazão máxima de lançamento igual a 8,7 l/s. Prazo: 24 (vinte e quatro) meses. (ANÁLISE TÉCNICA n.º 05/2010, ps. 2 e 3).
Ao se referir ao TCA na Análise Técnica n.º 05/2010, o técnico do MP-ES alega:
Fica claro que na ausência do TCA e considerando os prazos da condicionante I vencidos, a empresa estaria proibida de lançar efluentes no Córrego das Pedras. (pg. 20)
Consideramos, portanto, que o TCA foi emitido para legitimar a ilegalidade da empresa, que não cumpriu com a Portaria da Outorga. É aqui que apontamos o privilégio que a empresa vem recebendo do Poder Público, gerando descontentamento e insatisfação por parte da comunidade e de antigos agricultores que aí vivem e dependem da qualidade dos recursos hídricos para sua sobrevivência.
5. SOBRE O INTERDITO PROIBITÓRIO
Como se já não bastasse o sofrimento e fragilidade trazidos pela contaminação do córrego, alguns agricultores ainda tiveram que passar por um Interdito Proibitório6, deparando-se com um oficial de justiça em suas residências, informando-os sobre tal ação e solicitando seu comparecimento às audiências judiciais.
Um interdito proibitório é uma ação judicial que visa rebater algum tipo de ameaça à posse de determinado possuidor. A empresa em questão conseguiu na justiça uma medida liminar de interdito proibitório que impede o acesso à propriedade da fábrica, bem como determina a não-moléstica por parte dos réus (agricultores/as) em relação à empresa. A empresa alegou atos de vandalismo e ameaça a integridade física e moral de seus funcionários a partir da manifestação realizada em que o tubo de despejo dos efluentes foi interditado.
Essa ação trouxe alguns pontos obscuros e a decisão, aparentemente, não pareceu levar em consideração toda a história do conflito em torno da água do Córrego das Pedras.
Primeiramente, quando os advogados da Empresa alegam que ela opera dentro da lei e “sem qualquer embargo pelas autoridades públicas’ (Ação de Interdito Proibitório, p.2), admite-se que a poluição esteja sendo consentida por estas autoridades, uma vez que os fatos citados durante todo este documento apresentam os prejuízos e os danos que a empresa trouxe aos produtores agrícolas.
Quanto à reunião convocada aos agricultores dentro das instalações da indústria, a revolta destes tem motivos justificáveis, pois quem perdeu lavouras e animais, a renda que possuíam; quem teve o valor da terra reduzido foram os agricultores, e não a indústria; aliás, problemas ocasionados por ela mesma.
Assim, se pensarmos que o ato de obstruir as caixas de passagem dos efluentes acarretou certo prejuízo à indústria, esta, por sua vez, também se manifestou, ajuizando a ação de Interdito Proibitório.
Os agricultores também tentaram, por via judicial, repor o prejuízo que tiveram, porém, não possuem o mesmo recurso da empresa, que contratou três advogados para “cuidar” do caso.
Desde 2005, os agricultores vêm se manifestando legalmente contra a empresa, porém, como já relatado, não possuem as mesmas facilidades. Exemplo disso é o relatório do MP-ES, que declara a indústria como poluidora, mas concede mais 24 meses para esta se adequar.
Aqui também podemos encontrar as conseqüências de não fazer cumprir as leis ambientais que regem nosso país, criando para isso formas de revertê-las, como foi o caso do TCA.
Portanto, a obstrução das caixas de passagem do esgoto da indústria pode ter tido como finalidade a ‘paralisação das atividades da indústria’, como foi entendido pelas autoridades judiciais. A questão contraditória é que a contaminação do Córrego das Pedras por parte da indústria também causou a paralisação das atividades dos agricultores, e a mesma não sofreu nenhum tipo de punição.
Talvez isso, infelizmente, possa justificar o ato de “fazer justiça com as próprias mãos”, como foi apontado na ação judicial, desconsiderando, portanto, os diversos meios legais que os agricultores já haviam buscado para solucionar o caso.
Então, o Poder Público também tem uma parcela de culpa sobre este conflito, pois não contribuiu como devia. E quem mais uma vez sai perdendo são os agricultores, que tiveram que conviver com o Interdito.
Vale ressaltar que a indústria, a partir dessa ação, vem defender o seu patrimônio, isto é, um patrimônio privado/particular, enquanto o que os agricultores defendem é um patrimônio público – a água – diferença desconsiderada pelo Poder Público.
6. CONSIDERAÇÕES
6.1- Quanto ao Termo de Compromisso Ambiental
Acreditamos que o termo realizado e exposto aqui é injusto em relação à comunidade local e contraditório em relação às legislações ambientais.
O privilégio que estas empresas recebem por parte do Estado e dos órgãos ambientais faz com que as mesmas tenham regalias, como por exemplo, o Termo de Compromisso Ambiental (TCA), que concedeu à Empresa Suco Mais o direito de continuar utilizando o Córrego das Pedras de maneira predatória, despejando-lhe seus resíduos industriais (como soda cáustica, por exemplo) pelo prazo de 24 meses, solicitado por ela própria, não respeitando a Portaria de Outorga que lhe foi concedida com consentimento do poder público.
Se entendemos o que dispõe o Artigo 1 da Lei n.° 9.433/1997 – que a água é bem de domínio público (Inciso I) e que em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação dos animais (Inciso III) – acreditamos que a prioridade deveria ser o uso da água pela comunidade. No entanto, na atual situação de poluição, degradação e impossibilidade das atividades da comunidade (desde banho à própria dessedentação dos animais), fica claro que quem tem a prioridade de uso é a empresa, e com a permissividade do TCA, no prazo de 24 meses.
6.2- Quanto ao Córrego das Pedras
Considerando o Artigo 4.º da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n.° 6.398/1981) – que estabelecea imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados, e ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos – entendemos ser dever do Poder Público assegurar garantias e medidas indenizatórias às populações atingidas. Como relatado anteriormente, a comunidade local e o Ministério Público identificam e reconhecem os impactos e danos provocados nas atividades locais de subsistência e produtivas, como a agricultura, a criação de animais, a pesca, o lazer e outros usos da água.
6.3- Quanto ao Córrego do Arroz
Otópico VI– Proposições e Conclusões do relatório (Análise Técnica Nº. 05/2010) se refere ao Córrego do Arroz, apontando que:
“(…) para a empresa efetuar qualquer lançamento no Córrego do Arroz, deverá estar com o sistema de tratamento de efluentes adequado para liberação de uma carga de DBO de 56 mg/l, o que a princípio não é uma realidade da empresa (p.12)”.
E termina:
“Face ao cenário apresentado envolvendo a Empresa Mais Indústria de Alimentos S.A, a comunidade e os riscos de degradação no Córrego do Arroz à semelhança do cenário existente no Córrego das Pedras, sugerimos:
– Manutenção das medidas necessárias visando o não lançamento de efluentes no córrego do Arroz.
– Notificação ao IEMA recomendando a suspensão da PO 474/09considerando a situação do Córrego do Arroz, a ausência de medidas preventivas para melhoria da qualidade das águas do corpo hídrico, o desconhecimento de outros usuários, a desconsideração de fontes difusas existente na sub bacia e ainda a desconsideração de outros parâmetros como DQO, Sólidos dissolvidos, Sólidos totais existentes no efluente da Empresa. (ps. 21 e 22).”
Diante disso, verificamos que ainda há um comprometimento deste Órgão em relação à qualidade da água do Córrego do Arroz. Porém, consideramos que esse posicionamento foi tardio, uma vez que a indústria já instalou os equipamentos necessários para iniciar a utilização deste córrego e já gerou constrangimento a alguns agricultores usuários do córrego. Qual a garantia de preservação deste córrego? Por que se posicionar só após a instalação? Por que os procedimentos foram invertidos? Deveria haver um estudo antes da instalação dos equipamentos e não após.
Foto 10: Obras de instalação dos dutos para despejo de efluentes no Córrego do Arroz. [Fonte: Moradores Locais – 2010]
Além disso, o próprio parecer demonstra-se contraditório ao não autorizar a utilização da água do Córrego do Arroz pela empresa, partindo do pressuposto de seu cenário ser similar ao cenário degradante do Córrego das Pedras. Partindo desta lógica, o MP-ES não deveria emitir o TAC que permite que a empresa continue impactando o Córrego das Pedras, já considerado em péssima situação.
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PROPOSIÇÕES
Considerando o Artigo n.° 4 da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n.° 6.398/1981), acreditamos que os agricultores que tiveram suas lavouras destruídas pela irrigação e animais mortos no processo de dessedentação pela água do Córrego das Pedras, deveriam, no mínimo, receber indenizações. Isso é o mínimo, pois essa medida não vai recuperar os danos causados pela Empresa Sucos Mais, nem mesmo trará de volta o modo de vida desses agricultores, que em nenhum momento participaram ou foram considerados no processo de instalação da indústria.
Entretanto, também devemos considerar que a empresa deveria perder o direito de uso da água, concedido pela Portaria de Outorga n.º 216/08, devido ao descumprimento por parte da empresa. E o que ela conseguiu foi um prazo de 24 meses para se adequar ao que já havia sido previsto anteriormente. Entendemos que um órgão ambiental deveria agir com seriedade, tomando as medidas cabíveis, dentre as quais a retirada da outorga, mesmo que isso resultasse na paralisação das atividades da empresa.
ANEXO
Carta com parte da bacia hidrográfica do Rio Doce, onde se encontram os Córregos da Pedra e do Arroz.
[Linhares – ES, Folha SE-24-Y-D, Carta do Brasil, escala 1:100.000, IBGE:1979]
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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Ação de Interdito Proibitório com Pedido de Liminar “inaudita altera pars”, proposto pelo escritório Machado, Mazzei & Pinho, na Vara Civil de Linhares – ES, em 10/02/ 2010.
Análise Técnica do Ministério Público Estadual do Espírito Santo Nº. 05/2010
Decisão da 2ª Vara Cível e Comercial de Linhares – ES, 19/02/2010.
Relatório Técnico do Ministério Público Estadual do Espírito Santo Nº. 075/2008.
Sítios Consultados:
1RELATÓRIO TÉCNICO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL DO ESPÍRITO SANTO Nº. 075/2008 e ANÁLISE TÉCNICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL DO ESPÍRITO SANTO Nº. 05/2010.
2 É prevista na PNRH (Lei 9.433/1997) a admissão de dejetos de efluentes não-tratados. Assim consta no Capítulo IV, Seção III, Artigo 12: “Estão sujeitos a outorga pelo Poder Público os direitos dos seguintes usos de recursos hídricos: Inciso III: lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final”.
3 Dados retirados de: http://www.cocacolabrasil.com.br/release_detalhe.asp?release=49&Categoria=30 – ACESSO EM 23/02/2011.
4 “A Portaria de Outorga Nº 216 é de 30/05/2008 com prazo de 03 anos. Nela o outorgado – Mais Industria de Alimentos S.A recebe o de acordo da Diretoria de Recursos Hídricos para lançar efluentes com vazão máxima de 8,7 l/s, DBO de 62 mg/l (56 mg/l após 6 anos), fósforo total de 0,40 mg/l.
Entre as condicionantes da PO 216/08 tem-se:I – Adequar o sistema de tratamento de efluentes existente, de forma que o efluente apresente as seguintes características: DBO inferior a 62 mg/l, concentração de fósforo total inferior a 0,40 mg/l e vazão máxima de lançamento igual a 8,7 l/s. Prazo: 180 dias após a data da publicação da Portaria de Outorga. Devido a incapacidade da empresa em atender essa condicionante (como pode ser observado nos monitoramentos) foi celebrado com o Ministério Público e o IEMA o Termo de Compromisso Ambiental – TCA autorizando a empresa a lançar um efluente com DBO até 700 mg/l no prazo de 24 meses para adequação de seu sistema de tratamento. Salienta-se que o descumprimento de condicionante poderia levar a suspensão parcial ou total da outorga” (ANÁLISE TÉCNICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL DO ESPÍRITO SANTO Nº. 05/2010, p. 20).
5 EIA/RIMA: Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impactos no Meio Ambiente. EIA: é um documento técnico onde se avaliam as consequências para o ambiente decorrentes de um determinado projeto. No Brasil foi instituído dentro da política nacional do meio ambiente – PNMA, através da resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA N.º 001/86, de 23 de Janeiro de 1986. Esta mesma resolução define quais são as atividades que estão sujeitas a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), quando da solicitação de licenciamento.
6 Analisado a partir do documento intitulado Ação de Interdito Proibitório com Pedido de Liminar “inaudita altera pars”, proposto pelo escritório Machado, Mazzei & Pinho, bem como a Decisão da 2ª Vara Cível e Comercial de Linhares. Ambos em 2010.