Com o início do século XXI, estamos vivendo um desses raros intervalos na história. Um período em que a base tecnológica das nossas relações em sociedade está — e tudo indica que continuará por um bom tempo — imersa num intenso processo de transformações tecnológicas e culturais. Assim, de forma semelhante ao que aconteceu no século XIX, com a revolução industrial e o surgimento da produção em série mediada por máquinas, as novas tecnologias de informação e comunicação, em especial a internet, revolucionam os meios de comunicação humana, como também alicerçam transformações nas mais diversas áreas da vida em sociedade.
Tendo a liberdade de acesso, produção e compartilhamento de informações como um dos grandes princípios estruturantes, as mudanças propiciadas pelos liames digitais da internet representam até o surgimento de um novo paradigma tecnológico, de uma nova Era Pós-Industrial.
Contudo, cientistas sociais, como Manuel Castells e Fred Turner, nos lembram que não existem revoluções de natureza tecnológica que não sejam precedidas de transformações culturais. Como tecnologias revolucionárias têm que ser pensadas, elas não são o resultado de um simples processo técnico ou incremental, mas sim fruto de pensamentos libertários e subversivos que são, por exemplo, ligados a gestos de rebeldia e desobediência civil. Dentro desse entendimento, esses mesmos autores afirmam que existe uma relação estreita entre os movimentos de contracultura dos anos 60 e a cibercultura libertária dos nossos dias.
Para além dos festivais de música e das manifestações do movimento hippie, os princípios de liberdade de expressão que marcaram essa época também se fizeram presente ao longo de todo o processo de criação e difusão da internet pelo que hoje é denominado de “cultura hacker”. Todavia, antes de seguirmos adiante nessa história, faz-se necessário esclarecer certa ambiguidade ou mal-entendido sobre o termo e a práxis social dos hackers. Afinal, na sua origem, o termo hacker não está associado a indivíduos irresponsáveis que invadem sistemas computacionais de forma ilícita — como é normalmente propagado pela mídia de massa mais tradicional. Esses sujeitos que violam sistemas de segurança e quebram códigos computacionais são, especificamente, denominados de “crackers” e, em geral, são também repudiados pelas comunidades de hackers. É claro que todo “cracker” já foi um hacker e isso possibilita que formadores de opinião — como, por exemplo, o jornalista e produtor cultural Nelson Motta — afirmem que todo hacker seja sim um cracker.
No entanto, de forma contrária a uma visão mais restrita que tenha como base o exemplo de alguns poucos crackers que ganharam fama no mundo por conta de invasões espetaculares em poderosos computadores corporativos, esse artigo tenta ir um pouco além desse entendimento. Em especial, buscamos resgatar a visão do filósofo finlandês Pekka Himanen e os artigos de um dos integrantes da própria comunidade hacker, Eric Raymond, que reforçam a importância desses primeiros “nativos digitais” como uma importante expressão cultural contemporânea de caráter libertário e inovador. Isto porque os hackers estão vinculados a um conjunto de valores e crenças que emergiram, num primeiro momento, das redes de pessoas que desenvolviam softwares e interagiam em redes computacionais em torno da colaboração em projetos de programação criativa. Isso significa, então, partir de um entendimento que essa cultura hacker desempenhou um papel central ao longo da história de desenvolvimento dos principais símbolos tecnológicos da atual sociedade em rede, como os primeiros computadores pessoais (PCs), a internet e os primeiros sistemas operacionais, como o UNIX. E essa cultura criativa perdura até o presente momento de forma pulsante. Afinal, inúmeras pesquisas demonstram como os hackers sustentam o ambiente fomentador de inovações tecnológicas significativas, mediante a colaboração e comunicação on-line, como também acaba permitindo a conexão entre o conhecimento originado em universidades e centros de pesquisas com os produtos empresariais que difundem as tecnologias da informação no “mundo dos átomos” — isto é, na materialidade da economia contemporânea.
Tendo a liberdade técnica de acesso, uso, compartilhamento, modificação e criação como valor supremo, a cultura hacker se manifesta em diversas áreas por meio de uma nova ética de trabalho, que lança alguns “enigmas contemporâneos” sobre o comportamento e as próprias relações sociotécnicas na realidade contemporânea. Mais especificamente, esse suposto comportamento enigmático, em termos de engajamento digital, emerge a partir de questões como: quais os valores que levam hoje milhares de tecnólogos a desenvolverem um software de alta complexidade como o Linux, na maioria dos casos de forma voluntária, além de o distribuírem de forma livre pela internet? Ou ainda, o que exatamente impulsiona milhares de wikipedistas de diversas partes do mundo a se juntarem na internet de forma colaborativa para criar e compartilhar conhecimento de forma livre e gratuita, por meio de um projeto enciclopédico internacional?
Umas das respostas mais encontradas em pesquisas sobre essa temática é que os hackers trabalham e se engajam em projetos dessa natureza, antes de tudo, porque os desafios técnicos e intelectuais são interessantes. Problemas encontrados no processo de criação de um determinado bem causam uma forte curiosidade e atração para essas pessoas, tornando-as sempre ávidas por mais conhecimento para criar ou encontrar uma solução inovadora. Essa atividade de produção exerceria então um poder de fascínio sobre esses sujeitos envolvidos pela cultura hacker, a ponto de o próprio trabalho, em determinadas condições, servir como um momento de se “recarregar as energias” — por mais contraditório que isso possa parecer num primeiro momento. Assim, para definir o princípio que rege as atividades de um indivíduo que se afirma como um hacker, o Linus Torvalds (hacker criador do Linux) acredita que as palavras “paixão” e “diversão” podem descrever bem a força lúdica que move ele a dedicar horas de um trabalho que muitas vezes é empreendido no “tempo livre”.
Por conta disso, não é difícil perceber que esta relação passional com o trabalho não é privilégio dos hackers de computador. Muito ao contrário. Em seu guia Como Tornar-se um Hacker, Eric Raymond também afirma que é possível encontrar outros tipos de hackers entre diversas áreas. “Há pessoas que aplicam a atitude hacker em outras coisas, como eletrônica ou música — na verdade, você pode encontrá-la nos níveis mais altos de qualquer ciência ou arte. Hackers de software reconhecem esses espíritos aparentados de outros lugares e podem chamá-los de ‘hackers’ também — e alguns alegam que a natureza hacker é realmente independente da mídia particular em que o hacker trabalha”.
Por exemplo, há vários pontos de contato entre tecelões, artesãos e a cultura hacker. Isto porque é possível perceber que todos eles (tecelões, artesãos e hackers) comungam de muitos valores inerentes ao trabalho criativo e coletivo, como, por exemplo, o compartilhamento do conhecimento que fundamenta o processo da produção de um bem ou uma obra — além, é claro, do prazer e da alegria inerente ao ato da criação em si. Afinal, o que seria, por exemplo, da gastronomia mundial sem o antigo hábito popular de se compartilhar receitas de culinária para se adaptar e criar novos e saborosos pratos pelos chefes de cozinha.
Richard Stallman, fundador da Free Software Foundation, ressalta, então, que um hacker é antes de tudo alguém que ama o que faz e, por conta disso, busca sempre inovar e explorar novas possibilidades no exercício do seu ofício em colaboração com seus pares. Isso significa dizer que um hacker, como individuo, busca sempre não apenas usar, mas principalmente aprimorar e aperfeiçoar o objeto de sua paixão, no contexto de um setor, organização ou comunidade da qual interage e participa. Para isso, o acesso irrestrito e o compartilhamento do conhecimento associado ao uso e ao processo de produção de um bem em questão é para um hacker, da mesma forma que para seus pares, uma condição vital da sua práxis social.
Dentro dessa perspectiva, esse ímpeto lúdico e colaborativo permite aos hackers romperem com uma dimensão clássica dos sistemas criativos da modernidade industrial: a separação entre quem usa e quem cria, aperfeiçoa ou produz um determinado bem. Em outras palavras, isso significa que a cultura hacker supera a clássica dicotomia entre “criadores” e “usuários”, pois partem de uma (antiga) premissa produtiva: os usuários são a base de toda a organização criativa somente por uma simples razão: todos os criadores eram usuários antes de começarem a contribuir com suas criações.
* Texto originalmente publicado na Revista Objectiva.