Por Reginaldo Moraes, no site da Fundação Perseu Abramo:
Lá na primeira metade dos anos 1970, um estudo da Comissão Trilateral, coordenado por Samuel Huntington, diagnosticava o que achava ser o grande mal dos tempos contemporâneos: a democracia atrapalhava o capital. As crescentes demandas sociais dificultavam o dinamismo econômico e sobrecarregavam o Estado, tornando as democracias ingovernáveis. O diagnóstico era seguido de algumas terapêuticas, todas elas tentando reduzir o impacto da participação política, incluindo, claro, o voto, sobre as grandes decisões. Algumas delas receitavam esterilizar o poder das eleições – reduzindo as atribuições dos eleitos (como, por exemplo, a indicação dos dirigentes da política econômica e monetária). Como seria difícil simplesmente abolir o voto, o sonho da governabilidade era uma participação limitada a uma fração seleta dos cidadãos, com a produção de uma apatia massiva. Uma renúncia ao voto, uma submissão consentida.
Isso me vem à lembrança folheando novamente um livro de Benjamin Ginsberg & Martin Shefter - Politics by Other Means: Politicians, Prosecutors, and the Press from Watergate to Whitewater - Basic Books, N.York, 1990. O livro não é novo. Nem os fatos que explica, nem minhas anotações nas margens. Mas vale a pena ver de novo. Comento duas ou tres ideias do estudo, traduzindo livremente algumas passagens.
A ideia básica dos autores é esta: nos Estados Unidos, em fins do século XX, a ordem política baseada nas eleições estava sendo substituída por um novo regime. A definição de regime político, neste caso, é minimalista. Refere-se ao modo pelo qual são elaboradas as regras de convivência entre os cidadãos e ao modo pelo qual são escolhidos os que mandam na tribo.
Ginsberg & Shefter sintetizam:
“Na medida em que a arena eleitoral declinou, aumentou a relevância de outras formas de combate político. Uma indicação deste deslocamento do conflito, para fora da arena eleitoral, é o crescente uso político de uma poderosa arma não eleitoral: o sistema de justiça criminal. Entre o começo dos anos 1970 e o fim dos 1980, ocorreu um crescimento de mais de dez vezes no número de indiciamentos promovidos por promotores federais contra administradores públicos [inclui políticos eleitos] de nível nacional, estadual e local. Muitos deles são servidores de nível mais baixo, mas grande número tem sido de proeminentes figuras políticas – entre eles mais de uma dúzia de membros do Congresso, vários juízes federais e numerosos administradores estaduais e locais. Muitos desses indiciamentos têm sido deslanchados por administrações republicanas, e seus alvos prioritários têm sido os Democratas.”
Isto não quer dizer que as disputas estritamente partidárias e eleitorais desapareçam, ressalvam. É claro que os partidos continuam a disputar eleições, mas ao invés de jogar todas suas cartadas em derrotar o adversário nas urnas, cada partido começa a fortalecer as instituições que comanda para usá-las na tentativa de enfraquecer a base política e governamental do adversário.
Algumas instituições merecem especial atenção, dizem eles.
“O fortalecimento da mídia de âmbito nacional e do judiciário federal deu nascimento a uma primordial técnica de combate político – revelação, investigação e processo. O acrônico para isso, RIP, é um adequado epitáfio político para os servidores públicos que se tornaram os alvos.”
O interessante, porém, é que não só desse lado vem o descrédito da política ou sua parcial substituição por outros modos de combate. Atenção para as variações do tema, mais complexas e ambíguas:
“Na ponta liberal do espectro político, vários movimentos emergem defendendo causas como a defesa do consumidor, o ambientalismo e o feminismo. Estes movimentos têm sido frequentemente chamados de “a nova política”, para distingui-los dos lideres sindicais, do bloco dos sulistas brancos e dos políticos da velha guarda com os quais competem para influenciar por dentro o Partido Democrata. No outro lado do espectro ideológico, os políticos republicanos e ativistas conservadores buscam mobilizar contribuintes descontentes com impostos, a direita religiosa e membros da comunidade de negócios.”
Alguns resultados dessa mudança são instigantes. Selecionei e traduzi também alguns dos gráficos elaborados pelos autores, sempre com base em dados oficiais.
No primeiro, a indicação da interferência cada vez maior do judiciário no disciplinamento da administração pública.
No seguinte, um indicador do declínio da participação eleitoral e crescimento do absenteísmo ou apatia.
No terceiro, uma indicação de que o alheamento não é uniforme em todos os andares da ordem social. Uns desistem mais do que os outros. E talvez esse seja mesmo o objetivo da RIP – revela, investiga, processa.
São notas sobre um estudo de quase trinta anos atrás, sobre um país distante. Mas, talvez tenham interesse, também, para tempos e países mais próximos.
* Artigo publicado originalmente no portal do Jornal da Unicamp.
Lá na primeira metade dos anos 1970, um estudo da Comissão Trilateral, coordenado por Samuel Huntington, diagnosticava o que achava ser o grande mal dos tempos contemporâneos: a democracia atrapalhava o capital. As crescentes demandas sociais dificultavam o dinamismo econômico e sobrecarregavam o Estado, tornando as democracias ingovernáveis. O diagnóstico era seguido de algumas terapêuticas, todas elas tentando reduzir o impacto da participação política, incluindo, claro, o voto, sobre as grandes decisões. Algumas delas receitavam esterilizar o poder das eleições – reduzindo as atribuições dos eleitos (como, por exemplo, a indicação dos dirigentes da política econômica e monetária). Como seria difícil simplesmente abolir o voto, o sonho da governabilidade era uma participação limitada a uma fração seleta dos cidadãos, com a produção de uma apatia massiva. Uma renúncia ao voto, uma submissão consentida.
Isso me vem à lembrança folheando novamente um livro de Benjamin Ginsberg & Martin Shefter - Politics by Other Means: Politicians, Prosecutors, and the Press from Watergate to Whitewater - Basic Books, N.York, 1990. O livro não é novo. Nem os fatos que explica, nem minhas anotações nas margens. Mas vale a pena ver de novo. Comento duas ou tres ideias do estudo, traduzindo livremente algumas passagens.
A ideia básica dos autores é esta: nos Estados Unidos, em fins do século XX, a ordem política baseada nas eleições estava sendo substituída por um novo regime. A definição de regime político, neste caso, é minimalista. Refere-se ao modo pelo qual são elaboradas as regras de convivência entre os cidadãos e ao modo pelo qual são escolhidos os que mandam na tribo.
Ginsberg & Shefter sintetizam:
“Na medida em que a arena eleitoral declinou, aumentou a relevância de outras formas de combate político. Uma indicação deste deslocamento do conflito, para fora da arena eleitoral, é o crescente uso político de uma poderosa arma não eleitoral: o sistema de justiça criminal. Entre o começo dos anos 1970 e o fim dos 1980, ocorreu um crescimento de mais de dez vezes no número de indiciamentos promovidos por promotores federais contra administradores públicos [inclui políticos eleitos] de nível nacional, estadual e local. Muitos deles são servidores de nível mais baixo, mas grande número tem sido de proeminentes figuras políticas – entre eles mais de uma dúzia de membros do Congresso, vários juízes federais e numerosos administradores estaduais e locais. Muitos desses indiciamentos têm sido deslanchados por administrações republicanas, e seus alvos prioritários têm sido os Democratas.”
Isto não quer dizer que as disputas estritamente partidárias e eleitorais desapareçam, ressalvam. É claro que os partidos continuam a disputar eleições, mas ao invés de jogar todas suas cartadas em derrotar o adversário nas urnas, cada partido começa a fortalecer as instituições que comanda para usá-las na tentativa de enfraquecer a base política e governamental do adversário.
Algumas instituições merecem especial atenção, dizem eles.
“O fortalecimento da mídia de âmbito nacional e do judiciário federal deu nascimento a uma primordial técnica de combate político – revelação, investigação e processo. O acrônico para isso, RIP, é um adequado epitáfio político para os servidores públicos que se tornaram os alvos.”
O interessante, porém, é que não só desse lado vem o descrédito da política ou sua parcial substituição por outros modos de combate. Atenção para as variações do tema, mais complexas e ambíguas:
“Na ponta liberal do espectro político, vários movimentos emergem defendendo causas como a defesa do consumidor, o ambientalismo e o feminismo. Estes movimentos têm sido frequentemente chamados de “a nova política”, para distingui-los dos lideres sindicais, do bloco dos sulistas brancos e dos políticos da velha guarda com os quais competem para influenciar por dentro o Partido Democrata. No outro lado do espectro ideológico, os políticos republicanos e ativistas conservadores buscam mobilizar contribuintes descontentes com impostos, a direita religiosa e membros da comunidade de negócios.”
Alguns resultados dessa mudança são instigantes. Selecionei e traduzi também alguns dos gráficos elaborados pelos autores, sempre com base em dados oficiais.
No primeiro, a indicação da interferência cada vez maior do judiciário no disciplinamento da administração pública.
No seguinte, um indicador do declínio da participação eleitoral e crescimento do absenteísmo ou apatia.
No terceiro, uma indicação de que o alheamento não é uniforme em todos os andares da ordem social. Uns desistem mais do que os outros. E talvez esse seja mesmo o objetivo da RIP – revela, investiga, processa.
São notas sobre um estudo de quase trinta anos atrás, sobre um país distante. Mas, talvez tenham interesse, também, para tempos e países mais próximos.
* Artigo publicado originalmente no portal do Jornal da Unicamp.