Por Franklin Ramírez Gallegos, no sítio Vermelho:
A questão é trabalhar para que os órgãos representativos eletivos se articulem e complementem a representação da sociedade civil em várias arenas de interação socioestatal. Isso pode contribuir para a total relegitimação global da política democrática e para sairmos do impasse entre políticos e cidadãos.
Cadeira Vazia (Silla Vazia – SV) surge como um mecanismo de participação sui generisestipulado pela nova Constituição do Equador. É um dispositivo que oferece aos cidadãos um assento nas reuniões dos governos locais, para que possam tomar parte no processo de decisão envolvendo questões de interesse comum. Embora a Constituição seja rica em organismos executores de participação pública, assim que o texto constitucional foi aprovado (2008) multiplicaram-se as demandas populares por esse mecanismo. Alguns governos locais ainda tiveram de emitir ordens ad hocpara regular o uso da SV, enquanto o legislativo expedia a lei normativa que regula sua existência. A Lei de Participação Cidadã foi aprovada em 2010.
O que é essa figura romântica que tem despertado tanto interesse entre as organizações e cidadãos? O artigo 101 da Constituição estabelece que as “sessões dos governos autônomos descentralizados sejam públicas e nelas a SV deverá existir e será ocupada por um representante ou um cidadão representativo para tratar das questões a serem abordadas a fim de participar na discussão e na tomada de decisão”.
À primeira vista, esse dispositivo constitucional coloca a SV como parte da atual e extensa inovação institucional aberta há duas décadas na América Latina em torno do imperativo da participação cidadã no processo democrático. Essa corrente participativa ganhou na generalidade, a ponto de redefinir, em vários países da região, as coordenadas gerais de seus regimes políticos. As novas constituições da Venezuela, Bolívia e Equador são particularmente ilustrativas desse processo, pois, na definição da soberania popular, concedem statusiguais às instituições democráticas representativas e à participação direta dos cidadãos. Tal orientação entrou em disputa com as concepções elitistas da democracia, tanto pela centralidade que outorga o monopólio decisório dos eleitos como por sua estrita adesão a uma visão liberal da representação política.
Ao olharmos atentamente a especificidade institucional da SV, observaremos, no entanto, que se trata de um mecanismo que coloca pressão sobre o simples contraste entre os cidadãos e as elites políticas ou entre participação e representação. De fato, como previsto no artigo 101 da Constituição do Equador, a SV é um dispositivo projetado desde o início para a participação popular, que acaba por conferir representação aos cidadãos em um órgão deliberativo – os conselhos do governo local – com poder de tomar decisões que afetam toda a sociedade local. Embora qualquer processo participativo exija determinados níveis de delegação dos cidadãos, essa regulamentação faz da representação da sociedade civil o núcleo do dispositivo. Novas formas de representação brotam do próprio mecanismo que amplia a participação cidadã na comunidade política. A pluralização das práticas de representação corrobora os processos de inovação democrática na região. Quais são os primeiros sinais deixados sobre a configuração e recente evolução da SV no Equador?
Em primeiro lugar, observamos que a definição constitucional da SV articula pelo menos dois aspectos da participação cidadã: a capacidade dos cidadãos de tomar parte nos debates que incluem a adoção de decisões e o que diz respeito à aplicação de dinâmicas específicas de representação social no espaço político. A SV prefigura, assim, a conjunção da participação como deliberação e como representação. Na medida em que, por meio de votação, os cidadãos também são capazes de influenciar a tomada de decisão local, percebe-se que esse mecanismo é parte do universo da democracia direta. Tudo aponta a favor dos argumentos que sinalizam que os mecanismos participativos antigos e novos têm um caráter misto ou híbrido, e não combinam com a figura do cidadão operando contra e por fora das instituições representativas.
Quanto ao procedimento específico de estruturação da representação da sociedade civil por meio da SV, há três princípios fundamentais: a) A designação de assembleias: a lei estipula que os cidadãos que ocupam a SV serão eleitos em assembleias locais, reuniões ou audiências; b) A representação temática: os pedidos para ocupar a SV são feitos em função de temas específicos que a cidade procura submeter à discussão do conselho local − os delegados da SV representam problemas públicos, e não pessoas; e c) A responsividade política dos delegados: os cidadãos representantes, bem como os representantes políticos, estão sujeitos à prestação de contas e possíveis sanções administrativas, civis e criminais.
Tais princípios formam uma base de configuração da representação democrática que se distancia do cânone liberal-representativo. Essa base se sustenta na designação eleitoral de representantes, na participação individualizada (por meio do voto), na vinculação entre representação, circunscrição territorial e partidos políticos, e em uma dinâmica de controle sujeita à lógica de pesos e contrapesos institucionais ou como efeito da mesma competência eleitoral.
Assim, a atual produção da nova representação da cidadania é forjada com base em modalidades “pós-liberais” fora da experiência eleitoral convencional. Tal inovação não está isenta de problemas de legitimidade democrática. É interessante notar dois deles. Por um lado, a representação emergente da sociedade civil nem sempre conta com a exigência explícita de autorização e se vincula como base para a representação a grupos sociais (assembleias e organizações), cujo caráter é inevitavelmente ambíguo. Por outro lado, mesmo que os delegados cidadãos da SV possam estar sujeitos a sanções de vários tipos, o desenho institucional não contempla especificações sobre o controle social adequado ao qual deveriam se submeter. O imperativo de passar por uma instância associativa como um requisito para que determinado cidadão ocupe a SV abre a opção, de qualquer forma, para que tais instâncias, mesmo que difusas, exijam de seus delegados a prestação de contas de suas ações.
Trata-se, em suma, de dilemas complexos que não fogem dos mesmos desafios da representação política tradicional. Não há, de fato, descontinuidade entre as duas formas de representação. Pelo contrário. No futuro, a questão é trabalhar para que os órgãos representativos eletivos se articulem e complementem a representação da sociedade civil em várias arenas de interação socioestatal. Isso pode contribuir para a total relegitimação global da política democrática e para sairmos do impasse entre políticos e cidadãos. O empoderamento de setores estruturalmente excluídos da tomada de decisão aparece como um foco de particular relevância para avaliar o potencial democratizante de tal pluralização das práticas de representação na região.
* Franklin Ramírez Gallegos é pesquisador da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso-Equador). Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique.
Cadeira Vazia (Silla Vazia – SV) surge como um mecanismo de participação sui generisestipulado pela nova Constituição do Equador. É um dispositivo que oferece aos cidadãos um assento nas reuniões dos governos locais, para que possam tomar parte no processo de decisão envolvendo questões de interesse comum. Embora a Constituição seja rica em organismos executores de participação pública, assim que o texto constitucional foi aprovado (2008) multiplicaram-se as demandas populares por esse mecanismo. Alguns governos locais ainda tiveram de emitir ordens ad hocpara regular o uso da SV, enquanto o legislativo expedia a lei normativa que regula sua existência. A Lei de Participação Cidadã foi aprovada em 2010.
O que é essa figura romântica que tem despertado tanto interesse entre as organizações e cidadãos? O artigo 101 da Constituição estabelece que as “sessões dos governos autônomos descentralizados sejam públicas e nelas a SV deverá existir e será ocupada por um representante ou um cidadão representativo para tratar das questões a serem abordadas a fim de participar na discussão e na tomada de decisão”.
À primeira vista, esse dispositivo constitucional coloca a SV como parte da atual e extensa inovação institucional aberta há duas décadas na América Latina em torno do imperativo da participação cidadã no processo democrático. Essa corrente participativa ganhou na generalidade, a ponto de redefinir, em vários países da região, as coordenadas gerais de seus regimes políticos. As novas constituições da Venezuela, Bolívia e Equador são particularmente ilustrativas desse processo, pois, na definição da soberania popular, concedem statusiguais às instituições democráticas representativas e à participação direta dos cidadãos. Tal orientação entrou em disputa com as concepções elitistas da democracia, tanto pela centralidade que outorga o monopólio decisório dos eleitos como por sua estrita adesão a uma visão liberal da representação política.
Ao olharmos atentamente a especificidade institucional da SV, observaremos, no entanto, que se trata de um mecanismo que coloca pressão sobre o simples contraste entre os cidadãos e as elites políticas ou entre participação e representação. De fato, como previsto no artigo 101 da Constituição do Equador, a SV é um dispositivo projetado desde o início para a participação popular, que acaba por conferir representação aos cidadãos em um órgão deliberativo – os conselhos do governo local – com poder de tomar decisões que afetam toda a sociedade local. Embora qualquer processo participativo exija determinados níveis de delegação dos cidadãos, essa regulamentação faz da representação da sociedade civil o núcleo do dispositivo. Novas formas de representação brotam do próprio mecanismo que amplia a participação cidadã na comunidade política. A pluralização das práticas de representação corrobora os processos de inovação democrática na região. Quais são os primeiros sinais deixados sobre a configuração e recente evolução da SV no Equador?
Em primeiro lugar, observamos que a definição constitucional da SV articula pelo menos dois aspectos da participação cidadã: a capacidade dos cidadãos de tomar parte nos debates que incluem a adoção de decisões e o que diz respeito à aplicação de dinâmicas específicas de representação social no espaço político. A SV prefigura, assim, a conjunção da participação como deliberação e como representação. Na medida em que, por meio de votação, os cidadãos também são capazes de influenciar a tomada de decisão local, percebe-se que esse mecanismo é parte do universo da democracia direta. Tudo aponta a favor dos argumentos que sinalizam que os mecanismos participativos antigos e novos têm um caráter misto ou híbrido, e não combinam com a figura do cidadão operando contra e por fora das instituições representativas.
Quanto ao procedimento específico de estruturação da representação da sociedade civil por meio da SV, há três princípios fundamentais: a) A designação de assembleias: a lei estipula que os cidadãos que ocupam a SV serão eleitos em assembleias locais, reuniões ou audiências; b) A representação temática: os pedidos para ocupar a SV são feitos em função de temas específicos que a cidade procura submeter à discussão do conselho local − os delegados da SV representam problemas públicos, e não pessoas; e c) A responsividade política dos delegados: os cidadãos representantes, bem como os representantes políticos, estão sujeitos à prestação de contas e possíveis sanções administrativas, civis e criminais.
Tais princípios formam uma base de configuração da representação democrática que se distancia do cânone liberal-representativo. Essa base se sustenta na designação eleitoral de representantes, na participação individualizada (por meio do voto), na vinculação entre representação, circunscrição territorial e partidos políticos, e em uma dinâmica de controle sujeita à lógica de pesos e contrapesos institucionais ou como efeito da mesma competência eleitoral.
Assim, a atual produção da nova representação da cidadania é forjada com base em modalidades “pós-liberais” fora da experiência eleitoral convencional. Tal inovação não está isenta de problemas de legitimidade democrática. É interessante notar dois deles. Por um lado, a representação emergente da sociedade civil nem sempre conta com a exigência explícita de autorização e se vincula como base para a representação a grupos sociais (assembleias e organizações), cujo caráter é inevitavelmente ambíguo. Por outro lado, mesmo que os delegados cidadãos da SV possam estar sujeitos a sanções de vários tipos, o desenho institucional não contempla especificações sobre o controle social adequado ao qual deveriam se submeter. O imperativo de passar por uma instância associativa como um requisito para que determinado cidadão ocupe a SV abre a opção, de qualquer forma, para que tais instâncias, mesmo que difusas, exijam de seus delegados a prestação de contas de suas ações.
Trata-se, em suma, de dilemas complexos que não fogem dos mesmos desafios da representação política tradicional. Não há, de fato, descontinuidade entre as duas formas de representação. Pelo contrário. No futuro, a questão é trabalhar para que os órgãos representativos eletivos se articulem e complementem a representação da sociedade civil em várias arenas de interação socioestatal. Isso pode contribuir para a total relegitimação global da política democrática e para sairmos do impasse entre políticos e cidadãos. O empoderamento de setores estruturalmente excluídos da tomada de decisão aparece como um foco de particular relevância para avaliar o potencial democratizante de tal pluralização das práticas de representação na região.
* Franklin Ramírez Gallegos é pesquisador da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso-Equador). Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique.
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