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Ainda vivemos em uma democracia?

21 de Abril de 2019, 23:02 , por Altamiro Borges - | No one following this article yet.
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Por Tatiana Carlotti, no site Carta Maior:

Depois do que acompanhamos na seara política em 2018, da prisão política de Lula à vitória de Jair Messias Bolsonaro, será possível dizer que vivemos em plena democracia no Brasil?

Esta foi uma das questões discutidas pelos professores André Singer (USP-CENEDIC), Marcos Nobre (Unicamp-Cebrap) e Sebastião Velasco (Unicamp, Cedec, PPG San Tiago Dantas) no debate As eleições de 2018 e o futuro da democracia no Brasil, ocorrido em 12 de abril, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

Organizado pelo Cedec, IPPRI, FESPSP e San Tiago Dantas, o debate foi transmitido ao vivo e pode ser acessado no Youtube, pelo link https://www.youtube.com/watch?v=LKXpXo1VfI8 . Trata-se de duas horas e meia de reflexão sobre a eleição de 2018, a vitória de Jair Bolsonaro e, sobretudo, suas consequências para a vida democrática do país.

Partindo da premissa de que “não só existe método no caos como o caos em si é um método”, Marcos Nobre, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, destacou a importância de se compreender a gênese e o funcionamento do governo Bolsonaro para identificarmos suas fragilidades e pontos de fratura.

Construído como líder de uma “revolução conservadora”, ao se apresentar como anti-establishmnet, Jair Bolsonaro angariou a fidelidade de 15% dos eleitores brasileiros, nas palavras de Nobre, “o bastião do seu governo”, “o núcleo duro do bolsonarismo, mobilizado de forma permanente pelos grupos de WhatsApp”. Segundo o filósofo, boa parte desse núcleo vem, socialmente, da faixa intermediária que, durante os governos petistas, permaneceu entre os mais ricos e os mais pobres. “Quem estava no meio ficou mais ou menos parado” e “isso teve um efeito enorme no resultado eleitoral”, avaliou Nobre.

Ele também mencionou a ocorrência de uma “revolta conservadora das baixas patentes” no país – fieis contra pastores, magistrados de primeira instância contra instâncias superiores do Judiciário, baixo clero contra o alto clero no Congresso, baixas patentes no mercado financeiro contra os chamados “bancões” etc. – que foram seduzida pelo discurso antissistêmico de Jair Bolsonaro. Este, por sua vez, soube canalizar o medo e mais que isso, “soube instilar o medo na população” aproveitando-se “de um sofrimento social que vinha se acumulando desde 2014, uma recessão como nunca tivemos e um aumento da violência patentes”, destacou.

Em sua avaliação, “Bolsonaro usou o colapso institucional que estamos vivendo desde 2014 para se eleger” e, uma vez eleito, agora “ele precisa manter a institucionalidade em estado de colapso permanente” para continuar no poder. O problema é que para se governar um país é preciso de certa estabilidade. Daí o papel das Forças Armadas que apesar de não serem um partido político, passaram a atuar como “uma espécie de Partido Republicano”.

A partir de um núcleo de generais que serviram no Haiti, com forte coesão entre eles, Bolsonaro vem expandindo a presença e influência de militares no governo. Em março de 2019, reportagem do Estadão contabilizava oito ministérios comandados por militares e, pelo menos, 103 militares distribuídos em diversos postos do governo. “Essa função de vertebrar o governo sempre coube aos partidos, PT e PSDB se dividiam nesse processo. Hoje, isso cabe aos militares”.

Segundo Nobre, o governo Bolsonaro funciona a partir de um constante tensionamento entre “duas forças que se desafiam o tempo todo”: o polo mobilizador (sua rede de apoio) e o polo organizador. Além disso, trata-se de um governo que não se pretende “um governo para todos”, mas sim para uma minoria sustentável, algo entre 30% e 40%, mais perto de 1/3 do eleitorado. A tática “é manter essa base permanentemente mobilizada e, ao mesmo tempo, manter o polo organizador com os militares. Uma coisa não vai sem a outra”.

Ao avaliar a situação da oposição no país, Nobre destacou que “quem ganha a eleição determina ao perdedor o seu lugar”. Neste sentido, na medida em que se apresenta como anti-establishment, o governo Bolsonaro joga a oposição no espaço da “velha política”. Tanto partidos políticos como organizações ligadas a partidos “atuam hoje como bloqueios à reorganização da oposição”.

A saída virá de “um movimento de base capaz de obrigar partidos e organizações a formarem uma frente em defesa da instituição democrática e, sobretudo, da construção de novas instituições democráticas”. Nobre, inclusive, rememorou o ambiente da redemocratização, quando havia uma frente de organizações pensando como seriam as instituições democráticas no futuro. “Se ficarmos só no passado, nós perderemos. É preciso refazer o pacto da disputa política”, concluiu.

Radicalização da classe média

Enquanto Nobre se centrou nos métodos e funcionamento do governo Bolsonaro, André Singer, professor de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, esmiuçou o processo eleitoral de 2018.

Lembrando que “não existe uma maioria de extrema-direita no Brasil”, Singer criticou as análises que enxergam a vitória de Bolsonaro como “um novo alinhamento eleitoral”, “ruptura” ou “revolução eleitoral”. Em sua avaliação, pelo contrário, não se trata de um realinhamento, tampouco desalinhamento, mas de uma eleição dentro do alinhamento ocorrido em 2016.

A questão é compreender como a sociedade brasileira (que não é de extrema-direita) elegeu Jair Bolsonaro. Neste sentido, um fenômeno importante a ser analisado é o “derretimento do PSDB”. Os números falam por si: Aécio obteve 34% dos votos válidos em 2014, Alckmin amargou 5% em 2018; Dilma foi eleita com 42% dos votos válidos, Haddad obteve 29%. A perda de 13 pontos percentuais foi significativa, mas não houve um derretimento como aconteceu com o PSDB (que perdeu praticamente 90% do seu eleitorado), avaliou Singer.

“Isso não significa que o PSDB acabou. É um erro pensar que derrotas eleitorais acabam com partidos políticos”. Por outro lado, “é normal que um partido que ganhou quatro eleições seguidas perca uma quinta eleição. Isso faz parte da democracia”. A questão central é que o eleitorado do PSDB optou por um outsider à semelhança do que aconteceu no país em 1989 com Fernando Collor de Mello ou em 1960 com Jânio Quadros. “O campo da classe média sofreu essa intensa reversão, ao passo que, no outro lado [campo popular] houve uma mudança dentro dos parâmetros aceitáveis”, comparou.

Singer também localizou nas manifestações de junho de 2013, o início dessa radicalização. “Em 48 horas, as ruas foram tomadas por gente com camisa verde e amarela (e seria essa a base do Bolsonaro). Ninguém sabia o que era aquilo e aquilo era um processo de radicalização”. Um processo que Singer relaciona ao julgamento televisionado da Ação Penal 470, durante o segundo semestre de 2012. “Quando começa a Lava Jato, com tamanha ocupação dos noticiários eletrônicos, com horas e horas de notícias na mesma direção”, a midiatização disseminou “a visão de que o Estado brasileiro cobrava impostos demais para que fossem roubados por políticos do campo popular”.

Em sua avaliação, embora não explique a vitória de Bolsonaro, a radicalização da classe média permite compreender o “derretimento do PSDB” que ficou muito associado ao governo Temer, fortemente atingido por denúncias de corrupção.

Austericídio

Em relação à derrota do PT, Singer trouxe um enfoque relacionado à crise internacional que atingiu “de modo central a luta de classes”. “A democracia precisa ser pensada em chave dupla: o problema democrático propriamente dito e o problema do neoliberalismo que vem assumindo uma feição austericida, obrigando o país a declinar rumo a um gravíssimo retrocesso social”.

Em meados de 2011, “houve uma mudança da conjuntura econômica, quando foi emanada, dos centros da burguesia internacional, uma diretriz geral em torno da política de austeridade”. Dilma conseguiu resistir até 2014. A partir daí, o país entrou na austeridade e, consequentemente, em um processo recessivo e de estagnação econômica que atingiu fortemente a classe trabalhadora.

Para Singer, os 13 pontos perdidos pelo PT nas eleições de 2018 representam a parcela que, frente a impossibilidade de ter Lula como seu candidato e presidente, não abraçou a candidatura Haddad. Havia uma avaliação de que “era preciso mudar” e “mudar” para o setor majoritário do eleitorado, que vive (desde 2014) em situação de crescente desespero, significa “geração de emprego e renda”. É o que explica a queda de 49% para 34% da aprovação de Bolsonaro. “Não houve geração de emprego e de renda e não vai haver. As pessoas perceberam isso e, portanto, a popularidade dele vai continuar caindo”, previu.

Em relação à democracia, “o principal elemento que afirma que não estamos mais em plena democracia no Brasil é o fato de Lula não poder ser candidato”, avaliou. “Na medida em que Lula não pode ser candidato e todos os outros que estão concorrendo com ele, outros líderes importantes, podem, há um desequilíbrio que questiona a plenitude da democracia brasileira”. Apesar disso, o calendário eleitoral foi respeitado.

Após o golpe parlamentar de 2016, “nós estávamos em uma democracia esgarçada. Isso se agravou com o falto de o principal líder do campo popular ter sido amarrado, portanto, trata-se de uma democracia relativa”. Agora, o que temos de fazer “é lutar para preservar o que dela ainda existe, e restaurá-la plenamente”, afirmou.

Mencionando as derrotas históricas da classe trabalhadora (teto de gastos, reforma trabalhista, reforma da previdência), Singer acrescentou que “após o reformismo fraco do lulismo, nós estamos vivendo um contra reformismo forte”. É necessário construir “uma proposta com capacidade de apontar para a unidade dos trabalhadores que precisam, agora, se confrontar com essa ofensiva burguesa”.

“O lulismo foi conciliador até onde pode ser. Agora, estamos diante de uma realidade na qual não é mais possível conciliar porque o outro lado não quer. Precisamos de respostas a altura desse desafio”, concluiu.

Certezas e incertezas da democracia

Na condição de coordenador da mesa e de conferencista, Sebastião Velasco e Cruz, professor de Ciência Política na Unicamp e de Relações Internacionais do Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação, deu ênfase à questão democrática e, também, da soberania nacional.

Citando os dados eleitorais de 20 de agosto de 2018 (quatro meses depois de Lula ser levado a Curitiba e um mês antes do anúncio da candidatura Haddad), quando o petista contava com 37% das intenções de voto e Bolsonaro, 18%, Velasco destacou que “a democracia envolve uma combinação de certezas e incertezas”.

Há incertezas, por exemplo, em relação ao resultado eleitoral porque, por definição, as eleições, fundamentais em qualquer democracia, são uma competição. “Ninguém sabe, de antemão, o resultado; e elas acontecem dentro de determinadas certezas, por exemplo, a de que as pessoas não serão espancadas, assassinadas ou presas sem devido processo ou sem culpa”, afirmou.

Daí a questão: qual o sentido da eleição de 2018 e em que medida podemos falar do Brasil enquanto democracia “se a única certeza que envolvia a eleição de 2018 era a de que o candidato favorito [Lula] não podia ser eleito e sequer participar do processo eleitoral?” Prova disso foi a atuação do ministro Luiz Fux (Supremo Tribunal Federal) que, em decisão arbitrária e ilegal, impediu Lula de ser entrevistado por jornalistas da Folha de S. Paulo, em setembro de 2018, inclusive cassando decisão de seu par, o ministro Lewandowski, que havia autorizado a entrevista.

Outro episódio lembrado por Velasco, não menos sintomático, foram as declarações do então comandante do Exército, general Villas Boas que – frente ao salto de Haddad (de 4% a 21%, no final de setembro) – chegou a questionar publicamente a legitimidade do futuro governo e das eleições como um todo. “O Lula não podia ganhar, o Haddad não podia ganhar. Não podia ganhar qualquer alternativa ao programa que vinha sendo implantado no Brasil desde 2015, sobretudo desde 2016, com a deposição da Dilma”. O alijamento do PT, avaliou, era um dado. “Um resultado inamovível, uma premissa que, uma vez dada, até se poderia conversar, mas dentro de um horizonte muito limitado de alternativas e de possibilidades”.

Velasco trouxe também uma reflexão de fundo sobre a questão nacional. Em sua avaliação, “nós estamos vivendo não apenas o desmonte de um modelo de política econômica, mas de um modelo de Estado, de projeto nacional. Há a tentativa de lançar o Brasil num rumo que nunca foi dele, nem na República Velha, nem no Império, de adesão sem limites, ou seja, de subordinação integral a um poder externo”.

E esse processo não cai do céu, tampouco surge com o governo Bolsonaro. Para Velasco é impossível compreender os processos de 2013 e, sobretudo, a Lava Jato, se não incluirmos entre os atores estratégicos – seja o ex-juiz e hoje ministro, sejam os promotores – “a vinculação orgânica de uma parcela do aparelho de Estado brasileiro a um regime internacional”.

Vinculação, detalha Velasco, a um esquema que não é nacional, mas “está nas vinculações da OCDE, do Banco Mundial, em um conjunto de normas e de instituições que têm no seu topo o Departamento de Justiça dos Estados Unidos”. E não só do ponto de vista burocrático, “mas do ponto de vista da infraestrutura, de escuta, de monitoramento que abastecem a operação desse sistema no Brasil, na Argentina, no Equador, no Peru, na Bolívia, em todos os lugares, sobretudo da América Latina”.

Segundo Velasco, nós estamos “vivendo um processo de internacionalização das estruturas estatais”. Esse processo não acontece apenas nas relações econômicas, ele se dá também entre os aparelhos de Estado. “Você tem, aqui e ali, parcelas do Estado que se vinculam a cadeias de comando que estão em centros distintos. No Brasil (e não só no Brasil) nesta área, a vinculação com o Departamento de Justiça norte-americano é muito importante”, alertou.

A íntegra do debate encontra-se no Youtube e pode ser conferida no link abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=LKXpXo1VfI8

Fonte: https://altamiroborges.blogspot.com/2019/04/ainda-vivemos-em-uma-democracia.html