Audiência pública debate o reconhecimento do movimento hip hop como manifestação popular da cultura brasileira. Foto: Antonio Araújo/ Câmara dos Deputados
A Comissão de Cultura realizou um debate nesta terça-feira (10) sobre o reconhecimento do movimento hip hop como manifestação da cultura popular brasileira, proposto no Projeto de Lei (PL) 3/2011, do então deputado Maurício Rands (PT/PE). A ideia era colher as opiniões de integrantes do movimento para contribuir na elaboração do relatório, que deverá ser apresentado no próximo ano pela deputada Luciana Santos (PCdoB/PE).
“Eu queria colher as contribuições de quem faz o dia a dia do movimento hip hop. Acho que estamos dando um passo muito importante para dar outra dimensão a esse movimento cultural brasileiro. O reconhecimento pelo Estado dará a dimensão que o movimento precisa para se desenvolver e ser fomentado, para enfrentar o preconceito que ainda existe sobre o significado do que é essa expressão musical”, afirmou a parlamentar.
Além do reconhecimento, o PL decreta que todas as esferas administrativas devem incluir “as iniciativas de artistas e entidades sociais ligadas ao movimento, no rol de políticas públicas existentes naquele ente federativo”.
Para Sérgio Ricardo Cavalcante de Matos, coordenador-geral da Associação Metropolitana de Hip Hop em Pernambuco, esse reconhecimento permitirá a cobrança do Poder Público de melhores condições na saúde, na educação, fortalecendo a luta contra a desigualdade socioeconômica, que já vem sendo travada pelo movimento hip hop. “O hip hop tem um poder de fogo muito forte para mobilizar a juventude para um espaço de lazer e discussão. Esse reconhecimento é o hip hop sendo instrumentalizado como ferramenta de trabalho, de inclusão social. Isso aqui vai referendar um reconhecimento que nós temos na comunidade, mas com isso, economicamente, a gente vai ter poder de fogo para poder contribuir com a sociedade”, destacou
O debate, que aparentemente era simples levantou uma série de questões por parte dos convidados. O rapper brasiliense Gog, por exemplo, apontou a necessidade de se desburocratizar os processos culturais para incluir de fato o movimento. Para ele, o reconhecimento é válido, mas o momento não dialoga com a realidade das comunidades brasileiras. “De forma geral, todo mundo quer ser reconhecido. Só que existe uma contradição entre a homenagem e o momento em que a gente vive no Brasil, principalmente a juventude negra. O hip hop é um movimento negro e nunca se matou tanto jovem negro no Brasil através do braço armado do Estado”, disse.
Gog afirmou a necessidade de levar a discussão sobre o reconhecimento do hip hop como manifestação cultural brasileira para as comunidades, para que o movimento se aproprie do debate e com isso, a futura aprovação da matéria também seja referendada nas favelas. “O hip hop não conhece o projeto de lei e não vai engolir nada de cima para baixo. Mas queremos saber, conhecer, discutir. Precisamos de uma cultura de encontros. Vamos à Ceilândia, ao Capão Redondo, à Taguatinga. Vamos abrir essas audiências públicas à comunidade de verdade e levar essas discussões até lá”, completou.
De acordo com a relatora da matéria, a ideia é realizar outras audiências nos estados para ampliar a discussão e quiçá o próprio projeto, tornando-o o que ela chamou de um “verdadeiro Estatuto do hip hop”.
Hip hop brasileiro
Flávio Renegado defende que o Brasil tem um hip hop verde e amarelo. Foto: Antonio Araújo/ Câmara dos Deputados
Cultura presente em todo o País, o hip hop hoje transita não apenas nas periferias, mas também nas mais diversas classes sociais, praças e escolas. Sua assimilação pelos brasileiros misturou o gênero com elementos da cultura “tradicional” do País, como o frevo, o jongo, a capoeira, o repente, a embolada, o samba, e deu uma nova roupagem a essa expressão cultural, recorrentemente ligada aos Estados Unidos.
“O Brasil tem uma característica antropofágica. Nós assimilamos vários elementos culturais advindos de fora, mas ao mesmo tempo trazemos isso inovando. A cultura hip hop chegou aqui com essa perspectiva também. Muita gente tem receio, porque diz que é uma forma de colaborar com a padronização da cultura norte-americana, mas eu não vejo dessa forma. Hip hop é uma cultura de resistência, que surgiu das opressões sofridas pelo povo afro americano, hispânico e que foi trazida para cá, dentro da diáspora africana e se estabeleceu aqui conosco. Isso pra mim é a consolidação dessa imagem e a quebra de preconceito que existe contra a cultura hip hop pelo fato dela ter surgido nos EUA”, disse Sérgio Ricardo Cavalcante de Matos.
“Hoje a gente tem um hip hop verde e amarelo. O rapper de hoje é o Griô do século 21. Nossa cultura é da oralidade e esse reconhecimento vai nos levar a discutir um outro momento, que é o de entender a nossa cadeia produtiva e usar esse reconhecimento como forma de geração de emprego, por exemplo. O Estado está aqui para tornar válido o que o povo já elegeu. Mas vamos tratar isso de forma mais organizada aos olhos do Estado, e com isso, vamos poder reivindicar mais do Estado também”, destacou o rapper Flávio Renegado.
Preconceito
O compositor e integrante do movimento Mangue Beat, Fred Zero Quatro, reforçou a importância do projeto para quebrar preconceitos. “É uma forma de quebrar o preconceito e enfrentar de forma mais definitiva a questão histórica da repressão para que o hip hop deixe de ser criminalizado e passe a ser reconhecido como um gênero musical como qualquer outro que já está incorporado no cotidiano da formação educacional de todo brasileiro.”
Para Big Richard, membro da Nação Hip Hop, um projeto como este é extremamente útil, porque vem legitimar e aproximar do Legislativo “toda essa movimentação artístico-cultural e política que já acontece nas periferias do Brasil”. “A gente está falando de comunidades historicamente alijadas. Comunidades oriundas do sistema escravocrata. O hip hop é feito em sua ampla maioria por jovens negros. Jovens negros, que segundo os dados, são as maiores vítimas de violência. São alijados da educação e reconhecer o hip hop enquanto cultura popular brasileira é legitimar o trabalho desse jovem alijado, discriminado e empoderá-lo a partir de editais, e contemplações oriundas do Legislativo, Executivo e isso trabalha, no mínimo, a autoestima desse jovem”, pontuou.
Para a presidente da Comissão de Cultura, deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), o debate foi muito rico, pois trouxe uma nova visão a essa discussão. “O debate era sobre um projeto de lei que reconhece o hip hop como manifestação cultural, mas para eles é muito claro que eles não precisam do Estado para existir. E eles demandam essa isonomia. Mas na minha opinião, reconhecer em lei como manifestação cultural, significa antagonizar com o preconceito e criminalização que esse movimento sempre sofreu. Eles trazem o hip hop não como elemento estrangeiro, mas como uma linguagem universal da negritude mundial. Tenho total clareza que devemos aprovar esse projeto e partir daí dar um salto maior de estudar a cadeia produtiva deles e como a gente pode ajudar mais. Porque essas manifestações da juventude negra brasileira precisam ter, de fato, cobertura e guarida nas políticas públicas brasileiras”, destacou a deputada.
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