Nem a ordem do ministro Alexandre de Moraes, que no dia 19 de junho deu prazo de 48 horas para que os hospitais paulistas provassem que estão cumprindo a lei e realizando o procedimento, surtiu efeito. A intimação se deveu ao fechamento do serviço de aborto legal pela prefeitura de São Paulo – sob falsos pretextos, como revelou a Agência Pública – do Hospital Nova Cachoeirinha, a unidade com o maior número desses atendimentos no país.
No dia 21 de junho, depois, portanto, da ordem de Moraes, uma mulher vítima de estupro procurou, sem sucesso, o serviço de aborto legal no Hospital Campo Limpo, que é um dos quatro hospitais municipais que realizariam o procedimento, segundo a prefeitura informou ao STF. O direito ao aborto legal ainda seria negado três vezes (em dois hospitais municipais e um estadual) até a vítima ser encaminhada ao Hospital São Paulo (que é federal), onde finalmente foi atendida no dia 30 de junho.
“ O STF, porém, tão criticado por exagerar em outras medidas, até agora não tomou nenhuma atitude em relação a essa contumaz violação de direitos – e de suas próprias ordens.
Há falhas ainda maiores no Judiciário, que deveria não apenas punir, mas prevenir a violência sexual, principalmente em relação às crianças. Um dos muitos casos, esse recente, veio à tona na quarta-feira passada (17), quando o desembargador Luís César de Paula Espíndola, do Tribunal de Justiça do Paraná, foi suspenso do cargo pela Corregedoria Nacional de Justiça.
Em audiência, no dia 3 de julho, que analisava o assédio de um professor a uma menina de 12 anos, o desembargador Espíndola votou contra o pedido de medida protetiva feito pela vítima, disse que não iria “estragar a vida do professor” e afirmou: “Quem está assediando, quem está correndo atrás dos homens, são as mulheres, essa é a realidade, as mulheres estão loucas atrás dos homens”. O desembargador foi condenado no ano passado por violência doméstica contra a irmã e a mãe.
A punição claramente insuficiente ao desembargador misógino – um afastamento temporário sem prejuízo para seus polpudos rendimentos – revela a que ponto chega a naturalização do machismo e o privilégio dos juízes, especialmente nas instâncias superiores.
Como disse a jurista Eloísa Machado, professora da Fundação Getulio Vargas ao podcast Café da Manhã, “se é verdadeira a afirmação de que a gente tem racismo estrutural no sistema de justiça, também é verdade quando a gente diz que tem um tipo de machismo estrutural entranhado no Poder Judiciário”. Um machismo que “influencia, sim, a maneira de julgar”, como explicitou a jurista.
Aliás, vale lembrar: também são as mulheres e meninas negras a maioria das vítimas de violência sexual e feminicídio.
“ Se não podemos confiar no Congresso – que deve votar no segundo semestre o PL do Estupro, que equipara o aborto acima de 22 semanas ao homicídio –, maior risco representa ainda a contaminação do Judiciário pelo racismo e machismo – que vai dos tribunais à polícia, esta sempre pronta a desestimular e menosprezar as vítimas de violência sexual e doméstica como assinala, mais uma vez, o Anuário deste ano.
A igualdade entre as pessoas, independentemente de gênero, cor da pele ou orientação sexual, é garantida pela Constituição como direito fundamental. Os “guardiões da democracia” parecem não lhe dedicar a devida atenção.
Marina Amaral.