O Dr. Mesóclise era o mais ilustre cidadão de Banana Verde, farol ético e moral para as gerações presentes e futuras, receptáculo de extensivos conhecimentos exclusivos e gerais, conjugador emérito de verbos e excepcional colocador de pronomes.
Com tantas virtudes, coube a ele a tarefa de salvar seu rincão das desgraças causadas por alienígenas sequiosos de impor, como se estivessem em suas exóticas terras, ideologias estranhas à boa índole do trabalhador e ordeiro povo bananaverdense.
Reunidos os cidadãos de bem, foi traçado o plano para que se restaurassem os antigos costumes e a moral de sempre, aquela que determina que cada um não só reconheça, mas permaneça, em seu devido lugar, predeterminado em eras esquecidas, algo que os de fora trataram de mudar, impetuosa e temerariamente, tão logo assumiram o controle dos negócios executivos do povoado.
Escolhidas as tarefas de cada um, saíram todos à labuta, empolgados com a relevância da missão purificadora.
O delegado, o juiz, o promotor, o presidente da Câmara dos Vereadores, o dono do supermercado Boa Compra, o diretor do semanário Letras da Comarca, o quase centenário Juca Belo, ainda ativo nos afazeres de sua fazenda Esperança, todos sabiam perfeitamente o que tinham de fazer para limpar o ar das impurezas trazidas pelos forasteiros.
No austero e venerando salão onde se reuniu o escol bananaverdense, restou apenas o ínclito Dr. Mesóclise, a esfregar as suas delicadas, longas e honradas mãos, como se lhe estivessem a borbulhar milhões de pensamentos, cada qual mais inspirador, sobre o novo porvir de sua querida estância.
Com tantas forças reunidas, expulsar os adventícios foi um encargo relativamente fácil.
Restaram, na sóbria sociedade bananaverdense, alguns focos de resistência à nova velha ordem que se instaurava, mas eram desorganizados, e, pior, periféricos que eram, por mais alta a sua algaravia, ninguém os escutava.
Passado o tempo, os homens de bem supuseram ter reposto o que de direito em seus lugares arcaicos.
Para eles, tudo corria como sempre deveria ter sido na Banana Verde de seus sonhos.
Até que...
Um dia, o carro do juiz quebrou em plena estrada para a vizinha e aprazível Campo dos Abacaxis; o prédio da Delegacia de Polícia pegou fogo; o promotor torceu o pé direito ao subir a escadaria (oito degraus apenas) do Fórum; as vacas do velho Juca Belo pararam de dar leite; pelo menos dez pessoas passaram mal depois de se deliciarem com amostras de petiscos no Supermercado Boa Compra; o presidente da Câmara dos Vereadores foi flagrado em relações íntimas com a secretária da Casa Legislativa; e a manchete do Letras da Comarca saiu com um terrível "Nosocômio local sofrerá amputação" - o redator jura que no texto que mandou para a oficina estava escrito "ampliação".
Já o Dr. Mesóclise sofreu a maior de suas desventuras.
Foi num discurso de inauguração daquela que considerava uma das mais marcantes e grandiosas obras da nova/velha gestão bananaverdense, um sólido e amplo banco para três lugares, todo de cimento, na Praça Imperial, centro pulsante da urbe.
Num lapso, devido talvez ao estresse provocado pelas suas mais recentes funções, quiçá pelo seu esforço cotidiano em prol da recuperação social, econômica, e, principalmente, ética e moral, de seu querido torrão natal, o Dr. Mesóclise desafinou em sua alocução e relegou à mediocridade o pronome usado no elegante verbo "sentar", que usava em referência ao objeto a ser inaugurado - em vez de "sentar-me-ei", muito mais adequado ao seu extenso conhecimento, soltou um singelo, prosaico e ordinário, "me sentarei".
Depois dessa tragédia, o Dr. Mesóclise nunca mais foi o mesmo, danou-se a tartamudear repetidamente, como se as palavras, antes tão próximas, fossem agora suas inimigas.
Também Banana Verde, que parecia ter recuperado, depois da aventura dos forâneos, todo o seu resplender de outrora, rendeu-se à irrelevância de tantos outros povoamentos esquecidos deste planeta Terra.
Estudiosos de centros avançados ainda se debruçam nesse estranho episódio, tentando entender por que se deu o colapso de tão sofisticado projeto redentor.
Castigo divino, coincidências de infortúnios?
As hipóteses são várias, mas a mais tentadora é a que diz que Banana Verde sucumbiu à sua própria ambição, ou a de seus mais ilustres cidadãos - de materializar aquilo que eles possuem em seu íntimo, o que, no caso, era, para surpresa de muitos, tão somente a mais profunda ignorância, um gigantesco vazio - o nada, enfim. (Carlos Motta)