O herói do nosso tempo em ESQUILOS DE PAVLOV, de Laura Erberby alfredomonte |
“Um artista é sempre algum muito parecido com o sujeito que procura parecer interessado na conversa mas no fundo se pergunta se não terá deixado o gás aberto antes de sair”. (trecho de Esquilos de Pavlov)
“…por que estragar tudo com a palavra arte?” (idem)
Associe-se a celebração de um drinque num discurso sobre o que seria uma autêntica vanguarda artística, pronunciado por uma ambígua senhora de sobrenome Pavlov, para artistas de variada procedência agraciados com bolsas de uma Fundação, na Copenhague do início do milênio, a uma passagem de Katherine Mansfield (“Minha mente parecia um esquilo. Eu juntava e juntava coisas, e depois as escondia, para quando chegasse um longo inverno”), e a tenebrosas experiências comportamentais com prisioneiros levadas a cabo por regimes totalitários, e se terá uma ideia aproximada da educação sentimental do narrador (Ciprian Momolescu, romeno[1]) do romance Esquilos de Pavlov (nome do drinque): “Eu era um esquilo juntando coisas para um dia desistir de verdade e depois desistir de desistir”.
Depois de passar em branco e se tornar uma das escolhas discutíveis na seleção da Granta dos “melhores jovens escritores brasileiros”, com o fraco Aquele vento na praça, conto em que a Romênia e a arte são igualmente pontos de fuga da trama[2], Laura Erber nos propõe um ambicioso móbile narrativo, composto por microestórias que se vão se entremeando à melancólica trajetória de Ciprian, de Bucareste a Paris, numa Europa pós-1989 em cujas complexas ramificações territoriais a vida de artistas diversos forma um esquivo mosaico da tensão entre a pretensa liberdade de ação/criação e programações, condicionamentos, expectativas de recompensa[3]: “Eu devia me sentir salvo ou perseguido? Era um acordo ou um jogo cujas regras eu desconhecia?”
De fato, o universo das artes plásticas, em suas formas contemporâneas (instalações, intervenções, sobre as quais mantenho um olhar de ceticismo, fruto possivelmente da minha ignorância com relação a essas linguagens[4]), em meio às quais é preciso discernir pesquisas legítimas dos charlatanismos e embustes, o desafiador e o “novo” do que já nasce velho, e pairando sobre tudo, o monstro da “curadoria”, da obra domesticada, administrada e reificada[5], se presta maravilhosamente a uma reflexão desse gênero: “O que hoje nos aflige não é a forma tentacular do mercado, mas a transformação do artista numa peça substituível de um jogo irrisório”, lemos no discurso (não direto, e sim “reconstruído”, e por isso possivelmente enganoso, da senhora Pavlov)[6]. Pena que Erber—que ao longo do texto nos fornece vários relances de inspiração[7]—incida num traço mistificador, ao distribuir pelo seu texto, procurando talvez o famigerado “diferencial”, fotografias que a ele nada acrescentam, a meu ver.
Esquilos de Pavlov nos apresenta então o artista como o “herói do nosso tempo”. E que herói irrisório ele acaba sendo! Na multiplicação de referências a obras de diversos campos (literatura, cinema, fotografia, artes visuais), a “projetos” criativos que pululam e pipocam, o romance leva o leitor a se perguntar se não se trata de um nicho tão encastelado, esgotado em seu auto-fechamento e linguagem cifrada, e portanto incapaz da energia e da vontade para a emancipação da sociedade humana (ainda o grande objetivo “utópico” ou não?[8]) quanto o do Congresso, da Pós-Graduação ou da Academia (“Tinha que acabar, já estava acabando, já tinha quase acabado, mas por algum motivo continuava”). Entretanto, a maneira vigorosa com que a autora carioca o evoca pode ser melhor descrito por uma personagem do próprio livro, que classifica as formas de ficção possíveis: uma delas, a “autoindulgente porém com brio”.
E sempre haverá o gatinho Li Po…
TRECHOS SELECIONADOS
I
“Ciprian Momolescu, sua vida está ficando chata, estamos presos dentro de um elevador com toda a sua família, diz a pessoa que me interpelava trinta páginas atrás. Diz também que a história pode e deveria começar agora, o que interessa acontece deste ponto em diante. Eu digo que há refrãos simplórios e fáceis de cantar que no entanto não são fáceis de entender. Há momentos na vida de qualquer pessoa que parecem tão iguais aos outros, tão sem interesse, tão banais, e no entanto aí também pode estar acontecendo algum fenômeno irreversível…”
II
“Aceitar a proposta da Senhora Pavlov significava bem mais do que aceitar a proposta da Senhora Pavlov e não sabíamos, em termos concretos, o que essa diferença significaria. De certo modo nada mudava: comer, cagar, dormir, acordar, esquecer, cortar as unhas, os cabelos, engolir, deglutir, digerir, cair da cama, cair do cavalo, cair do telhado. O problema não era o que faríamos ou deixaríamos de fazer, mas se nos importaria muito ou pouco passar da arrogância de um ´sou artista, logo existo´ à falácia ´existo, sou e nas horas de afluência enquanto todos se preocupam com presentes de Natal eu faço minha arte, mas não é nada, não é nada, são só umas coisinhas que me distraem do peso de viver e da arrogância de pensar´. E eis que retornamos ao ponto de partida. Se romper o cerco do sistema de arte significava transformar nossos gestos numa espécie de mistério petulante, numa atividade não assumida como diferente das demais mas que continuava a diferenciar o criador do açougueiro, realmente era preferível deixar as coisas como estavam”.
[1] “…que eu fosse romeno ou peruano, no final das contas, não fazia tanta diferença. Com os velhos pedagogos que não ensinam às crianças do deserto a palavra neve antes da palavra suor, eu estava impedido de ser qualquer coisa antes de ser quem eu era”.
[2] Mas a leitura de Esquilos de Pavlov pode ressignificar o conto, melhorando a percepção a seu respeito (nunca podemos fechar totalmente a conta a respeito de um texto). Um trecho: “…por um segundo tudo fazia tão pouco sentido que me senti aliviado. Nem a arte, nem as viagens, nem as pitonisas de Delfos, nem a constância do luto, nem a visão escandalosa, nem as manifestações divinas, nem as riquezas móveis e os metais pesados, nem o gênio verdadeiro, nem o cálculo de prazer, nem a criança mortal chupando pirulito ao meu lado, nada disso formava uma rede segura de significação. Nada garantia que a vida fosse mais do que uma coleção de homens tortos e romances copiados…”
[3] “Assim foi que começou a me seguir, por gostar de se deixar desviar aleatoriamente, na ilusão de que enganava a implacável mão do destino com um punhado de acaso jogado ao vento”. Em outro trecho: “… e de repente me vi pensando na vida dos bichos que nascem com um mapa de viagem gravado em algum lugar do sistema nervoso central”.
[4] E o próprio relato apresenta o sub-tom de ironia que inevitavelmente perpassa esse tipo de arte. Por exemplo, ao caracterizar a vida-performance de Miki Tawada: “uma garota japonesa que naquela noite usava um capacete e roupas em tons de cinza, do cinéreo ao cinza de neve suja, criando um degradê muito bem calculado. Seu nome era Miki Tawada e não fazia nada, apostava na performance e na transformação da ação em espera, da presença em sombra, do rastro em
espectro. Miki ficava parada com seus caderninhos e seus sanduíches de frango, esperando, esperando. O resultado era difícil de definir, algo entre um teatro de afecções e o fetiche da inação (…) quem a via sentada nas areias da praia de Amager numa tarde cinzenta imaginava que fosse apenas uma pessoa entristecida, mas era uma mulher contemporânea em pleno exercício da sua arte…”
[5] Que bem poderia fazer parte do “país de sincronias infernais”, presente em pesadelos de Ciprian: “Eu também tive pesadelos com um país de sincronias infernais em que todos os sapatos faziam o mesmo estalo ao tocarem o chão.”
Já num trecho da página seguinte: “O mais difícil é viver a vida no atacado e no varejo e saber que tudo não passa de falta de sincronia, ovulação e violência consentida”. Como se vê, o relato não se amedronta diante da tendência sentenciosa à Cioran.
[6] “Artistas profissionais, egressos de institutos e escolas de arte, passam pouco tempo dentro de ateliês, vivem uma vida nômade de aeroporto em aeroporto, recuperando-se de jet legs causados por seu infinito trânsito entre residências artísticas, bienais, feiras de arte, apresentações, palestras, vernissages e outros eventos sociais. A proliferação de residências nas cidades do antigo bloco comunista e em ambientes não artísticos—aeroportos, banheiros públicos, discotecas, escolas, hospitais, bibliotecas, fábricas de xampu, afinal todos querem ter o seu artista a tiracolo—não são uma boa-nova, mas sintomas da catástrofe que obriga todos a se subsumir ao coquetel de atrações, com emoções garantidas para fazer com que os artistas se desloquem de suas casas em direção a novos velhos lugares.”
[7] Por exemplo, um “cinéfilo de livros” (“…lá, na biblioteca, era mais fácil encontrar personagens que eu gostaria de ter sido ou encontrado. Pensamentos que gostaria de ter pensado ou escrito. E todo o nosso desenredo. O jovem que só era feliz na biblioteca foi uma espécie de cinéfilo de livros”); a “matemática rápida do fim do regime” (“Na matemática rápida do fim do regime, ganhava quem soubesse embalar e vender sua condição pós-comunista…”); um genial “clima semiaceitável”, um não menos ótimo “momento fandango” (“…versos de Gustav Munch-Petersen que para Pernille resumiam a vida da avó desde o nascimento até o que ela chamava momento fandango, o momento em que, numa vida, todas as possibilidades de felicidade e de infelicidade se cruzavam”); tem a moça em que “tudo pende para o lado esquerdo” (“… tinha o braço e a perna esquerdos alguns centímetros mais longos que o braço e a perna do outro lado. Antes fosse uma reles metáfora morta, mas era um problema que se impunha aos prazeres do corpo movente”)…
[8] “Daí-me outra vida e pedirei de novo outra forma diferente”.
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