Berlim ocupada
Andreas-Friedrich, Ruth
Diário de Berlim ocupada, 1945-1948 / Ruth
Andreas-Friedrich ; tradução Joubert de
Oliveira Brízida. – São Paulo : Globo, 2012. – (Coleção Globo livros história)
Berlim, Domingo, 20 de abril de 1945
“Eles ainda estão atirando,” diz Frank no escuro. Posso ouvi-lo procurando fósforos. Uma pequena chama brilha, depois esmorece. Fumaça de querosene empesta o porão.
“O que está acontecendo?”
“Estão disparando,” repete Frank.
“Quem?”
Tento entender alguma coisa. Guerra? Não. Quando fomos para a cama, a guerra tinha terminado. Ontem foi a batalha final por Berlim. A linha de frente foi bem na nossa porta. Estávamos sentados no porão. Jo Thäler, Frank, Andrik e Fabian. Heike Burghoff, Dagmar e eu. Dois ilegais, dois semilegais e três quase legais. A turma toda.
Aviões de mergulho atacando, lança-chamas, granadas explodindo. De entremeio, “lobisomens.” Seus disparos soando como latidos de cães contra os russos que avançam. De repente, um estouro, depois gritos. “Eles estão chegando,” berra alguém. Estranhos tentam forçar caminho pelo vestíbulo. Andrik corre na direção deles. “Drusya,” o ouvimos exclamar. “Drusya, tovarich!… amigos!” Pronto, fomos vencidos. Agora é comer kaska, o mingau de aveia russo, com soldados russos. E oficiais russos estão alojados nos cômodos de cima…
“Frank,” sussurro, “quem está atirando?”
“Acorde os outros,” diz ele em vez de responder.
Levanto do colchão. A meu lado está Jo Thäler com o cobertor cobrindo a cabeça. A dois passos de distância, Dagmar, respirando fundo como uma criança adormecida. “Acordem!” Avanço aos tropeços para o vestíbulo. “Heike! Fabian!” A meus pés, duas sombras rolam para fora dos colchões dobráveis. “Mas onde está Andrik?”
Seu lugar em frente à porta do porão está vazio. O travesseiro, frio. “Andrik,” grito. Ninguém responde.
Frank acendeu nossa lamparina de abrigo. Improvisada numa jarra de vidro. Uma fuligem avermelhada começa a sair do pavio feito com lã. Nós seis ficamos de pé em torno da pequena mesa onde, por três anos, tem estado nossa parafernália de abrigo. Ainda tontos de sono, ficamos olhando para as máscaras contra gases, as ataduras para queimaduras, os biscoitos, a garrafa com água e uma pilha de óculos para poeira.
“Que está acontecendo?”
“Você não ouve?” – indaga Frank. “Lobisomens!”
A fisionomia infantil de Heike parece apavorada.
Frank meneia a cabeça. “Tudo indica que eles ainda não entregaram os pontos. Como estarão as coisas lá em cima?”
Sobre nossa cabeça, o pisar duro dos soldados. Ouvimos um berro. Alguma coisa como “Rassypatoya.” Soa como um comando. Mais um tiro é disparado.
“Droga!” – resmunga Frank.
De súbito, Andrik reaparece. “Eles precisaram de mim como intérprete,” diz. “Estavam amistosos, mas…”
Tack, tack… tack, tack, tack é o barulho contra a parede.
“E chamam isso de paz,” – suspira Fabian, enquanto enrola uns cigarros.
“Que horas são?”
“Seis da manhã,” diz Jo Thäler.
Dagmar mexe nos nossos suprimentos. “Sugiro comermos alguma coisa.” Empurrando de lado ataduras e óculos, ela põe um pedaço de pão na mesa.
De garrafas, xícaras e potes, coletamos a pouca água que nos restou. Heike espalha geleia em pedaços de pão. “Um gole d’água para cada pedaço de pão,” decide ela. Comemos em silêncio. O copo com água passa de mão em mão.