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Depoimento da jornalista Luciana Barreto na...

29 de Junho de 2015, 18:29 , por metalogis - | No one following this article yet.
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Depoimento da jornalista Luciana Barreto na CDH do Senado Federal

[1]

8.6.2015

Eu agradeço muito a oportunidade de estar nesta Casa. Jamais imaginei que estaria aqui um dia, assim como jamais imaginei que me tornaria âncora de um telejornal, como sou hoje. Da mesma forma, na primeira infância, jamais imaginei que concretizaria o sonho de ingressar em uma universidade.

Durante muitos anos eu me perguntei quem teria roubado essa minha imaginação. Hoje, senhores, eu sei que foi o Estado brasileiro que tirou de mim essas possibilidades. Trato aqui possibilidades como os caminhos que oferecemos aos nossos cidadãos.

Recentemente, em relação à crise de imigrantes africanos na Europa, especialistas afirmaram que as dificuldades econômicas do continente europeu minaram os investimentos sociais e o apoio aos países da África. O resultado começou a aparecer, a verdade é esta: milhares de pessoas fugindo da fome na África. Aqui no Brasil há um dito popular para essa decisão da Europa, que é: farinha pouca, meu pirão primeiro.

Nós, crianças nascidas nas décadas de 70 e 80, sabemos bem o que significa isso. Crescemos em meio a uma forte crise econômica. Eu me lembro muito bem da infância sem projetos sociais nas décadas de 80 e 90. As ajudas se resumiam ao combate à fome.

E peço licença agora para usar o meu exemplo pessoal.

Com escolas públicas precárias, meus pais acharam que a solução seria conseguir uma bolsa parcial de estudos em uma escola particular. Ocorre que eles nunca conseguiam pagar a diferença da bolsa parcial, a verdade é essa, e acabávamos ficando de fora no final. Era assim na década de 80. Não sei se vocês se lembram bem, mas na década de 80, se você não conseguia pagar a sua parte, você era humilhado, ficava de fora esperando para entrar na escola porque era um não pagador. Ocorre que nunca conseguíamos pagar essa diferença, assim como não havia dinheiro para o lanche, para os livros e até para o uniforme. Eu sempre herdava uniforme usado do meu irmão, sempre furado, malcheiroso.

O fato é que eu gostaria que o meu exemplo fosse isolado, mas não era. Eu via no meu bairro meus vizinhos tentando sobreviver. Ao mesmo tempo que as imagens da tevê mostravam o Brasil faminto da década de 80. E esse Brasil se parecia comigo e com os meus. Era um Brasil predominantemente de pele escura.

Do outro lado, ainda com a permissão do Estado, nós víamos um Brasil rico. Nossa teledramaturgia ostentava um Brasil caucasiano, com casas enormes e lindos jardins, um café da manhã farto. Nesse Brasil, existiam livros, aliás, muitos livros – aquelas salas ostentavam muitos livros –, havia helicópteros, barcos, muitas viagens.

Quando criança, eu ficava olhando para a tela e tentando me enxergar no meio de tudo isso. Eu buscava a minha pele e a minha imaginação, que havia sido roubada. Mas o que eles me ofereciam, e muito raramente, eram os lugares certos: a cozinha, a limpeza, atividades que eu já via minha avó negra desenvolver. A televisão, com a permissão do Estado, roubava a minha imaginação. Aliás, para onde quer que eu olhasse, esse era o Brasil que aparecia: na tevê, nos livros, nas histórias.

Percebam que, como diz o Prof. Kabengele Munanga: “A memória que me inculcam não é a do meu povo; a história que me ensinam é outra; os ancestrais africanos são substituídos por gauleses e francos de cabelos loiros e olhos azuis”.

Eu não tenho dúvidas, senhores e senhoras, de que existia até então um sistema perverso, que resultava na inferiorização, na desumanização do negro. E os resultados nós estamos vendo agora. Diferente do passado, o Brasil da última década avançou para a população mais pobre, principalmente para os negros.

Isso é evidente. Nós conquistamos direitos com políticas sociais; mais crianças deixaram de abandonar a escola; o problema da fome diminuiu, e ninguém precisa mais dividir uniformes, como eu tinha de fazer com o meu irmão. Ninguém precisa mais ter carência de livros, porque os livros não faltam. Muito pelo contrário, luta-se para que tenham mais qualidade. Está aí a Lei nº 10.639.

O que dizer do ingresso de negros nas universidades?

O ensino superior ficou mais colorido. No mercado de trabalho, há o que se fazer. Aliás, há um longo caminho pela frente ainda em todas as áreas, mas o mercado de trabalho, também mais democrático. Se bem que, friso aqui, acho ainda é um problema muito grave o mercado de trabalho, que não avançou como a educação.

Lanço aqui hoje uma preocupação.

Faremos diferente de outros países? Faremos diferente da Europa? Diante de uma retração da economia, novamente os mais pobres serão penalizados? Senhores, será assim “farinha pouca, meu pirão primeiro”?

Eu não poderia deixar de registrar aqui o quanto o assunto é urgente. Junto com outros amigos, eu venho dedicando parte do meu tempo e da minha vida à abordagem da questão racial dentro dos meios de comunicação. Tenho de ressaltar o grande trabalho da TV pública, que vem fazendo um grande trabalho nesse sentido. Eu tenho lá liberdade para trabalhar esse tema. E o fato, posso garantir, é que os meus amigos não encontraram e não encontram a mesma boa vontade em alguns veículos de comunicação.

Nos últimos anos, a EBC vem produzindo ou exibindo conteúdo sempre com a preocupação de mostrar um Brasil mais diverso, mais colorido, um Brasil que respeita a etnia do brasileiro, as etnias. No jornalismo, nós denunciamos, a todo momento, os problemas ligados à questão racial, a casos de racismo, presos por engano, desigualdade no mercado de trabalho e, o mais grave, agora, o assassinato de jovens negros; o racismo institucional, e o que mais houver por aí, pois tem muita coisa.

É evidente que recebemos muito apoio, assim como eu pessoalmente recebo centenas de mensagens, muitas com denúncias de racismo. É a do professor universitário que sempre é obrigado a dizer que ele não é o faxineiro, quase todos os dias; há o aluno que teve de abandonar a sala de aula, abandonou o futuro e abandonou a vida porque não aguentou suportar o racismo; há os universitários que ingressam na universidade também e que não conseguem sobreviver lá, seja pelo racismo, seja pela desigualdade econômica, seja pela dificuldade de se manter na universidade.

E, mesmo com todas essas evidências, é necessário lidar com palavras ingratas nessa luta. Ouvimos quase todo dia: vitimismo, meritocracia, esquecer o passado. Frequentemente, recebo mensagens deste tipo: “Mas isso é vitimismo”; “Nós vivemos num país democrático. É só você conseguir a famosa meritocracia.” Ou então: “Vocês precisam esquecer o passado e olhar para frente”.

Cabe que o passado está bem presente.

E o que se quer dizer é que existe uma paz artificial entre nós.

Um dia desses, eu li uma frase, que se encaixa bem aqui, que é: “Parem de pedir paz, quando, na verdade, o que querem é pedir silêncio.” E a verdade é esta: o que querem da gente é pedir silêncio. (Palmas.)

Eu recebo muitas mensagens hostis. Não é fácil mexer com privilégios neste País, meus senhores e minhas senhoras.

Lembro aqui também uma fala do Luther King: “O opressor nunca liberta voluntariamente o oprimido”. Nunca. É preciso trabalhar muito para isso. A liberdade nunca é dada a ninguém. As classes privilegiadas jamais abrem mão do privilégio – jamais – sem que haja luta. E a essa luta existe uma forte resistência.

Para finalizar, eu gostaria de dizer que, recentemente, eu participei de um projeto chamado DNA África, que realizou o exame de DNA de alguns brasileiros. E não há dúvidas da minha ascendência negra – vocês podem ver – pelo lado paterno; mas qual não foi minha surpresa ao descobrir que eu possuo DNA 100% indígena do lado materno.

Portanto, eu guardo em mim dois corações – desculpem-me a emoção –, de duas etnias que lutam há séculos para sobreviverem à lógica do Brasil opressor.

[1]   Texto extraído da ata da reunião da CDH:“Os impactos das medidas econômicas sobre a população negra” [8.6.2015] disponível em http://legis.senado.leg.br/comissoes/reuniao?14&reuniao=3409&codcol=834 [http://goo.gl/xwjlki], acessado em 28.6.2015. [http://goo.gl/ucfCDw, ata em RTF, 857 KB]. Vídeo disponível em https://goo.gl/H5WoQj


Fonte: http://metalogis.tumblr.com/post/122793670056