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Narrar, denunciar sempre a história da ditadura

14 de Outubro de 2024, 9:06 , por Correio do Brasil - | No one following this article yet.
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“Os escritores, jornalistas, historiadores e cineastas temos uma tarefa de Sísifo: recomeçar a contar a história da ditadura todos os dias.”

Por Urariano Mota – de São Paulo

Os mais jovens, a maioria da população, desconhecem os crimes da ditadura brasileira.

Os escritores, jornalistas, historiadores e cineastas temos uma tarefa de Sísifo: recomeçar a contar a história da ditadura todos os dias.

Os mais jovens, a maioria da população, desconhecem os crimes da ditadura brasileira

Como tento fazer a seguir, numa das muitas páginas em que a denúncia dos crimes, a luta e o amor avultam no romance “A mais longa duração da juventude”.

“Então a advogada Gardênia anotará da entrevista com Vargas: ‘Ele era um tipo romântico, ingênuo’. O que isso queria dizer? Ali na sala está corporificado para ela: de braços abertos, Vargas protege a companheira e a filha. No diário da advogada: ‘eu conversei com ele que fugisse, ao que ele se negou dizendo que isso não faria, porque zelava pela segurança da filha e da esposa’. E Vargas, na defesa sem armas, na imaginada que pode dar às pessoas do seu extremado carinho, registra o diário da advogada: ‘Eu pedi que ele deixasse a criancinha sob meus cuidados. Ele me falou que não ia levar Nelinha para uma aventura, porque ela era uma pessoa frágil, e seria também assassinada. Aí era pior, porque a menina ficaria órfã, sem ninguém’.

Nesse ponto flagramos a pessoa, a coragem e terror de Vargas: a consciência de que será morto. Mas não só morto a tiro, de bala. Morto depois de intensa tortura e sofrimento. Aqui entra o ponto nevrálgico, ele sabe que não demora ser brutalizado, se continuar no Recife. Mas não deseja que a sua mulher o acompanhe, na hipótese de fuga ou adiamento da execução. Se ele é o condenado, por que atrair, dividir o inferno com quem ama?

– Fuja, fuja, Vargas. O momento de escapar é agora – fala a advogada.

Mas ele, o homem ‘romântico ingênuo’, não quer fugir. À distância podemos ver a lógica fria do heroísmo em lugar do romântico, penso. A advogada Gardênia lhe atribui a qualidade de romântico porque ele defende de modo absoluto a integridade física da companheira. Um caso de paixão de enamorado, talvez. E acrescenta o ingênuo, porque ele se nega a receber o oferecimento prático do mundo real, a saber: fugir, salvar-se, para depois em segurança avaliar o estrago que deixa. Mas não estamos preparados para ver a grandeza no instante em que ocorre.

Ou melhor, só vemos o grande quando ele nos impacta de modo bárbaro. Por exemplo, Gregório Bezerra sendo espancado a golpes de ferro na cabeça pelas ruas do Recife. Na sua altiva resistência vemos. Mas não enxergamos que o heroísmo vem antes da tragédia. Na decisão que antecede o desfecho não vemos a grandeza. O próprio Vargas, naquela hora em que abre os braços no apartamento de Gardênia, nada vê de excepcional. Ele apenas age para defender pessoas do seu amor, age apenas por justiça. Não levará para a desgraça a companheira querida e sua Krupskaia. Não permitirá que corram riscos maiores que viver com um ‘terrorista’. E ameniza a própria bravura com uma fórmula prosaica:

– Talvez eles nem me peguem agora. É tempo de eu vender livros pedidos pelas escolas. Com o dinheiro da comissão, eu fujo. Entendeu, doutora? Mas fique com os meus documentos. Se a situação apertar, já estão com a senhora.

Aperta a mão da advogada e sai. Desce pelas escadas para melhor refletir, como se no tempo entre o quarto andar e o térreo houvesse um acréscimo de vida. E vem parando nos trechos intermediários, a retardar a sua hora, até alcançar a portaria e sair para a Rua Sete de Setembro. Agora, é o mundo real sem mais discussão filosófica. E o real são ele, Daniel e Fleury.

Horror das mortes em 1973

O horror das mortes em 1973 é o retrato do seu último instante físico. Não é justo resumir uma vida humana assim. Sobre um animal sentimos a brutalidade: ‘O novilho continuava lutando. A cabeça ficou pelada e vermelha, com veias brancas, e se manteve na posição em que os açougueiros a deixaram. A pele pendia dos dois lados. O novilho não parou de lutar. Depois, outro açougueiro o agarrou por uma pata, quebrou-a e cortou-a. A barriga e as pernas restantes ainda estremeciam. Cortaram também as patas restantes e as jogaram onde jogavam as patas dos novilhos de um dos proprietários. Depois arrastaram a rês para o guincho e lá a crucificaram; já não havia movimento’. Se essa infâmia narrada magistral por Tolstói nos fere quando pensamos no gado, o que diremos de pessoas no matadouro?

Penso em Vargas e seu sacrifício, o heroísmo que ninguém notou. Morto como mais um boi, gado abatido qualquer. Se não lhe comemos a carne, comemos a sua grandeza, porque o defecamos em nova brutalidade. Onde está Vargas, onde buscar Vargas? Ele está na sala da advogada Gardênia, quando ela lhe propõe a fuga, que corra e suma antes de ser morto, e ele se nega porque Nelinha era muito frágil? Ele está no ônibus, quando luta febril ao vislumbrar a sua última hora, da qual possui a certeza, e para ela caminha ainda assim? ‘Nelinha está salva’, ele se fala. ‘Ela continuará a viver. Ela e a minha filhinha continuam. Venham, malditos’. E nisso, ao expressar também a crueza do seu isolamento, pois não estava ‘organizado’, sem vínculo direto com organização clandestina, onde buscar o terrorista Vargas? Desta maneira ele ficou adiante, conforme o viu a advogada Gardênia:

‘Vargas, que eu conhecia muito, estava também numa mesa, estava com uma zorba azul-clara, e tinha uma perfuração de bala na testa e outra no peito. E uma mancha profunda no pescoço, de um lado só, como se fosse corda, e com os olhos abertos e a língua fora da boca’. Vargas teria sido puxado por corda para o matadouro? Aos bois partem o rabo, rompem a cartilagem, para assim ele arremeter para o lugar onde o sangram. A homens arrastam? Nos laudos da ditadura, não há uma narração da dor. Mentirosos, chegam a ocultar a causa mortis, ao esconder lesões, ao eufemizar a barbárie. Tudo que falam é uma adaptação do cadáver à fraude da repressão política. É nessas circunstâncias que cresce o valor do depoimento da advogada, que testemunhou e preencheu as lacunas, o vácuo dos laudos tanatoscópicos:

‘Soledad estava com os olhos muito abertos, com expressão muito grande de terror. A boca estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão que ela foi morta e ficou algum tempo deitada e a trouxeram, e o sangue quando coagulou ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. E o feto estava lá nos pés dela, não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror’ ”.

 

Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil


Fonte: https://www.correiodobrasil.com.br/narrar-denunciar-sempre-historia-ditadura/

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