"Mesmo quem não entende da dogmática econômica, não é possível deixar-se de fazer alguns reparos ao diagnóstico feito por empresários e às suas propostas. As nossas mais do que conhecidas carências em matéria de garantias devidas aos direitos humanos fundamentais sociais, como educação, saúde, segurança, moradia, alimentação e outros, a urgência reivindicada para reformas como a política, a tributária (a agrária não?) todas/os as/os brasileiras/os conhecem e lamentam." , escreve Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul. É mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
A “nata do capitalismo”, assim denominada pela revista Exame número 1014 deste outubro, editada coincidentemente (!?), em pleno período eleitoral, na qual foram entrevistados empresários de grandes empresas do Brasil, autoriza até a um/a leitor/a menos atento, só baseado na opinião deles, retirar três conclusões principais.
A primeira, de o Estado brasileiro estar vivendo um momento muito ruim, não sendo de se descartar a possibilidade até de termos de nos preparar para o pior, se não houver “mudanças” profundas. Observe-se já nessa primeira conclusão, com que freqüência essa palavra apareceu na propaganda eleitoral das candidaturas de oposição ao governo.
A segunda, de os empresários entrevistados estarem habilitados a fornecer as melhores receitas para se aviarem os únicos remédios capazes de salvar o país.
A terceira, de “O Brasil que queremos”, como consta na capa da revista, exigir um governo moldado à feição dos interesses e das exigências urgentes das empresas privadas sob pena de, se isso não acontecer, o país correr um risco bem grande, de modo particular, se reeleger a atual presidente...
É claro que essa terceira dedução não foi expressa pelos empresários, mas é preciso muita ingenuidade para desconsiderar-se o fato de a entrevista ter sido concedida em meio às eleições e com diagnósticos e prognósticos tão pouco velados de ataque ao que o governo da República está fazendo.
Muito resumidamente, os males da direção político-econômica do país exigiriam a remoção urgente de quatro gargalos principais, segundo os entrevistados:
1º “O Brasil parou de crescer e para continuar a reduzir a pobreza precisa retomar o fôlego";
2º “A rentabilidade dos negócios não estimula os investimentos.”;
3º “Não podemos mais contar com a abundância de dinheiro estrangeiro da última década”;
4º “A esmagadora maioria do eleitorado deseja mudanças nas ações do próximo governo”.
Mesmo quem não entende da dogmática econômica, não é possível deixar-se de fazer alguns reparos a tal diagnóstico e às propostas empresariais que lhe seguiram na mesma publicação. As nossas mais do que conhecidas carências em matéria de garantias devidas aos direitos humanos fundamentais sociais, como educação, saúde, segurança, moradia, alimentação e outros, a urgência reivindicada para reformas como a política, a tributária (a agrária não?) todas/os as/os brasileiras/os conhecem e lamentam.
Desconsiderar-se, todavia, o fato de os índices estatisticos das visíveis melhorias da condição social de milhões de brasileiras/os, na maioria desses direitos sociais, terem sido conquistadas por políticas públicas do Estado, das quais ele não só foi o protagonista como até enfrentou muita crítica de empresários abrigadas por aquela gigantesca parte da midiocracia que eles controlam, constitui uma distorção histórica que beira ao despropósito.
Assim, ainda que todos os efeitos dos males alegadamente presentes vitimando o Brasil, fossem da gravidade denunciada pelos entrevistados da Exame, esses não têm nada a ver com isso? em nenhuma das causas desses maus efeitos, não houve qualquer responsabilidade do empresariado capitalista brasileiro? Lembre-se, por exemplo, o problema da corrupção de políticos e de funcionários públicos. Sabendo-se que gente pobre não tem dinheiro para corromper ninguém, a corrupção que vicia o exercício da melhor política é um fenômeno de geração espontânea, não pressupõe a existência de corruptores que têm dinheiro para pagar essa mazela?
O alarme dos entrevistados com o fato de seus lucros estarem diminuindo (?) não será até muito bom para o Brasil, considerando-se a gravidade da denúncia de Thomas Piketty de que a tendência comprovada desses lucros é concentrar cada vez mais a riqueza e aumentar a desigualdade social, com toda a injustiça que ela provoca? As evidências de que o tão reclamado e perseguido crescimento econômico não garante automaticamente diminuição da pobreza também não estão exigindo “mudanças” no modelo que o capitalismo brasileiro acha o melhor? Aí não haverá, finalmente, uma derradeira oportunidade de o capital conseguir provar que ele respeita a tal de função social, quatro vezes imposta pela Constituição Federal e historicamente desrespeitada por ele?
Afinal, foi o Estado ou foram os empresários rurais, representados pela poderosa bancada ruralista no Congresso Nacional, que atrasaram mais de uma década a aprovação da emenda constitucional que pune quem explora o trabalho escravo? Essa “esmagadora maioria” do eleitorado brasileiro que estaria exigindo mudanças no governo do país, segundo os entrevistados da Exame, considerados agora os resultados da votação de primeiro turno, constitui outra das muitas falhas de pesquisa, ou expressou simplesmente um desejo incontido deles, carente de apoio e legitimação ético-política?
Ainda que o Estado, portanto, prejudique o capital, como afirmam os entrevistados, a recíproca é muito mais verdadeira do ponto de vista social, por mais que o seu poder enterre material, cultural, ideológica e socialmente essa verdade.
Por sinal, como uma antecipada contestação ao diagnóstico empresarial do país feito pela Exame, a Caros Amigos nº 210 de setembro passado, mostra como as receitas dos empresários entrevistados ignoram a desumanidade com que parte significativa do capital nacional trata o trabalho, sem cuja exploração ele nem sobreviveria.
Sob o título de “Metas enlouquecem trabalhador”, a revista exibiu dados do INSS relacionados com a crescente e muito preocupante necessidade de conceder benefícios a trabalhadoras/es, estressadas/os, deprimidas/os, com diferentes tipos de doenças mentais, por força de um modelo de trabalho imposto por empresas do país com o objetivo de garantir o alcance de “metas” de produção, de tal forma exigentes que destroem a vida das pessoas:
No ano de 2009, “... o pesquisador Marcelo Augusto Finazzi Filho publicou um estudo de pós-graduação em administração da Universidade de Brasilia (UnB) sobre a saúde mental de bancários mostrando que, entre 1993 e 2005, pelo menos um bancário cometeu suicídio a cada 20 dias.”
A médica do trabalho Margarida Barreto criticando o tal modelo de metas: “Jornada flexível, trabalho em casa, participação nos lucros da empresa, relação de colaboração e incentivo à postura pró-ativa. Margarida diz que tudo isso seria mais do que saudável se fossem mantidos os limites humanos. À pressão acentuada e generalizada por aumentar os ganhos, natural na ótica financeira dos últimos cinco anos, somou-se outra, moral, insuportável segundo a médica. Qualquer empresa hoje vive a quantofrenia, a doença da medida. Ao mesmo tempo a que exige produção cada vez maior e mais barata, defende a qualidade do produto. Uma falácia”. (...) “As pessoas se sentem mal porque alguém cumpriu aquela meta não humana. Acentua a autoculpa. O processo aparece como ação da chefia imediata, mas, na verdade, esse chefe também está pressionado. É uma organização que está por trás.”
Se um dos objetivos dos empresários entrevistados pela Exame, é mesmo o de continuar-se reduzindo a pobreza, oBrasil que queremos não parece coincidir muito com aquele desenhado lá.
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