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Política, Cidadania e Dignidade

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3 de Abril de 2011, 21:00 , por Desconhecido - | No one following this article yet.

"Policiais virtuais" irão ser investigados por apologia a morte de criminosos e incitação a violência

9 de Abril de 2015, 8:52, por Desconhecido

Perfil na web de supostas policiais faz apologia a morte de criminosos



OAB oficiará polícias do DF para apurar se há envolvimento de membros.
Conta também xinga de 'marmitinha de bandido' mulheres que criticam PMs.

Raquel Morais
Do G1 DF
Postagens em rede social organziada por policiais femininas que faz apologia à morte de criminosos (Foto: Facebook/Reprodução)Postagens em rede social organizada por policiais femininas que faz apologia à morte de criminosos (Foto: Instagram/Reprodução)
A Ordem dos Advogados do Brasil vai oficiar as polícias do Distrito Federal para apurar o possível envolvimento de membros das corporações com postagens que fazem apologia à morte de criminosos e xingam quem critica servidores da segurança pública. As mensagens foram enviadas por meio do perfil "Polícia Feminina" em uma rede social. De setembro do ano passado a esta quinta-feira (19), a conta fez 192 publicações e angariou 5.848 seguidores.
O fato de o perfil ser particular não torna o fato menos gravoso, pois ele, ao que parece, propõe-se a trazer a público condutas violentas de policiais sob uma capa de deboche, o que coloca as respectivas corporações na berlinda"
Indira Quaresma,
vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB do DF
Entre as imagens postadas estão a de uma policial militar usando óculos escuros e apontando a arma, com a legenda "Câmera para bandido. Olha e espera o flash", e a de uma civil de costas, usando colete, acompanhada do texto "Não importa como e aonde. Iremos ao combate, iremos te achar. Por que para nós bandido bom é aquele a sete palmos da terra (sic)". Outras postagens criticam mulheres que postaram fotos com ofensas a PMs, chamando-as de "marmitinha de bandido", "verme" e "aborto malsucedido".
G1 procurou a administração da página, que disse ainda não ter um posicionamento sobre a situação. Depois da publicação, a responsável disse que vai retirar as imagens que disseminam a violência contra criminosos.
"O intuito da página é de mostrar o dia a dia das mulheres no trabalho militar. O intuito da página nunca foi a apologia de morte de bandidos. Se postei, foi por motivo dos usuários pedirem para publicar, para as pessoas saberem que a maioria das pessoas tarjam a corporação como corrupta e suja. Ninguém sabe o que se passa na vida dessas pessoas, as condições de trabalho e o que eles passam para defender a nossa sociedade. Gostaria de ter reconhecimento por estar mostrando o trabalho dessas milhares de mulheres que largam tudo em prol da paz e de uma sociedade melhor. Gostaria de pedir publicamente desculpas a todas as corporações se estou sujando o nome das mesmas", afirmou.
As fotos, segundo as publicações, pertenceriam a policiais de todas as áreas – Civil, Militar, Federal e Rodoviária Federal – e de diversos estados. Em uma montagem divulgada há cinco meses, a responsável por administrar o perfil reuniu os brasões das PMs do DF, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Bahia, Amazonas, Pernambuco, Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Santa Catarina, Rondônia e Espírito Santo.
Garota faz gesto obsceno diante de policial dentro de ônibus (Foto: Facebook/Reprodução)
Garota faz gesto obsceno diante de policial dentro
de ônibus (Foto: Instagram/Reprodução)
Por e-mail, a Polícia Civil do DF disse não ter reconhecido a participação de mulheres da corporação nos posts e disse que a formação do quadro "é pautada no respeito e defesa aos direitos individuais e coletivos". A PM do DF afirmou que a conta "claramente não pertence a nenhuma instituição policial militar" e que não pode responder por ofensas feitas em um perfil particular. A Polícia Rodoviária também declarou que o perfil não é institucional. "A Corregedoria da PRF se pauta na legalidade e não corrobora com qualquer atitude de seus agentes que venha a desrespeitar a legislação vigente." O G1 também procurou a polícia Federal, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
A vice-presidente da Comissão dos Direitos Humanos da OAB, Indira Quaresma, criticou a existência da conta. "[A prática] Não é tolerável em nenhuma circunstância, mas principalmente quando se trata de agentes de segurança pública. O fato de o perfil ser particular não torna o fato menos gravoso, pois ele, ao que parece, propõe-se a trazer a público condutas violentas de policiais sob uma capa de deboche, o que coloca as respectivas corporações na berlinda."
Segundo a advogada, a ordem vai aguardar a resposta dos comandos das polícias do DF sobre as investigações para adotar outras medidas. Indira disse ainda que não estão descartados cursos de atualização que tratem sobre o respeito a suspeitos de crimes.
O presidente do Sindicato dos Policiais Civis do DF, Rodrigo Franco, afirmou à reportagem que a categoria rejeita a postura disseminada por meio do perfil. "Não coaduno com esse tipo de postura. Os policiais civis de Brasília não coadunam com esse comportamento", declarou. "Não conheço nenhuma policial daqui que tenha a ver com isso."
Imagem e reconhecimento
Especialista em segurança pública, a doutora em ciências sociais Cristina Zackseski analisou algumas publicações a pedido do G1. Entre as situações identificadas pela professora estão a depreciação da imagem da polícia combinada com vulgaridade, a falta de perfil e de compreensão do que é o trabalho policial e o uso dos símbolos das corporações como forma de reforçar o corporativismo.

"O discurso de rigor contra o crime como sendo o que falta para vencer a luta contra o crime foi e é alimentado por muitos anos por uma política criminal autoritária, que não é exclusividade dos períodos autoritários, mas que sobrevive em várias práticas do sistema de controle formal. A pessoa que posta se serve de uma lógica segundo a qual aqueles que se dizem cidadãos de bem vão aplaudir quando alguém é ou promete ser 'enérgico' contra o crime, ainda que essa energia seja criminosa, pois a leitura do senso comum é a de que o crime sempre está mais forte do que 'nós' e que por isso precisa de um enfrentamento violento", afirma.

Brasões de polícias dos estados e do Distrfito Federal com participantes na rede social (Foto: Facebook/Reprodução)Brasões de polícias dos estados e do Distrfito Federal com participantes na rede social (Foto: Instagram/Reprodução)
A vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Indira Quaresma, deu declaração semelhante. Segundo ela, há anos vem se discutindo as razões da violência policial, que geralmente são atribuídas ao treinamento.
"A prioridade da polícia deve ser sempre a preservação da vida, para que o criminoso responda ao devido processo legal. A medida da força da polícia deve ser tão somente a suficiente para cessar a violência que parte de um acusado ou de um criminoso", diz. A ideia segue o que preconiza o artigo 5ª da Constituição Federal, que diz ser assegurado aos presos o respeito a integridade física e moral.
A pessoa que posta se serve de uma lógica segundo a qual aqueles que se dizem cidadãos de bem vão aplaudir quando alguém é ou promete ser 'enérgico' contra o crime, ainda que essa energia seja criminosa, pois a leitura do senso comum é a de que o crime sempre está mais forte que 'nós' e que por isso precisa de um enfrentamento violento"
Cristina Zackseski,
especialista em segurança pública
"De certa forma, a violência que grassa na sociedade e a sensação de impunidade levam as pessoas a apoiarem respostas igualmente violentas, seja por parte da polícia, seja por parte da própria população. Há muita gente que acha que a polícia deve agir com violência, e isto de certa forma dá ousadia para que mais e mais mídias sociais sejam usadas da forma como vimos agora. E isto é um redundante equívoco", completou Indira.
G1 pediu para entrevistar o secretário de Segurança Pública, Arthur Trindade, mas a assessoria da pasta afirmou que não se manifestaria e que a PM tinha autonomia para responder sobre o assunto. O presidente do Sindicato dos Policiais Civis do DF, Rodrigo Franco, diz acreditar ser necessária uma mudança na forma em que se pensa a área.
"[Precisamos de um modelo em] que os policiais se sintam parte e os cidadãos sintam confiança nos órgãos de segurança. O que percebemos é um sistema falido. Não falo dos policiais, falo de uma situação muito maior. Existe uma grande insatisfação da sociedade com a impunidade", afirma. "Às vezes a gente não encontra eco, não encontra um reconhecimento da sociedade por tudo aquilo que nós fazemos. Às vezes pode ser um pouco isso [que motivou as publicações], de decepção com a sociedade por um não reconhecimento, mas isso não justifica."



Em Minas Gerais: E aí, governador Pimentel, é água ou mineroduto?

9 de Fevereiro de 2015, 12:09, por Desconhecido


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E aí Governador, é Água ou Mineroduto?
por Luiz Paulo Guimarães de Siqueira*

29/01/2015

Minas Gerais enfrenta talvez a pior crise hídrica de sua história. Em pleno janeiro, período normalmente chuvoso e com abundância de água, o estado registra que cerca de 140 municípios já adotaram medidas de restrição e limitação no fornecimento de água.
Sem dúvida, esta situação não surge fortuitamente, mas sim, reflexo de uma longa trajetória de ausência de planejamento público por parte do Estado e, também, fruto de gestões marcadas por deixar Minas, literalmente, em choque.
A grave situação de falta d’água está mais intensa na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Se, por um lado, se constitui como a região de maior adensamento populacional, por outro, a RMBH juntamente com o Colar Metropolitano se configuram como a região de maior intensidade das atividades minerárias no estado.
De acordo com o 2º Relatório de Gestão e Situação dos Recursos Hídricos de Minas Gerais, publicado pelo IGAM em janeiro de 2015, a mineração foi o quinto setor que mais obteve outorgas para uso de água em 2013. Mas, somente analisar o número de usos outorgados podem nos levar a uma interpretação equivocada sobre quem são os atores que mais consomem água em MG. Pois não podemos deixar de levar em conta que há uma significativa diferença entre o volume de água outorgado para atender o consumo humano, por exemplo, do que o volume utilizado para atender a exploração mineral.
Neste contexto, chama a atenção a petulância das grandes corporações da mineração de optarem pela utilização de minerodutos para exportar nossos minérios. Para quem não conhece, minerodutos são grandes tubulações que transportam minério diluído em volumosas quantidades de água, formando uma polpa de minério, semelhante à borra de café, sabe?
Como o minério precisa ser diluído e bombeado por água, os minerodutos precisam manter a pressão para conduzir o minério. E é por isso, que para além do alto consumo de água para a formação da polpa do minério, os minerodutos inerentemente causam diversos impactos ambientais. Pois para manter a pressão do bombeamento, os dutos têm de desviar dos morros, percorrendo dessa maneira os vales, que são as regiões onde estão concentrados os cursos d’água, brejos, nascentes, as melhores áreas de plantio e moradia.
Em Minas, há hoje diversos minerodutos de pequeno porte, como o caso do projeto da MMX em São Joaquim de Bicas, que provocou grandes transtornos na região, destruindo nascentes e prejudicando produtores rurais e o abastecimento de água. Mas há, também, minerodutos de grande porte, que levam os minérios da mina até o litoral, onde são exportados através dos portos. No caso dos grandes minerodutos, o estado conta atualmente com 8 projetos, 4 já em operação e mais 4 que pleiteiam as licenças ambientais. Sobre estes, vamos tentar entender como funcionam e o quanto de água estão tirando dos mineiros.
A Vale/Samarco possuem 3 minerodutos ligando a Mina Alegria, em Mariana, até o porto de Ubú, no Espirito Santo. Depois de anos destruindo os mananciais de Mariana e Ouro Preto, essas mineradoras não tiveram alternativa a não ser captar água instalando uma adutora para utilizar 82% do potencial hídrico do Rio Conceição no distrito de Brumal, em Santa Bárbara.
Moradores da região alegam que na época de estiagem o rio termina, literalmente, no ponto de captação para o duto. São utilizados para a funcionamento dos 3 minerodutos cerca de 4.400m³/hora. Não se pode esquecer que em 2010, um dos minerodutos da Samarco/Vale rompeu no município de Espera Feliz, causando um grande desastre ambiental jorrando lamas de minérios, inviabilizando o abastecimento público da cidade e ocasionando a mortandade de toda biodiversidade afetada.
A multinacional Anglo American se orgulha em dizer que é dona do maior mineroduto do mundo. Com cerca de 525 km, o projeto Minas-Rio parte de Conceição do Mato Dentro até o Porto de Açu em São João da Barra (RJ). A mineradora capta 2.500m³/hora da região e desde sua chegada tem causado grandes transtornos e prejuízos às comunidades no entorno. Tem o orgulho de dizer que o processo de licenciamento ambiental do projeto possui 364 condicionantes e que, diga-se de passagem, sem quase nenhum cumprimento.
Ao iniciar a operação do mineroduto em 2014, foram visíveis as consequências no ambiente, com drásticos assoreamentos dos córregos, mortandade de peixes, de gado e a inviabilização do uso social da água na região.
A Ferrous Resources, empresa de capital estritamente estrangeiro, pleiteia a instalação de um mineroduto partindo de Congonhas até um porto em Presidente Kennedy (ES). Inicialmente, seu projeto era de partir de Brumadinho, através da exploração da Serra da Moeda, também conhecida como Monumento Natural Mãe D’água, mas graças à forte resistência das comunidades quilombolas e do Abraço da Serra da Moeda a mineradora foi obrigada a ajustar seu projeto.
A Ferrous, que em seu projeto alega a intenção de possuir dois dutos, vai captar 3.400m³/hora do Rio Paraopeba, manancial fundamental para o abastecimento da RMBH. Em seu processo de negociação com as famílias atingidas a mineradora possui um legado de sistemáticas violações de direitos humanos, sendo alvo, por exemplo, de representações do Ministério Público Federal.
Além disso, o mineroduto ameaça a segurança hídrica de milhares de comunidades rurais e cidades inteiras como é o caso de Viçosa e Conselheiro Lafaiete. As prefeituras de Paula Cândido e Viçosa, assim como as Câmaras Municipais, estão empenhadas para impedir o retrocesso que representa a passagem do mineroduto na região, ajuizando inclusive ações judiciais contra a mineradora.
A Manabi, que pretende instalar uma mega-mina em Morro do Pilar, também pleiteia a instalação de um mineroduto para transportar o minério de ferro. Marcado por grandes tensões, o processo de licenciamento ambiental do empreendimento tem sido feito na marra, causando muita polêmica.
Entre os vários motivos destacam-se a iminência de destruição de fragmentos de mata atlântica primária, a negligência da existência de comunidades tradicionais e destruição de trechos do patrimônio histórico e cultural da Estrada Real. A Manabi pretende captar cerca de 2.850m³/hora, degradando ainda mais a bacia do Rio Santo Antônio já tão afetada por grandes empreendimentos.
Em 2014, a Prefeitura de Açucena revogou as autorizações concedidas à mineradora após a compreensão que somente destruições o empreendimento deixaria à cidade.
O povo do semiárido mineiro parecia a salvo destes tipos de empreendimentos, pois a região apresenta sérias dificuldades de acesso à água e se já não bastasse a árdua luta dos geraizeiros e comunidades tradicionais contra as eucalipteiras que, sem nenhum pudor, tratam de grilar grandes terras no Vale do Jequitinhonha e Norte de Minas. Mas as mineradoras não ligam muito para a dificuldade de abastecimento do povo não.
A Sul Americana Metais (SAM), do grupo Votorantim, pretende explorar 25 milhões de toneladas de minério de ferro por ano no município de Grão Mogol. E por incrível que pareça, a ousadia da mineradora não tem limites, pretende escoar o minério através de um mineroduto. Serão captados da região 6.200m³/hora para viabilizar o empreendimento.
Lamentavelmente, o IBAMA é condescendente com esse crime e tem conduzido de forma arbitrária o licenciamento, chegando a marcar audiências para fevereiro de 2015, em um gesto de que planeja licenciar o mineroduto às pressas. O Ministério Púbico Estadual e laudos de pesquisadores da UFMG e UNIMONTES denunciam o não reconhecimento de comunidades tradicionais no processo e a inviabilidade de se instalar um empreendimento desta natureza em um local onde, simplesmente, não há água.
Se somarmos os volumes de água utilizados por estes projetos chegaremos ao escandaloso valor de 19,350m³/hora.
De acordo com o diagnóstico dos Serviços de Água e Esgoto do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério das Cidades, o consumo médio per capita de água, em Minas Gerais, é de 159 litros por dia. Ou seja, o valor consumido por estes projetos minerários equivale ao abastecimento de cerca de 2.900.000 mineiros ou, o suficiente para atender a demanda de quase 50% da RMBH.
Quando se pergunta às mineradoras do porque de se optar pelo transporte via minerodutos, a resposta, obviamente, é meramente e exclusivamente econômica. Segundo dados das próprias empresas, o custo operacional para se transportar minério de ferro via ferrovia é, em média, de 18,00 US$/ton, já por minerodutos, a média é de 2,00 US$/ton.
Ou seja, a implantação de minerodutos nada mais é que uma estratégia de maximizar o lucro dos acionistas destas grandes corporações. Quem ficar sem água no caminho que se vire…
Os minerodutos possuem algo em comum. Além de todos os projetos possuírem inquéritos instaurados no Ministério Público, ambos estão sendo licenciados pelo IBAMA, mas contaram e ainda tem contado até o momento com o apoio do Governo do Estado.
Uma das características do choque de gestão foi utilizar todo o aparato da máquina pública para beneficiar, à revelia da legislação ambiental, os empreendimentos minerários privados.
Os Governos do PSDB (Aécio Neves 2003 – 2010 e Antônio Anastasia 2011 – 2014) assinaram decretos que declaram de utilidade pública as implantações dos minerodutos para fins de desapropriação e, ainda, colocam a serviço das mineradoras a empresa estatal CODEMIG para realizar o serviço sujo.
Os decretos, assim como a emissão das outorgas para uso de água emitido pelo IGAM, foram assinados antes mesmo da concretização dos processos de licenciamento ambiental, ou seja, sem saber se há a viabilidade ambiental e técnica dos empreendimentos, o Estado tratou de reconhecê-los como fatos consumados.
Ao longo de dois anos, a Comissão Extraordinária das Águas da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) realizou um importante e valioso trabalho sobre a questão hídrica no estado.
Em seu relatório e a partir das audiências públicas realizadas, ficou nítida a compreensão e o posicionamento categórico da Comissão em relação aos minerodutos, pois estes representam graves retrocessos na politica estadual de recursos hídricos e devem ser contundentemente impedidos.
Com a demarcação das áreas denominadas “faixa de servidão para mineroduto”, milhares de pessoas estão com sua soberania ameaçada e seus projetos de vida em risco.
Em todas as regiões do estado onde estas mineradoras projetam a implantação destes empreendimentos têm encontrado forte contestação e resistência popular. O que é natural, visto que as comunidades não são envolvidas nos processos de escolha e não possuem o menor controle sob suas riquezas minerais.
O atual modelo de mineração adotado pelo Estado Brasileiro não tem nada a oferecer ao Brasil, a não ser um rastro de miséria e destruição social e ambiental ao povo brasileiro.
Governador Fernando Pimentel, o senhor foi eleito sob o lema “ouvir para governar”, e muitos dos que estão sofrendo com as mazelas da mineração em Minas creditaram e acreditaram neste lema ajudando a eleger este novo Governo.
O povo mineiro já fez a sua opção, não quer assistir às suas águas, casas, nascentes, plantações, culturas, memórias, suor, comunidades e minérios entrando pelo cano; queremos sim, o quanto antes, nos livrarmos destes projetos que nada tem a nos oferecer e empenharmos conjuntamente para garantir a segurança hídrica do estado e isto, significa, definitivamente, enterrarmos de vez esta infeliz ideia de mineroduto.


*Membro da Coordenação da Campanha Pelas e Contra o Mineroduto da Ferrous e militante do Movimento Pela Soberania Popular Frente à Mineração (MAM)



Entrevista: um policial que matou pela primeira vez

9 de Fevereiro de 2015, 10:56, por Desconhecido


O policial que matou pela primeira vez
A entrevista que você lerá a seguir foi feita por mim a um policial militar brasileiro que não irei identificar, pois, por razões significativas, o entrevistado preferiu se manter anônimo.
Os fatos narrados se deram no ano passado, e desde lá conversamos sobre o ocorrido, após ele ter entrado em contato através de e-mail para desabafar algumas sensações e entendimentos. De lá para cá, além do contato por e-mail, também falamos via telefone e mídias sociais.
Hoje, alguns meses após a primeira mensagem, considero-o um amigo, a quem tive a grata oportunidade de ajudar. A entrevista (que fizemos no ano passado) foi a forma que ele encontrou de propagar sua experiência transformando-a em aprendizado coletivo, independentemente das vivências e concepções de cada leitor (policial ou não).
Só publicamos agora para que os fatos narrados não sejam identificados, em um momento em que todos os desdobramentos legais já foram encerrados.
Tenho certeza que será engrandecedora a leitura:

Abordagem Policial: você entrou em contato com o blog relatando uma ocorrência por que passou. Que ocorrência foi essa? 

Policial: Foi um auto de resistência, onde eu e o pessoal da minha viatura acabamos matando um criminoso.

Abordagem Policial: como a ocorrência se iniciou?

Policial: A gente fazia o patrulhamento normal, em um bairro da periferia, com alto índice criminal, e passaram dois homens em uma moto. Quando passaram o carona falou algo para o piloto. Acho que avisou que a viatura podia abordar eles.
Aí adiantaram e então acionamos a sirene para eles pararem. Eles não pararam e então a gente acompanhou. De uma hora pra outra o carona da moto atirou. Aí o motorista quase perde o controle da viatura.
Um colega deu dois tiros, mas não pegou em ninguém. A gente falou pra ele (o colega) segurar, porque os caras estavam de costa e podia dar merda. Só foram esses dois tiros enquanto eles estavam na moto. Daí nos afastamos mais, pra segurança, mas continuamos acompanhando.
Chegou um momento que eles caíram da moto. Então descemos da viatura e corremos. O carona correu para um lado e o piloto correu pra outro. A gente correu atrás do carona, o que tinha atirado. Chegou num ponto e ele não tinha mais pra onde ir, a não ser pular um muro. Aí ele virou com a arma na mão, e a gente atirou. Quatro tiros pegaram nele.

Abordagem Policial: vocês prestaram socorro?

Policial: Sim. Levamos ele para o hospital, mas já chegou lá sem vida.

Abordagem Policial: Como você se sentiu após os disparos contra o suspeito?

Policial: A primeira coisa que veio na cabeça é se aquilo tudo estava no padrão, se a gente atirou demais e houve excesso. O medo de ser preso, de ser punido.

Abordagem Policial: mas você tinha agido na legalidade… Por que o receio?

“Acho que por haver erros cometidos por outros policiais as pessoas já não acreditam quando a ação é correta”
Policial: Não sei. É que a gente vê tanta acusação contra esse tipo de ação. Acho que por haver erros cometidos por outros policiais as pessoas já não acreditam quando a ação é correta. E aí a gente acaba ficando com medo de ser julgado como um criminoso.

Abordagem Policial: alguém presenciou o momento dos disparos, além dos policiais?

Policial: Na verdade, logo depois que nos aproximamos do criminoso começou a chegar gente, e aí ficamos sabendo que ele morava ali perto. Uma mulher gritou e foi chamar os familiares dele. Mas daí só fomos ver os familiares no hospital, porque não demoramos muito no local dos disparos.

Abordagem Policial: como foi o contato com os familiares?

Policial: Na verdade não tivemos contato direto com eles. Mas vimos à distância no hospital. A mulher parecia conformada, acho que ela sabia que ele era envolvido com o tráfico na região (foi isso que ficamos sabendo depois).
Mas o que foi complicado foi ver o filho dele, que tinha uns oito anos. O moleque tava chorando bastante. É difícil esquecer da cena de ver uma criança triste e saber que as coisas não precisavam ser assim.

Abordagem Policial: você parece sentido com a morte do suspeito. Você considera que se não tivessem atirado talvez ele faria isso contra a guarnição?

Policial: A gente sabe disso. Mas mesmo assim a gente sente. Quem não sente é porque já perdeu a parte humana. E as pessoas pensam que é fácil chegar lá e matar. Tem gente que comemora, elogia e tudo, mas é difícil.
“Essa missão que o policial assume é muito difícil e muito dura”
Conheço colegas que já mataram várias vezes, e já perderam isso. Eu digo que perderam a capacidade de sentir, isso é um problema.
Essa missão que o policial assume é muito difícil e muito dura. Veja bem: você praticamente está dando sua alma por esse serviço. E tem medo de trabalhar para não ser punido. É complicado.

Abordagem Policial: como você lida com esses sentimentos depois de tudo isso?

Policial: Sinceramente? Cheguei a querer me afastar do serviço de rua, sair da polícia. Mas ficaria muito na cara para os colegas que saí por causa da ocorrência. Não quis isso. Também não tenho como criar a família sem ser pela polícia.
O apego a Deus é a maior força, porque você não vai falar disso com sua mulher, com o filho. É pesado demais. Mas estou perto de tirar férias também e daí vou dar uma descansada.

Abordagem Policial: E se você passar por uma ocorrência assim novamente?

Policial: Acho que tudo acontece como aconteceu. Na hora você não pensa, não tem tempo pra refletir. Se parar pra pensar você morre. Depois a gente vai se cuidando como dá, como estou fazendo.

Abordagem Policial: que conselho você daria para policiais que passam por circunstâncias semelhantes?

Policial: Primeiro é salvar sua vida. Tudo isso que eu falei aqui só acontece depois que sua vida foi salva. Se eu não atirasse nem estava aqui agora. Se acontecer com você, procure alguém pra conversar, pra falar disso. Por causa da minha leitura doAbordagem Policial em me senti à vontade pra falar contigo (Danillo Ferreira), e não queria conversar com alguém que me conhecesse pessoalmente*.
Isso tem ajudado muito, porque você desabafa. No mais é se apegar a Deus. Nossa missão é árdua, mas é dela que tiramos nosso sustento. E gosto muito dos amigos que tenho por causa da minha profissão.
*Conseguimos convencer o policial a procurar apoio psicológico especializado, algo que lhe garantiu bastante melhoras.
Danillo Ferreira
Cofundador do Abordagem Policial, Oficial da Polícia Militar da Bahia e associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.



A ditadura de 1964 e o impasse da republicanização inacabada do Brasil

9 de Fevereiro de 2015, 9:15, por Desconhecido


Ainda não temos a construção de uma narrativa republicana coerente e de longa duração sobre o golpe militar, a ditadura e a transição conservadora.


Juarez Guimarães (*)

Paulo Pinto/Fotos Públicas

Quando em 1989, data do bi-centenário da revolução francesa, instalou-se naquele país um debate público de altíssima voltagem intelectual e de disputa de valores sobre o significado histórico da revolução francesa. O fato de ter predominado a tese chamada de revisionista, liderada por François Furet, fazendo a crítica amalgamada do jacobinismo e  do princípio da soberania popular de Rousseau, atualizando argumentos de Benjamin Constant e de Alexis de Tocqueville, identificando-os com o despotismo e o Terror, teve decerto conseqüências duradouras para a cultura política francesa contemporânea. Certamente, ao separar o princípio da liberdade dos princípios da igualdade e da fraternidade, esta interpretação da revolução francesa contribuiu de modo decisivo para conformar o quadro atual insidioso da cultura política francesa,  com a sua deriva à direita, com a separação entre socialismo e republicanismo, inclusive com largos setores da classe operária, votando seguidamente na direita xenófoba e racista.

Com uma temporalidade menor e decerto com uma irradiação mais circunscrita – afinal a revolução francesa foi um evento central na formação do que chamamos de a modernidade republicana democrática – a reflexão pública sobre os 50 anos do golpe imperialista-burguês- militar pesará sobre a superação ou não dos impasses estruturais da democracia brasileira.  Esta designação se impõe como mais precisa porque, com os novos documentos do Estado norte-americano, que vieram à luz comprovou-se que o imperialismo não apenas apoiou o golpe, mas teve um papel decisivo na sua ideação e organização; além disso, pesquisas do Ibope da época, recém divulgadas, demonstram que o governo Jango Goulart tinha o nítido apoio da maioria da população brasileira e os golpistas apenas tinham a maioria do apoio ativo  entre os empresários e nos quartéis. Seria preciso, portanto, identificar a dimensão “burguesa” do golpe, não identificando-o incorretamente com uma presumida  maioria de apoio “civil” da população.

Decerto ainda é dominante – tendo sido hegemônica por um curto e decisivo período, nos anos iniciais da transição conservadora – a narrativa liberal-conservadora da transição da ditadura militar para a democracia. Por esta narrativa, o golpe militar foi a resposta à crise de um regime chamado pejorativamente de populista, em um quadro polarizado além das instituições por forças de esquerda alheias senão incompatíveis com os valores da democracia. A conceituação da ditadura militar como um regime autoritário, operando em meio a uma institucionalização controlada, refletia a inserção da intelectualidade universitária brasileira em uma ciência política da transitologia, formada nas universidades norte-americanas, tendo em Fernando Henrique Cardoso o seu mais prestigioso e influente intelectual. 

As contradições deste regime autoritário, herdeiro das tradições estatistas do varguismo e do nacional-desenvolvimentismo, eram pensadas a partir da oposição entre Estado e sociedade civil, entre, como dizia Fernando Henrique Cardoso, o “estado hegeliano de Brasília e a sociedade lockeana dos interesses de São Paulo”.

Daí pensar a transição para a democracia a partir de uma “frente da sociedade civil”, incluindo de modo decisivo os empresários nacionais e multinacionais engajados na campanha pela privatização e os próprios setores liberalizantes do regime. A transição para democracia, nesta narrativa liberal-conservadora, deveria ser negociada e eleger a estabilidade das novas instituições democráticas como o valor central, o qual deveria subordinar os outros, como os anseios represados por mais justiça, novos direitos e, principalmente, os valores da chamada Justiça de Transição. A transição, não a ruptura democrática com a ditadura, devera implicar uma transação.

 A evidência da força contemporânea desta narrativa está na jurisprudência do Superior Tribunal Federal que legitimou, como definitiva, a Lei da Anistia promulgada pela ditadura militar que visou apagar os crimes imprescritíveis contra a humanidade e os direitos humanos cometidos durante a ditadura militar.

Se esta narrativa liberal-conservadora cumpriu e cumpre o papel histórico de soldar as visões de mundo liberal à conservadora, de uma certa tradição da intelectualidade da USP à consciência resignada dos quartéis, qual narrativa poderia soldar as visões de mundo dos socialistas, dos republicanos, e dos setores populares?

Seis visões e uma narrativa

Historicamente, as consciências socialistas brasileiras se dividiram ao narrar a história de 1964 e seu após. Houve quem contasse a história de 1964 como um fim inevitável e historicamente necessário de um ciclo chamado de populista ou nacional-desenvolvimentista, fruto de uma determinação econômico- estrutural (Imannuel Wallerstein), das contradições imanentes da aliança populista (Octávio Ianni) ou das injunções do modo de inserção do Brasil frente à dominação imperialista (em seu pluralismo, as teorias da dependência de Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Andrew Gunther Franck). Houve quem centralizasse a explicação nas ilusões do PCB em uma revolução democrática-burguesa (Caio Prado Júnior) ou nas vacilações de Jango Goulart ( a consciência militarista de setores da esquerda brasileira no pós-64) ou ainda no não enraizamento e dispersão das estruturas organizativas do chamado populismo entre os trabalhadores e os setores populares ( Francisco Weffort). Já Wanderley Guilherme dos Santos, em sua tese de doutorado, depois editada com o nome de “1964: Anatomia da crise”, centralizava a explicação na paralisia decisória das instituições durante o governo Goulart, como expressão da polarização político partidária.

 Em suas diferentes verdades parciais, estas diferentes respostas à pergunta – por que perdemos? -  continuam a visitar a cultura socialista brasileira. A pergunta, então, é: será possível construir uma narrativa que nos unifique, em nosso pluralismo, e permita fazer a crítica da narrativa liberal-conservadora?


O que vamos expor em seguida é a estruturação desta narrativa, da qual extrairemos três teses solidárias.

O que propomos é a narrativa da republicanização – nos tempos longos e inacabados – do Brasil. Chamamos de republicanização , na linguagem da filosofia política que diferencia republicanismo de liberalismo – o processo histórico de constituição de cidadãos e cidadãs livres a partir do princípio da soberania popular e da construção universal de direitos e deveres simétricos – sem desigualdade estrutural – entre eles e elas. A republicanização sintetizaria, nesta perspectiva, a questão nacional (soberania) e social ( superação das desigualdades estruturais herdadas do colonialismo, do escravismo e da hiper-concentração fundiária) através da conquista e aprofundamento da democracia, pensada a partir da soberania do povo.

Através desta narrativa, entendemos 1964 como uma contra-revolução imperialista-burguesa e militar, que centralizou as classes dominantes externas e locais, no clima da guerra fria, para impor uma derrota histórica às forças políticas e sociais que lutavam pela republicanização do país. As reformas de base, com centralidade para a reforma agrária, que equivalia também a repensar as formas históricas da urbanização do país, e as reivindicações democráticas de votos para os analfabetos, da extensão do direito de sindicalização aos trabalhadores do campo, bem como a adoção de um pluralismo partidário irrestrito, permitindo a legalização dos partidos da esquerda, compunham esta agenda da republicanização. Os liberais brasileiros,  mesmo os mais avançados, aderiram massivamente por cálculo ao golpe militar porque já não conseguiam fazer frente na disputa democrática a esta pressão de republicanização que iluminava a imaginação do país em obras magníficas de nossa cultura. O sertão , para retomar a imagem formadora de Antônio Conselheiro, iria virar mar e o mar virar sertão?

A razão de Florestan Fernandes

Sabemos que, ao contrário, nos 21 anos da ditadura militar o sertão virou mais sertão e o mar virou mais mar, no sentido do aprofundamento do subdesenvolvimento, como o definiria Celso Furtado, isto é, a desigualdade estrutural entre os brasileiros aprofundou-se em proporções inéditas na moderna sociedade capitalista brasileira.

Cremos que é somente através desta longa narrativa da republicanização que podemos bem compreender o clássico “A revolução burguesa” de Florestan Fernandes. Isto é, ao contrário da imaginação pecebista da “revolução democrático-burguesa”, a revolução burguesa aqui – retardatária, dependente e pressionada pelas classes trabalhadoras e populares - era autocrática e instalava no plano social o “circuito fechado” do poder e da riqueza. As formas modernas do capitalismo foram  geradas e geridas pela ditadura em um sentido anti-reformas de base, isto é, anti-republicano.

Compreender isto é decisivo. Usando a linguagem de Gramsci, o “Estado fabrica o fabricante”. Isto é, a ditadura fabricou o moderno capitalismo brasileiro em suas dimensões estruturais, tal como o conhecemos hoje. Para ser mais preciso:
- a ditadura fundou o Banco Central e organizou as fusões bancárias que originaram os grandes bancos privados no país (não o capital financeiro, isto é, fusão entre grande capital e bancário, como nos ensinou Maria da Conceição Tavares);

- a ditadura cercou a reforma agrária por baixo e por cima, atingindo o campnêss e o latifundiário improdutivo, introduzindo a previdência rural e criando, através de financiamento massivo a fundo perdido pelo Banco do Brasil e pela criação da Embrapa, as bases do moderno agro-business brasileiro;

- a ditadura consolidou a opção não pública ou anti-republicana no setor dos meios de comunicação, investindo na formação da grande mídia concentrada e empresarial, em particular na Rede Globo;

- a ditadura utilizou a tradição corporativa dos direitos fragmentados na direção inversa de Vargas, isto é, para privatizar e vincular ao mercado a oferta de serviços na área da educação e da saúde, formando legal e historicamente o moderno mercado da saúde e da educação;

- a ditadura fez a associação funcional  tripartite empresa multinacional-empresa estatal- grande empresa privada nacional, formando a moderna empresa capitalista no Brasil, de cuja base social emergiria , em outro período, a liderança histórica de Lula.

Enfim, a ditadura não apenas reprimiu o movimento histórico pela republicanização. Ela criou o moderno capitalismo brasileiro anti-republicano, isto é, com um viés autocrático e cioso da desigualdade estrutural de acesso aos direitos e deveres.

Transição conservadora e “teoria dos dois demônios”

A disputa e a transação política na transição da ditadura para a democracia se fez, em um primeiro momento no Colégio Eleitoral e, depois, em um Congresso Constituinte eleito segundo as regras do jogo definidas pela própria ditadura em seu ciclo final de auto-reformas. Não houve nem diretas já nem Assembléia constituinte Exclusiva e soberana, como reivindicavam as forças políticas mais interessadas e comprometidas com o aprofundamento da democracia. A morte de Tancredo Neves e a assunção de Sarney, ex-presidente do PDS, certamente acentuou as tendências continuistas na transição conservadora.

Esta transição conservadora trouxe três conseqüências anti-republicanas duradouras para a nova democracia.

A primeira delas foi a  relegitimação dos atores políticos civis orgânicos fundamentais que criaram e nutriram a ditadura militar em sua longa temporalidade. Que estes atores tivessem direito de expressão e voto na nova democracia faz parte do pluralismo. Mas que passassem, assim, de uma condição a outra, de coveiros da democracia a co-autores de seu renascimento, isto é obra do transformismo liberal-conservador. Os “mortos-vivos” da ditadura atualizaram a sua legitimidade como os “vivos-mortos” da nova democracia, atualizando nela até hoje as suas razões e interesses anti-republicanos.

A segunda conseqüência anti-republicana duradoura foi o transporte para a nova democracia de instituições e leis amalgamadas em forças econômicas dominantes, criadas durante a ditadura militar. Aqui funcionou o mecanismo chamado na ciência política de veto-player: se não há mais força e legitimidade para ser maioria, formar coalizões para impor veto às decisões das maiorias.A Constituição de 1988 foi, por excelência, o terreno desta guerra de posições e manobras, na qual muitos direitos republicanos foram conquistados – em particular no capítulo dos direitos sociais e da cidadania ativa – mas cristalizaram-se o que se poderia chamar de impasses estruturais da republicanização do Brasil: o Banco central e seus poderes rentistas, o grande negócio no campo e seus vetos à reforma agrária, a semi-autarquia das Forças Armadas e a militarização da segurança pública, os quase-monopólios midiáticos e suas interdições aos direitos democráticos de comunicação pública, os poderes do grande capital e seus vetos a uma estrutura tributária progressiva ou à democracia no local de trabalho.

Em terceiro lugar, o circuito da auto-reforma se fechou com a manutenção de uma estrutura legal e institucional de eleições, partidos e sistema de representação, na qual as energias transformadoras da soberania popular deveriam ser represadas pelas distorções da representação e pela concorrência eleitoral de tipo americano, isto é, fortemente assentada na força do dinheiro e dos lobbies de interesse das grandes corporações.  Todas estas três heranças duradouras da ditadura militar na nova democracia brasileira atualizavam não apenas os bloqueios a uma distribuição de renda como também a formação dos direitos das mulheres e dos negros vitimados pela moral conservadora e pelo racismo, atualizado na cultura brasileira pelas culturas da apartação liberal-conservadoras.

A “teoria dos dois demônios “, liberal-conservadora, ao proteger a nova democracia da “esquerda anti-democrática” e dos “militares golpistas”, estendendo o manto de perdão a seus erros históricos, havia feito o seu trabalho. Mas, com ele, renovaram-se os impasses históricos da republicanização na nova democracia.

A chegada ao Brasil do neoliberalismo, de modo trânsfuga por Collor e depois solidamente programatizado por Fernando Henrique Cardoso, criaria um novo pacto histórico entre  liberais e conservadores, desta vez  atando não autocracia e mercado mas as teorias elitistas da democracia aos novos imperativos da globalização financeira. Aí já entramos na cena contemporânea da democracia brasileira.

A Justiça de Transição e o exorcismo da “teoria dos dois demônios”

Afirmadas estas duas teses analíticas – o entendimento da ditadura militar como uma contra-revolução republicana e a transição conservadora como  a maximização dos vetores anti-republicanos para a nova democracia – terminamos este ensaio com uma tese normativa. A cultura da Justiça de transição é necessária para construir na democracia brasileira contemporânea as condições de superação dos impasses à plena republicanização do país.

O fundamento da Justiça de Transição é justamente o direito republicano dos povos a resistir, pelos meios necessários, inclusive a violência, aos regimes despóticos ou tirânicos. Este direito republicano de resistência foi firmado claramente nas revoluções fundadoras da Modernidade por John Milton (“Em defesa do povo inglês”  de 1651, no qual justificava o julgamento e o enforcamento do rei despótico), Por Thomas Paine ( em “Senso comum” e “Os direitos do homem”, editados em favor da luta dos revolucionários norte-americanos contra os opressores ingleses) e por Rousseau ( em “Contrato social”, onde firma o direito e até o dever de lutar contra os Estados ilegítimos, baseados na força e não no princípio da soberania popular).

No estado brasileiro contemporâneo, a cultura e as ações da Justiça de Transição estão sendo ativadas e desenvolvidas pelo Comitê Brasileiro de Anistia, vinculado ao Ministério da Justiça, e pela Comissão da Verdade. Elas incidem potencialmente sobre cinco questões decisivas, que compõem a agenda da Justiça de Transição: o direito à memória, o direito à verdade, o direito à reparação dos que foram vítimas ou vitimados pela ditadura militar, o direito de julgar e condenar, através do devido processo legal, os crimes contra a humanidade e a reforma cidadã das leis e instituições repressivas criadas pela ditadura militar.

Se antes falamos dos mortos-vivos da ditadura militar na democracia brasileira, é hora de chamar aqui a presença dos personagens ausentes da democracia brasileira e que foram assassinados pela ditadura militar. O povo de Salvador deu um grande exemplo ao povo brasileiro ao nomear um colégio estadual de ensino de Carlos Mariguella ao invés de se chamar fulano de tal da ditadura militar (Emílio Garrastazu Médici). A república democrática se constrói nomeando e honrando os filhos da liberdade. Assim, como fizemos de Zumbi dos Palmares e de Tiradentes, símbolos permanentes de nosso amor à liberdade, façamos agora dos que morreram lutando contra a ditadura os heróis cívicos da república democrática brasileira que resta ainda a construir.

(*) Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG, pós-doutorado em Filosofia na USP, e pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras)


FOTO: Ciquenta anos do golpe civil-militar de 1964 foram lembrados em São Paulo nesta segunda-feira, dia 31 (Paulo Pinto/Fotos Públicas)





Créditos da foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas



Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos: Emendas Constitucionais nº 20/98, 41/2003, 47/2005 e 70/2012

9 de Fevereiro de 2015, 6:32, por Desconhecido

Aquela ideia antiga de que o servidor público era marajá não tem mais fundamento, pelo menos para os servidores públicos a se aposentarem após a grande mudança estabelecida pelas reformas constitucionais.

1.INTRODUÇÃO.

A Previdência Social é um verdadeiro seguro, mantido por contribuições sociais obrigatórias. O regime próprio de previdência dos servidores públicos, até a edição de emenda constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1.988, não previa um corpo orgânico e uniforme de normas, sendo os benefícios custeados unicamente com recursos estatais.
Os gastos com aposentados e pensionistas da previdência do serviço público federal e estadual equivaliam a quase 10 (dez) vezes o montante dos gastos governamentais com a Previdência (Regime Geral) e a Assistência Social, no ano de 2000, gerando impactos orçamentários enormes, impondo-se urgentemente uma reforma do sistema, segundo dados do Ministério da Previdência Social (www.mps.gov.br).
Nesse cenário vieram à lume as Emendas Constitucionais nº 20, de 15 de dezembro de 1998, nº 41, de 31 de dezembro de 2003, EC nº 47, de 5 de julho de 2005 e a Emenda Constitucional nº 70, de 29 de março de 2012.
A finalidade precípua deste trabalho é demonstrar a contribuição que estas reformas trouxeram para o Estado, mostrando que as referidas promoveram o enxugamento da máquina administrativa federal, permitindo a administração pública alcançar o equilíbrio financeiro e atuarial e aprimorar a gestão pública dos recursos de toda a sociedade.
Entretanto, por outro lado, os servidores públicos de forma geral restaram prejudicados, e como se verá, em detrimento do enriquecimento do Estado, após a adoção do novo modelo de custeio do regime próprio.

2.A REFORMA DA PREVIDÊNCIA. NOVO MODELO DE GESTÃO PÚBLICA.

A partir do ano de 1992, com a eleição do primeiro Presidente após a era Militar, o modelo da Administração Federal passou por mudanças profundas, sob o argumento de reconstrução do Estado.
No primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), em continuidade às primeiras ações promovidas pelos seus antecessores da era civil, promoveu-se uma “Reforma do Estado”, uma verdadeira redefinição de suas atividades, visando a superar os problemas crônicos vividos àquela época: alta inflação, crise econômica, moratória da dívida externa, monopólio estatal de atividades econômicas.
A reforma dita gerencial foi implementada a partir de 1995 e supunha uma melhoria da capacidade do Estado de atender às demandas sociais, redefinir o modelo social e burocrático vigente, por meio da implantação de uma administração gerencial, tendo como princípio a eficiência do serviço público, segundo seu mentor, o então Ministro Luiz Carlos Bresser Pereira.
Relativamente à previdência, não havia um corpo orgânico e uniforme de normas, sendo que os benefícios custeados unicamente com recursos estatais. No âmago dessa política de reestruturação do estado, a alteração do art. 40, da Constituição Federal, por meio da Emenda Constitucional nº 19/1998, tratou, dentre outras coisas, de consolidar um novo modelo previdenciário público, com ênfase no caráter contributivo e na necessidade de equilíbrio financeiro e atuarial.
A Emenda constitucional 41, de 31 de dezembro de 2003, em continuação à reforma do sistema, incluiu a característica da solidariedade, estabelecendo que as contribuições para o sistema devem ser vertidas pelas entidades públicas, de um lado; e de outro, pelos servidores, ativos e inativos, e pensionistas.
Conforme afirmação de Tavares (2004, p.7)
Até esta mudança, tantos os valores arrecadados dos servidores ativos quanto os gastos com os benefícios previdenciários eram incluídos no orçamento fiscal das entidades da Federação, contrariando a determinação constitucional do art. 165§5º, que prevê a separação do orçamento da seguridade social do orçamento fiscal.
A Lei federal nº 9.717/98, editada antes da edição da própria EC 20/98, já determinava o destaque da contribuição do Estado, o regime contábil individualizado, elaboração de demonstrativos financeiros e inspeções e auditorias internas e externas, mas isso não era realizado.
A Emenda Constitucional nº41/2003 trouxe novas alterações, estabelecendo o caráter contributivo e solidário para os RPPS- Regimes Próprio de Previdência Social, destacando-se as principais:
- Instituiu a contribuição para os servidores inativos e pensionistas, bem como do ente estatal;
- Revogou com a denominada integralidade, princípio que determinava que a base de cálculo da aposentadoria ou pensão por morte deveria ser o valor da última remuneração do servidor em atividade. O cálculo das aposentadorias dos servidores públicos passou a corresponder à média dos salários-de-contribuição durante todo o tempo contributivo;
- Revogou a denominada paridade, previsto no §8º, do artigo 40, da Constituição Federal, que permitia a isonomia entre servidores da ativa e aposentados/pensionistas, isto é, as modificações e remuneração dos servidores em atividade, suas reclassificações ou transformações de cargos, revisões, deveriam ser estendidas aos servidores aposentados ou aos pensionistas;
- Limitação do valor da pensão por morte.
Diante das mudanças acima, a Lei 10.887 de 18 de julho de 2004, que regulamentou a EC 41/2003, estabeleceu a forma de cálculo dos proventos dos servidores públicos que passou a corresponder à média dos salários-de-contribuição durante todo o tempo contributivo.
Essa lei também tratou de estabelecer, também, os limites dos valores devidos a título de pensão por morte.
Finalmente, a Lei 12.618, de 30 de abril de 2012, que instituiu o regime de previdência complementar para os servidores públicos federais titulares de cargo efetivo, fixou os limites máximos de aposentadorias e pensões a serem pagos pelo regime próprio dos servidores da União, assim como autorizou a criação de 03 (três) entidades de fechadas de previdência complementar.
No âmbito da administração pública, foi criada a Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp-Exe), para os servidores públicos titulares de cargo efetivo do Poder Executivo, por meio de ato da Presidente da República, através do Decreto nº 7.808, de 20 de setembro de 2012. O Poder Legislativo Federal aderiu à Funpresp-Exe, através do Ato da Mesa nº 74, de 31 de janeiro de 2013.
Com a criação desta Entidade de Previdência Complementar, os servidores da União contratados a partir de sua criação, terão seus benefícios de aposentadoria limitados ao teto vigente para o Regime Geral de Previdência (teto do INSS).
Em face das mudanças acima, podemos visualizar facilmente que o Estado resolveu o crescente déficit previdenciário, ao mesmo tempo que irá capitalizar recursos nos moldes de grandes entidades fechadas de previdência complementar do País, como a PREVI do Banco do Brasil, através das Fundações criadas.
O servidor público atualmente custeia o sistema previdenciário com a alíquota de 11% (onze por cento), incidente sobre a totalidade da base de contribuição (artigo 4º, da Lei 10.887/2004), ou sobre a parcela da base de contribuição que não exceder ao limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social, se vinculado ao Regime Previdenciário Complementar.
O servidor Público aposentado, após muitas discussões sobre a constitucionalidade de sua contribuição, restou obrigado a contribuir com 11% (onze por cento), incidentes sobre a parcela dos proventos de aposentadorias e pensões que supere 60% (sessenta por cento) do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social1
A União, as autarquias e as fundações públicas detêm a obrigação de contribuir com o dobro da contribuição dos servidores2
As medidas surtiram efeito, tanto é que, nos 26 (vinte e seis) estados da federação, todos instituíram seus Regimes Próprios de Previdência Social, administrados por uma unidade gestora (exemplo: Rio de janeiro – RIO PREVIDÊNCIA; Piauí – IAPEP), os quais apresentam saldos em investimentos crescentes, conforme descrito abaixo Schwazer (p.77):
O Anuário Estatístico da Previdência Social de 2007 aponta que o estoque de investimentos está crescendo a uma taxa elevada. Em 2005, os regimes próprios tinham R$ 21,7 bilhões. No ano seguinte, o estoque já somava R$ 25,6 bilhões. De 2006 para 2007 houve um acréscimo de cerca de 20%, chegando a R$ 31,153 bilhões.
Para o secretário, o crescimento no estoque de investimentos está transformando o setor em “importante ator no mercado de capitais”, uma vez que os investimentos são de longo prazo. “É possível fazer investimentos de longo prazo, de longa maturação e, portanto, buscar rentabilidade nesses investimentos no âmbito dos municípios, dos estados e talvez do Governo Federal, também no futuro”, ressalta Schwarzer.
Os Regimes Próprios de Previdência Social foram formatados, como se conhece atualmente, a partir de 1998, com a Emenda Constitucional nº 20 e a Lei 9.717.
Com a instituição da FUNPRESP, que para o governo visa a recomposição do equilíbrio da Previdência Pública, o sistema previdenciário tenderá a acumular mais investimentos e se tornará rentável, visto que se constitui num instrumento privado voltado para a formação da poupança previdenciária do trabalhador, administrando seus recursos no mercado financeiro, e, lógico, logrando lucros com as aplicações desses recursos.
Nesse sistema, o governo não assumirá qualquer ônus financeiro caso o fundo venha a dar prejuízo no futuro. A responsabilidade será dos administradores e os prejuízos, dos participantes.
Segundo Pureza (2010), Do ponto de vista do equilíbrio das contas públicas, tais iniciativas representaram um significativo avanço frente à relativa prodigalidade com que eram tratados os aposentados e pensionistas da fase anterior às reformas previdenciárias de 1998 e 2003.
Entretanto, estudos indicam que o déficit público da previdência dos servidores perdurará ainda por longo tempo, mesmo com as medidas tomadas, visto que a Previdência Complementar levará muitos anos para se firmar efetivamente.

3.A REFORMA SOB O ASPECTO FINANCEIRO DOS SERVIDORES PÚBLICOS APOSENTADOS.

Do ponto de vista dos servidores públicos, seguramente, a sonhada estabilidade e garantia de uma aposentadoria tranquila, não mais existe mais, nos moldes do regime anterior.
Se a reforma se mostrou vitoriosa para o Estado, por outro lado, os servidores sofreram graves prejuízos, conforme demonstrar-se-á segundo a espécie de aposentadoria.

3.1.DOS SERVIDORES QUE MANTÊM DIREITO À PARIDADE VENCIMENTAL.

Para demonstrar o prejuízo sofrido por estes servidores, inicialmente, cita-se a legislação, que em nome do estado gerencial, alterou os antigos padrões de vencimentos, fazendo incluir gratificações associadas ao desempenho de determinadas atividades para algumas carreiras da administração pública federal.
A partir da adoção do modelo de Estado Gerencial, a avaliação de desempenho dos servidores públicos passou a ser regra necessária como critério de promoção, remuneração e concessão de vantagens.
A remuneração dos servidores públicos passou a ser composta por gratificações de desempenho da atividade. Elas foram criadas em inúmeras variáveis de acordo com o ramo da atividade do servidor público em causa (GDATA, GDASST, GDPST, ente outras).
Estas gratificações, concedidas de acordo com os resultados das avaliações de desempenho institucional e individual impactam diretamente a remuneração dos servidores.
A gratificação de desempenho atualmente pode representar o percentual estimado de 22% (vinte e três por centos) até 95% (noventa e cinco por cento) da remuneração total dos servidores. É dizer: a gratificação de desempenho, em alguns casos, pode representar quase a totalidade da remuneração.
Eis aí o primeiro prejuízo dos servidores públicos que irão se aposentar: eles perceberão percentuais de gratificação inferiores aos dos servidores ativos.
O quadro abaixo3 fornecido pelo Ministério do Planejamento, retrata a situação de um servidor em final de carreira, com o patamar máximo de sua remuneração:
54. SEGURIDADE SOCIAL E DO TRABALHO
Carreira da Seguridade Social e do Trabalho
Cargo: Sanitarista - Grupo-Saúde Pública integrantes dos Quadros de Pessoal dos Ministério s da Saúde, da Previdência e Assistência Social e do Trabalho e Emprego, e da Fundação Nacional da Saúde – FUNASA
Nível Superior
Posição: janeiro/2013
SERVIDORES DA ATIVA
APOSENTADOS
CLASSE
PADRÃO
VB
GESST
IF
GDASST
100 pontos
TOTAL
GDASST
30 pontos
TOTAL
Especial
III
1.890,64
206,00
1.512,51
4.189,60
8.846,15
1.571,10
5.180,25
Como se verifica pelo quadro acima, o servidor ao se aposentar, mesmo com direito à paridade, somente tem direito a 30 (trinta) pontos a título de GDASST – Gratificação de Desempenho da Atividade da Seguridade Social e do Trabalho, enquanto o servidor da ativa tem direito a 100 pontos!
O servidor paradigma acima se aposentará com um prejuízo real de 41,44% (quarenta e um inteiros e quarenta e quatro centésimos percentuais), em relação ao servidor que continua na ativa, mesmo tendo garantida a paridade.
As regras de transição previstas nas Emendas Constitucionais nº 20/1998 e 41/2003 penalizaram os servidores, a ponto do próprio constituinte derivado minimizar os danos causados, votando a emenda constitucional nº 47/2003, denominada PEC paralela, que traçou regras mais benéficas aos servidores que adentraram antes destas.
Assim, o artigo 2º da EC nº 47/05 estendeu a garantia da paridade, em toda a sua amplitude, aos servidores que ingressaram até 31/12/2003, aposentados na forma do art. 6º da EC nº 41/03.
Destaque-se também que os servidores que ingressaram até 16/12/1998 podem optar pela aposentadoria na forma do art. 6º da EC 41/03, ou de acordo com a regra geral do artigo 40 da CF. Da mesma forma, os servidores que ingressaram até 31/12/2003 podem optar pela aposentadoria na forma do art. 40 da CF.
Nesse mesmo passo, o legislador corrigiu a injustiça cometida com os servidores que se aposentaram por invalidez após da edição da EC nº 41/2003, que não tinham o direito à integralidade e a paridade.
Para corrigir tal distorção, o legislador constituinte editou a Emenda Constitucional nº 70/2012, que concedeu a integralidade e paridade para as aposentadorias por invalidez permanente dos servidores públicos da União, estados e municípios que tenham ingressado no serviço público até 31/12/2003, incluindo as pensões decorrentes dessas aposentadorias.
Todavia, mesmo tendo paridade, outras sensíveis perdas ocorreram com a reforma, como a redução de aposentadorias, ao ser instituída a taxação dos inativos; a cobrança de “pedágio anual” de 5% para aposentadorias antes dos 60 anos, se homem, e 55 anos, se mulher; e, finalmente, a política de reajuste salarial do funcionalismo, que não recompõe sequer a inflação, como será demonstrado no item seguinte.

3.2. SERVIDORES APOSENTADOS QUE NÃO TÊM DIREITO À PARIDADE.

Os servidores, que se aposentaram ou que irão se aposentar sem o direito à paridade e a integralidade, cujos proventos foram apurados pela média dos salários-de-contribuição4, têm diminuído sensivelmente seu nível de renda, porque a média, embora mais justa do ponto de vista atuarial, inclui os rendimentos de todo o período laborativo, e, na maioria dos casos, os servidores somente galgaram maiores remunerações prestes a se jubilarem.
Por sua vez, o critério de rejuste de seus benefícios, que é o mesmo adotado pelo Regime Geral de Previdência Social5, tem sido melhor que a política salarial adotada pelo governo federal (neste caso, os servidores que têm direito à paridade sofrem prejuízos).
Basta lembrar que o reajuste concedido aos servidores neste ano, de 5,2%, e que faz parte do aumento total de 15,8%, previsto para o intervalo de 2013 a 20156, é inferior ao do INPC7, cujos últimos anos, de 2010, 2011 e 2012, foram respectivamente de 6,45%, 6,07% e 6,19%.
Entretanto, os servidores aposentados nessa condição (média dos salários-de-contribuiçao), ainda assim, sofrerão prejuízo a partir da formação de sua renda mensal inicial (RMI), e também sofrerão prejuízos em relação às futuras alterações remuneratórias concedidas aos servidores da ativa, que não lhes serão estendidas, porque não detêm a prerrogativa da paridade.

3.3. SERVIDORES QUE SE APOSENTARÃO PELA PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR.

Com relação aos servidores que aderiram ou que são obrigados a se filiarem à Previdência Complementar Pública, a mensuração de seus proventos que superarem o teto do regime geral – INSS, será uma incógnita, visto que será submetida às oscilações do mercado financeiro, mas também sofrerão graves prejuízos em suas rendas, conforme demonstração abaixo.
Em primeiro lugar, o prejuízo parte da contribuição patronal; a União, autarquias e fundações públicas federais passarão a recolher, no máximo, 8,5% (oito e meio por cento) sobre a parcela de rendimentos que excederem o teto do RGPS8. Ora, se União (autarquias e fundações públicas) atualmente custeia o sistema com a alíquota de 22% (vinte e dois por cento) e o sistema é deficitário, certamente os servidores que ganham acima do teto terão suas rendas diminuídas.
A renda será sensivelmente diminuída porque o regime de previdência adotada será o Regime Financeiro de Capitalização9, e o plano de benefício será estruturado mediante a contribuição definida10.
Segue uma simulação elaborada no próprio site da FUNPRESP11:
Considerando que um servidor que exerça o cargo de sanitarista, nas condições acima, e atualmente apresente os seguintes dados:
1. idade de 50 anos e 06 meses e opte pela aposentadoria parcial através da FUNPRESP, nos moldes do § 16 do art. 40 da Constituição Federal,
2. tempo anterior de 20 anos no RGPS e 15 anos no RPPS;
3. idade estimada para aposentadoria com 65 anos e 6 meses (a partir da simulação feita em 25/11/2013, com previsão de saída em novembro/2028);
4. salário de participação de R$ 4.687,15 (diferença entre a remuneração recebida R$ 8.846,15 e o teto da Previdência para 2013, que importa em R$ 4.159,00).
Este servidor terá projetado seus proventos de aposentadoria, para uma contribuição de 8,5% sobre o salário de participação, em torno de R$ 837,46, que somados ao teto (R4.4.159,00), importará no valor total de R$4.996,4612.
Constata-se que o servidor continua a ter prejuízo de seus proventos de aposentadoria em torno 43% (quarenta e três por cento).
Segue outra estimativa do mesmo servidor exercendo o cargo de sanitarista, no site da Caixa Vida e Previdência13, mas como se ingresse hoje no sistema, com os dados abaixo:
1. Idade atual: 21 anos;
2. Tempo de investimento: 39 anos;
3. Estimativa de rentabilidade: 6%a.a;
4. Valor da contribuição: R$796,81(19,5% (8,5% patronal e 8,5% servidor)) sobre o valor de 4.687,15 (valor acima do limite do teto).
5. Valor do benefício: R$4.644,84 (renda mensal vitalícia na Previdência Complementar e R$4,159,00 (Proventos pagos pelo Governo Federal).
Nesse caso, o servidor manterá sua renda, se o mercado financeiro mantiver uma taxa de investimento de 6% a.a, resultando a renda inicial no valor de R$ 8.803,84
No entanto, como se trata de investimento em mercado de capitais, nada obsta que, ao invés de crescimento, a taxa de investimento apresente-se negativa.
Para Gushinken (2002):
O mercado, por si, só, nunca será capaz de cumprir o princípio da cobertura universal, e tampouco satisfazer plenamente as necessidades previdenciárias, principalmente da grande massa de trabalhadores , que dependem de efetiva segurança e garantia, as quais o Estado está mais apto a oferecer.
O servidor aposentado pela Previdência Complementar ficará complemente inseguro quanto à subsistência futura , pois o valor da aposentadoria somente será definida no momento que se aposentar (plano de benefícios com contribuição definida) e pelas condições de mercado então vigente, além de correr o risco da falência da entidade privada, como já ocorreu outrora como outros fundos de previdências privados (exemplo: a CAPEMI14), não sendo assistido pelo Estado.

4. DA CONCLUSÃO

Por tudo do que foi dito, não se nega a necessidade da reforma do sistema previdenciário, sob o ponto de vista da gestão fiscal.
No entanto, as prioridades estabelecidas pelo governo, dentre elas a questão do superávit, têm se revertido em contenção de despesas e aperto fiscal. Aumentos na arrecadação de tributos vêm sendo combinados com restrições nas despesas com pagamento de servidores públicos aposentados.
Com a remuneração em declínio, mesmo para os servidores ativos, os aposentados pós-reformas constitucionais sofrerão redução em face da perda de percentuais nas gratificações, ou perda em razão da aplicação da média, ou anda perdas pela ausência de reajustes anuais dos benefícios previdenciários (ou reajustes inferiores à inflação), que podem representar percentuais de até 50% (cinquenta por cento) do valor da remuneração que ostentava como servidor ativo.
A previdência complementar mostra que o servidor pode ter ganho, mas, como se submete ao mercado de capitais, tudo leva a crer que o mesmo possa ter sensivelmente reduzida a renda, acaso não se firme a previsão de crescimento dos investimentos, ou ainda de ser submetido ao risco de falência do sistema.
Por conseguinte, aquela teoria antiga em que o servidor público era Marajá (inclusive, objeto de capa de uma revista semanal famosa com o título – Funcionalismo Público – A Praga dos Marajás15), não tem mais fundamento, pelo menos para os servidores públicos a se aposentarem após a grande mudança estabelecida pelas reformas constitucionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 168p.
BRASIL. Ministério da Previdência. Social. Previdência social: Reflexões e Desafios: MPS, 2009232p (Coleção Previdência Social, Série Estudos; v. 30, I, Ed.). Disponível em: < http://www.previdenciasocial.gov.br/arquivos/office/3_100202-164641-248.pdf>.Acesso em 08 de julho de 2013.
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos; SPINK, Peter. Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
GUSHIKEN, Luiz; FERRARI, Augusto Tadeu; FREITAS, Wanderley José de; GOMES, José Valdir; Oliveira; Raul Miguel de Freitas. Regime próprio dos servidores: como implementar? Uma visão prática e teórica. Brasília: MPAS, 2002. 357 p. : Il. 9 (Coleção Previdência Social, Série Estudos, v. 17).
Internet. Disponível em <http://www.previdencia.gov.br/noticias/serie-anuario-estatistico-regimes-proprios-cobrem-20-milhoes-de-pessoas/>. Acesso em 23 de novembro de 2013.
MEDINA, Damares. O Fundo de Pensão dos Servidores Públicos Federais (FUNPRESP). Análise do Projeto de Lei nº 1.992/2007. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1617, 5 dez. 2007 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10727>. Acesso em: 25 nov. 2013.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 30ª Ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
Pureza. Maria Emília Miranda. Previdência Complementar e déficit do Regime Previdenciáriodo Servidor Público – Uma Abordagem Orçamentária e Financeira. Cadernos Aslegis, n. 43, p. 58-84. Maio/ago/2011. Disponível em:<http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/11594/previdencia_complementar_pureza.pdf?sequence=1>. Acesso em 25 de novembro de 2013.
SILVA, Alexandre Pereira da. Nova Previdência do servidor público federal. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3523, 22 fev. 2013 . Disponível em: . Acesso em: 26 nov. 2013.
TAVARES, Marcelo Leonardo; Ibrahim, Fabio Zambitte; Vieira, Marcos André Ramos. Comentários à Reforma da Previdência (EC n} 41/2003). Rio de Janeiro: Impetus, 2004.
VASCONCELOS, Felipe Torres. Aspectos polêmicos da Lei de previdência complementar dos servidores públicos federais . Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3732, 19 set. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25319>. Acesso em: 26 nov. 2013.

Notas

1 Lei 10887/2004. Art. 6º Os aposentados e os pensionistas de qualquer dos Poderes da União, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo desses benefícios na data de publicação da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, contribuirão com 11% (onze por cento), incidentes sobre a parcela dos proventos de aposentadorias e pensões que supere 60% (sessenta por cento) do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social. (Vide Emenda Constitucional nº 47, de 2005)
2 Lei nº 10.887/2004. Artigo 8º: A contribuição da União, de suas autarquias e fundações para o custeio do regime de previdência, de que trata o art. 40 da Constituição Federal, será o dobro da contribuição do servidor ativo, devendo o produto de sua arrecadação ser contabilizado em conta específica.
3 DESIN/SEGEP/MP - Tabela de Remuneração dos Servidores Públicos Federais Nº 61
4 Lei 10.887/2004, artigo 1º: No cálculo dos proventos de aposentadoria dos servidores titulares de cargo efetivo de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, previsto no § 3º do art. 40 da Constituição Federal e no art. 2º da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, será considerada a média aritmética simples das maiores remunerações, utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência a que esteve vinculado, correspondentes a 80% (oitenta por cento) de todo o período contributivo desde a competência julho de 1994 ou desde a do início da contribuição, se posterior àquela competência.
5 Lei 10.887/2004, artigo 15: Art. 15.  Os proventos de aposentadoria e as pensões de que tratam os arts. 1o e 2o desta Lei serão reajustados, a partir de janeiro de 2008, na mesma data e índice em que se der o reajuste dos benefícios do regime geral de previdência social, ressalvados os beneficiados pela garantia de paridade de revisão de proventos de aposentadoria e pensões de acordo com a legislação vigente. (Redação dada pela Lei nº 11.784, de 2008)   (Vide ADIN nº 4.582, de 2011)
6 Lei 12.808/2013
7 INPC – Índice Nacional de Preço ao Consumidor, utilizado para reajustar os benefícios do Regime Geral de Previdência Social – RGPS.
8 Lei 12.618/2012 §3º, art. 12: A alíquota da contribuição do patrocinador será igual à do participante, observado o disposto no regulamento do plano de benefícios, e não poderá exceder o percentual de 8,5% (oito inteiros e cinco décimos por cento).
9 Lei Complementar nº 109/200, §1º, artigo 18: O regime financeiro de capitalização é obrigatório para os benefícios de pagamento em prestações que sejam programadas e continuadas.
10 Lei 12.618/201, art. 12.  Os planos de benefícios da Funpresp-Exe, da Funpresp-Leg e da Funpresp-Jud serão estruturados na modalidade de contribuição definida (...).
11 https://www8.dataprev.gov.br/simuladorfunprespexe/publico/jsf/simuladorPublico.xhtml
12 Esse valor pode não estar correto, visto que o sistema não informa se foi calculado o benefício especial, conforme faculta o artigo 3º, inciso II c/c §+1º e 2º, da Lei 12.618/2012.
13http://www.caixavidaeprevidencia.com.br/portal/site/LojaOnline/menuitem.35a501cfd84cd0a884f941b7661010a0/?vgnextoid=478a85045968f310VgnVCM1000006601010aRCRD
14 Caixa de Pecúlio dos Militares – Capemi
15 Revista Veja. Ed.988. 12 Agosto 1987 .Editora Abril

Autor



Leia mais: http://jus.com.br/artigos/28592/regime-proprio-de-previdencia-dos-servidores-publicos-emendas-constitucionais-n-20-98-41-2003-47-2005-e-70-2012#ixzz3REbk72xe



Decisão garante paridade e integralidade aos militares que ingressaram antes da EC 20 e 43 da previdência

9 de Fevereiro de 2015, 6:28, por Desconhecido

DECISÃO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PREVIDENCIÁRIO. SERVIDORES PÚBLICOS ESTADUAIS. REAJUSTE DE BENEFÍCIOS. PARIDADE. 1. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 40, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA AFASTADA. 2. APOSENTADORIA APÓS A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 43/2001: DIREITO À PARIDADE REMUNERATÓRIA E À INTEGRALIDADE, NOS TERMOS DAS REGRAS DE TRANSIÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 47/2005. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARCIALMENTE PROVIDO.

Relatório

1. Recurso extraordinário interposto com base no art. 102, inc. III, alínea a, da Constituição da República contra o seguinte julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

REAJUSTAMENTO DOS BENEFÍCIOS - PRESERVAÇÃO, EM CARÁTER PERMANENTE, DO VALOR REAL - NECESSIDADE DE LEI REGULAMENTADORA. PARIDADE ENTRE ATIVOS E INATIVOS - § 8º DO ART. 40 DA CR/88 - OBRIGATORIEDADE NÃO PREVISTA APÓS A EC 41/2003. - O § 8º do art. 40 da Constituição da República, com a reforma dada pela Emenda Constitucional 41/2003, passou a assegurar o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios estabelecidos em lei, sendo assim necessário, pela clara dicção do texto, a edição de lei regulamentadora dos critérios, para implementação. Por outro lado, deixou de dispor o mesmo parágrafo sobre a isonomia/paridade entre ativos e inativos” (fl. 135 – grifos nossos).

Consta do voto condutor do julgado recorrido:

Desta forma, como se vê, aboliu a Lei Suprema a paridade existente entre servidores ativos e inativos, não tendo, assim, aqueles que se aposentarem a partir da entrada em vigor da citada emenda [EC 41/2003], direito ao reconhecimento da paridade, como pretende o ora apelante.
Ademais, não há que se falar em inconstitucionalidade da reforma, visto ter sido a mesma feita pelo poder constituinte derivado dentro dos limites autorizadores de sua atuação, sem ofensa à clausula pétrea, em estrita obediência aos ditames legais e constitucionais.
No tocante ao pedido de revisão dos proventos de aposentadoria na mesma data e índice em que se der o reajuste dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, verifico que, de acordo com a redação constitucional retro mencionada, é necessário para estabelecimento do mesmo a edição de lei ordinária regulamentadora dos critérios, o que não existe até então, ficando assim, impossibilitado o reajuste pleiteado.
Não há que se falar em utilização da Lei Estadual 15.955/2005, que determina o reajuste anual dos servidores inativos sujeitos ao regime do INSS, por se tratar de regimes jurídicos diferentes.
Por fim, caso o Judiciário implemente a desejada majoração pretendida pelo apelante, estará entrando dentro do âmbito de atuação discricionária do Executivo, em clara ingerência administrativa” (fls. 138-139).

2. O Recorrente alega que o Tribunal a quo teria contrariado o art. 40, § 8º, da Constituição da República.

Afirma que a Emenda Constitucional n. 41/2003 “quebrou a chamada paridade, ao assegurar aos inativos a revisão dos seus benefícios, mas não de forma vinculada à revisão geral e anual dos servidores da ativa” (fl. 155).

E, ainda, que “o Estado de Minas Gerais, reajustando a remuneração dos servidores do Tribunal de Justiça, alterou, por meio da Lei n. 15.955 de 28.12.2005, o valor do padrão de vencimento PJ-01 da Tabela de Escalonamento vertical estabelecido pela Lei n. 13.467/2000, de R$ 443,70 para 628,52. Esse aumento não foi estendido aos servidores inativos que obtiveram o benefício da aposentadoria posteriormente à Emenda Constitucional n. 41/2003, os quais não tiveram seus proventos reajustados nos anos de 2005 e 2006” (fl. 156).

Sustenta, também, a inconstitucionalidade do art. 40, § 3º (com alteração da Emenda Constitucional n. 41/2003), da Constituição, ao argumento de que, “quando das modificações dos critérios de aposentadoria do regime especial, sempre foram estabelecidas regras de transição, o que não ocorreu na hipótese dos servidores que se aposentaram por invalidez ou pela aposentadoria compulsória, os quais perderam a paridade, sem qualquer alternativa de transição” (fl. 158).

Requer o provimento do recurso extraordinário e a reforma do acórdão recorrido, para reconhecer o “direito dos servidores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, aposentados após a entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 41/2003, à revisão do valor dos seus proventos, declarando-se, via controle difuso, a inconstitucionalidade da quebra de paridade entre os servidores ativos e os inativos e pensionistas, mantendo o direito destes últimos de terem seus proventos revistos no mesmo índice e data que os servidores ativos, declarando o direito ao reajuste determinado pela Lei n. 15.955/2005, bem como os reajustes de servidores efetivos a serem determinados por leis posteriores” (fl. 162).

Pede, sucessivamente, que, “em caso de Vossa Excelência não conceber o reajuste nos moldes da Lei n. 15.955/2005, os proventos sejam reajustados conforme os reajustes promovidos pelo regime geral da previdência social, até a vigência de lei que determine o reajuste próprio”, ou, ainda, que “o Estado de Minas Gerais seja condenado a indenizar os servidores efetivos aposentados que não tiveram revistos seus proventos” (fls. 161-162).

Apreciada a matéria trazida na espécie, DECIDO.

3. Razão jurídica assiste em parte ao Recorrente.

4. Inicialmente, por se tratar de questão prejudicial ao exame do mérito, afasta-se a alegação de inconstitucionalidade do art. 40, § 3º (com alteração da Emenda Constitucional n. 41/2003), da Constituição, pois, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.104, de minha relatoria, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que em questões previdenciárias aplicam-se as normas vigentes ao tempo da reunião dos requisitos de passagem para a inatividade.

Confira-se, a propósito, a ementa desse julgado:

CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. ART. 2º E EXPRESSÃO '8º' DO ART. 10, AMBOS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 41/2003. APOSENTADORIA. TEMPUS REGIT ACTUM.REGIME JURÍDICO. DIREITO ADQUIRIDO: NÃO-OCORRÊNCIA. 1. A aposentadoria é direito constitucional que se adquire e se introduz no patrimônio jurídico do interessado no momento de sua formalização pela entidade competente. 2. Em questões previdenciárias, aplicam-se as normas vigentes ao tempo da reunião dos requisitos de passagem para a inatividade. (...) 4. Os servidores públicos, que não tinham completado os requisitos para a aposentadoria quando do advento das novas normas constitucionais, passaram a ser regidos pelo regime previdenciário estatuído na Emenda Constitucional n. 41/2003, posteriormente alterada pela Emenda Constitucional n. 47/2005” (ADI 3.104, de minha relatoria, Tribunal Pleno, DJe 9.11.2007 – grifos nossos).

Naquela oportunidade, ficou consignado em meu voto que:

 “as normas que cuidam das situações transitórias dos servidores públicos vigoram para aqueles que se inserem nas situações nelas descritas, sendo regras de exceção, as quais impõem interpretação e aplicação restritivas, na forma da melhor doutrina e assentada jurisprudência.
Não há óbice, nem vislumbro desobediência do constituinte reformador ao alterar os critérios que ensejam o direito à aposentadoria por meio de nova elaboração constitucional ou de fazê-las aplicar àqueles que ainda não atenderam aos requisitos firmados pela norma constitucional. Os critérios e requisitos para a aquisição do direito à aposentadoria não se petrificam para os que, estando no serviço público a cumprir, no curso de suas atribuições, os critérios de tempo, contribuição, exercício das atividades, dentre outros, ainda não os tenham aperfeiçoado, de modo a que não pudesse haver mudança alguma nas regras jurídicas para os que ainda não titularizam o direito à sua aposentadoria.
Diferente é o direito genérico à aposentadoria, como um dos direitos sociais, e o direito à sua aposentadoria, esse aperfeiçoado quando completados todos os itens legalmente estatuídos para fazer nascer o direito e a capacidade de exercê-lo a partir daí” (grifos nossos).

5. Quanto ao alegado direito à paridade dos inativos, na espécie vertente o Tribunal a quoassentou que “aboliu a Lei Suprema a paridade existente entre servidores ativos e inativos, não tendo, assim, aqueles que se aposentarem a partir da entrada em vigor da citada emenda [EC 41/2003], direito ao reconhecimento da paridade, como pretende o ora apelante”.

O Recorrente assevera que “ajuizou ação ordinária para ver assegurado o direito dos servidores do Poder Judiciário que se aposentaram depois da Emenda Constitucional n. 41/2003” (fl. 151).

No julgamento do Recurso Extraordinário 590.260, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, o Plenário do Supremo Tribunal reconheceu a repercussão geral da questão constitucional objeto deste recurso e, no mérito, também decidiu que “os servidores que ingressaram no serviço público antes da EC 41/2003, mas que se aposentaram após a referida emenda, possuem direito à paridade remuneratória e à integralidade no cálculo de seus proventos, desde que observadas as regras de transição especificadas nos arts. 2º e 3º da EC 47/2005” (DJe 23.10.2009).

Consta do voto do Relator:

Quanto à situação dos servidores que ingressaram no serviço público antes da EC 41/2003, mas que se aposentaram após a sua edição, é preciso observar a incidência das regras de transição estabelecidas pela EC 47/2005. Esta Emenda complementou a reforma previdenciária com efeitos retroativos à data de vigência da EC 41/2003 (art. 6º da EC 47/2005).
Nesses casos, duas situações ensejam o direito à paridade e à integralidade de vencimentos: [i] servidores que ingressaram, de modo geral, antes da EC 41/2003, e [ii] servidores que ingressaram antes da EC 20/1998.
Na primeira hipótese, o art. 2º da EC 47/2005, ao estabelecer que se aplica ‘aos proventos de aposentadorias dos servidores públicos que se aposentarem na forma do caput do art. 6º da EC n. 41, de 2003, o disposto no art. 7º da mesma Emenda’, garantiu a integralidade e a paridade aos servidores que ingressaram no serviço público até a publicação da EC 41/2003, desde que observados, cumulativamente, os seguintes requisitos: [i] sessenta anos de idade, se homem, e cinquenta e cinco anos de idade, se mulher, [ii] trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher, [iii] vinte anos de efetivo exercício no serviço público, e [iv] dez anos de carreira e cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se der a aposentadoria.
(...)
Assim, bem examinada a questão, entendo que o recurso extraordinário merece parcial provimento, uma vez que o arresto recorrido não observou as regras inseridas pela EC 47/2005. É que aqueles que ingressaram no serviço público antes da publicação das Emendas Constitucionais 20/1998 e 41/2003 e se aposentaram após a EC 41/2003 possuem o direito à paridade e à integralidade remuneratória, observados os requisitos estabelecidos nos arts. 2º e 3º da EC 47/2005 e respeitado o direito de opção pelo regime transitório ou pelo novo regime”.

Dessa orientação divergiu o acórdão recorrido.

6. Pelo exposto, dou parcial provimento ao recurso extraordinário (art. 557, § 1º-A, do Código de Processo Civil e art. 21, § 2º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal), para cassar o acórdão recorrido e determinar que o Tribunal de origem julgue a apelação interposta pelo Recorrente nos termos assentados pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, com a devida observância das regras de transição postas na Emenda Constitucional n. 47/2005.

Publique-se.

Brasília, 14 de abril de 2010.


Ministra CÁRMEN LÚCIA
Relatora





Sistema processual brasileiro pouco se preocupa com as causas

9 de Fevereiro de 2015, 4:46, por Desconhecido

ENXUGANDO GELO



A prevenção quase sempre é a melhor opção na vida uma vez que esperar que um dano ocorra para dimensioná-lo costumeiramente é mais dispendioso e complicado.
Percebam que esta obviedade já foi “descoberta” até por alguns planos de saúde que vêm criando programas de monitoramento domiciliar, em perspectiva preventiva, para diminuir seus próprios gastos com a cura de doenças que já eclodiram.
E o leitor deve estar se indagando, qual a pertinência destas assertivas para o sistema processual em época de novo CPC...
Pontue-se que a cada dia se torna mais comum (e repetitivo) o argumento de que temos processos demais[1] e uma taxa de congestionamento das maiores do mundo[2], no entanto e estranhamente as soluções apresentadas para dimensionar esta situação insistem em ser tão somente legislativas, de gestão e de organização do poder judiciário.
Ou seja, ainda não percebemos que o sistema processual brasileiro trabalha unicamente com as consequências e em pouco se preocupa com as causas.
As demandas aumentam ano a ano em decorrência do descumprimento de direitos e pouco se fala e se preocupa com os mecanismos de fiscalidade.
Se já sabemos que o Poder Público e os bancos [3] são os maiores litigantes brasileiros seria mais que imperativo ampliar-se os órgãos e instrumentos de sua fiscalização.  As agências reguladoras deveriam ser reestruturadas e, em especial, os diálogos institucionais entre os poderes constituídos deveriam ser fomentados e aprimorados. Na verdade tanto uns como outros acabam por transferir para o Judiciário questões de relacionamento com os cidadãos ou os clientes (respectivamente), se desonerando do custo de manutenção de serviços de atendimento, e, logo, onerando o Judiciário.
Paradoxalmente, o mais recorrente são os não-diálogos ou pseudo-diálogos entre os atores envolvidos na litigiosidade brasileira; se preocupando mais com o litígio após sua eclosão do que se buscando a resolução preventiva, que seria certamente mais barata e, substancialmente, melhor para o cidadão.
Tudo é judicializado e pouco se pensa em como solucionar os gatilhos da litigiosidade.
Há se rememorar o que já dissemos em outra oportunidade, em ótima companhia: "o deslocamento das questões políticas e de efetivação dos direitos sociais no Poder Judiciário não pode olvidar da percepção do último grande legislador processual do século XX, Lord Woolf, que na monumental reforma inglesa de 1998, afirmou que um enorme numerário financeiro era usado pelo sistema judicial para resolução de um contencioso decorrente do não cumprimento de direitos fundamentais sociais e que seria melhor direcionar esses valores no gasto e asseguramento de políticas públicas de saúde, habitação (na situação inglesa) e aos quais se poderia agregar, no Brasil, a inúmeros outros direitos fundamentais não assegurados minimamente a nossos cidadãos; geradores de milhões de ações em nosso sistema judiciário". [4]
Sei e já confessei que o aqui falado é óbvio. Mas me parece que suplantada e etapa legislativa de criação e aprovação de um novo código (capítulo altamente relevante, mas ineficaz sozinho para o dimensionamento da situação que nos encontramos) é hora de se promover uma abordagem profunda dos problemas das litigiosidades no Brasil. Sem isto, continuaremos a enxugar um enorme cubo de gelo com guardanapos.
Como em tudo na vida é hora de se levar a sério a prevenção, agora  de litígios, sem que com isto se restrinja o acesso à justiça. Tratar das causas, assegurando direitos e melhorando os diálogos institucionais e a fiscalidade mediante o devido processo constitucional, e não impedindo o auferimento dos direitos. Criar órgãos internos de relacionamento com as pessoas envolvidas, de forma a solucionar consensualmente os problemas, evitando que todos venham a ser geridos pelo Judiciário, o que vem se tornando insustentável. Que sejamos responsáveis.

[1] Quase 100 milhões.
[2] De cada 10 novas demandas ajuizadas na justiça comum, sete não são julgadas no mesmo ano de ajuizamento. Esta situação já antiga: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/15587-taxa-de-congestionamento-fica-em-70
[3] Segundo pesquisa do próprio CJJ: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf
[4] THEODORO JUNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama de aplicação no direito brasileiro - Análise da convergência entre o civil Law e o common Law e dos problemas da padronização decisória. Revista de Processo. RePro 189, ano 35, novembro 2010. Revista dos Tribunais. p.16.
Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

Revista Consultor Jurídico



Abuso de álcool não se confunde com alcoolismo, diz TRT-3

9 de Fevereiro de 2015, 4:43, por Desconhecido

JUSTA CAUSA


Abuso de álcool não se confunde com alcoolismo. Com esse entendimento, a juíza Luciana de Carvalho Rodrigues, em exercício na 46ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, manteve a demissão por justa de causa de um ex-empregado dos Correios. Na avaliação dela, o funcionário estava apto para o trabalho e com plena capacidade mental na época dos atos que motivaram a dispensa.
O trabalhador procurou a Justiça para requerer a reversão da demissão por justa causa, sob o argumento de que, na ocasião, estava com problemas relacionados ao alcoolismo e não tinha condições mentais de responder por seus atos. Muito menos de se defender no processo administrativo instaurado pelos Correios para a averiguação da justa causa.
De acordo com a juíza, a empresa observou os requisitos legais para a aplicação da pena máxima. E o trabalhador não comprovou ser alcoólatra. Ela baseou sua decisão em perícia médica, que constatou que o reclamante não apresentou transtorno mental relacionado ao trabalho. Tampouco que alterasse sua capacidade de acompanhar o processo administrativo e de entendimento em relação às faltas que teria cometido.
Com relação ao alegado alcoolismo e as suas consequências nas atitudes e comportamento dele, o perito não encontrou nenhum indicativo inequívoco do vício, como, por exemplo, algum relato ou registro compatível com síndrome de abstinência (que caracteriza dependência).
Segundo o laudo, “não se confunde abuso de álcool com alcoolismo, mas há, com frequência, abuso de álcool sem alcoolismo. Na época da suposta infração administrativa, o reclamante trabalhava normalmente. E, apesar de ter registrado que fazia uso de bebidas alcoólicas todos os dias, não houve critérios para diagnóstico de alcoolismo. No mesmo dia em que o reclamante anotou este fato, ele foi considerado normalmente apto para o trabalho e continuou trabalhando”.
A juíza também constatou que o trabalhador tinha longo histórico de advertências e suspensões, mesmo depois da instauração do processo administrativo, quando agrediu verbalmente alguns colegas de trabalho. Ela verificou que foi observada a gradação das penas e sempre foi dada ao empregado a oportunidade de se manifestar antes da demissão.
Por esse motivo, Luciana julgou improcedente os pedidos de nulidade da rescisão contratual e de reintegração ao emprego, bem como o de indenização por danos morais. Cabe recurso. Com informações da assessoria de imprensa do TRT-3.
Revista Consultor Jurídico



Crise de identidade da "ordem pública" como fundamento da prisão preventiva

9 de Fevereiro de 2015, 4:41, por Desconhecido

LIMITE PENAL



Certamente o fundamento mais invocado pelos juízes brasileiros para afirmar a existência de “periculum libertatis” e decretar prisão preventiva é a ‘garantia da ordem pública’, que sozinha ou conjugada com outro fundamento, encanta os julgadores. Mas afinal, o que é a tal garantia da ordem pública?

É recorrente a definição de risco para ordem pública como sinônimo de “clamor público”, de crime que gera um abalo social, uma comoção na comunidade, que perturba a sua “tranquilidade”. Alguns, fazendo uma confusão de conceitos ainda mais grosseira, invocam a “gravidade” ou “brutalidade” do delito como fundamento da prisão preventiva. Também há quem recorra à “credibilidade das instituições” como fundamento legitimante da segregação, no sentido de que se não houver a prisão, o sistema de administração de justiça perderá credibilidade. A prisão seria um antídoto para a omissão do Poder Judiciário, Polícia e Ministério Público. É prender para reafirmar a “crença” no aparelho estatal repressor. No fundo, a garantia da ordem pública está em eterna crise de identidade.
Mas a quem interessa isso? Por que na reforma levada a cabo em 2011 (Lei 12.403), ao cair das cortinas, ressuscitaram o artigo 312 com a redação original de 1941, quando no projeto a proposta era completamente diferente, com o abandono da ‘ordem pública’ do rol de fundamentos? Porque isso é conveniente para a manutenção e ampliação dos poderes discricionários do julgador, no viés punitivista, é claro, através de uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado.
Mas é preciso que se tenha consciência de que a prisão preventiva para garantia da ordem pública nada tem a ver com os fins puramente cautelares e processuais que marcam e legitimam esses provimentos. Trata-se[1] de um conceito vago, impreciso, indeterminado e despido de qualquer referencial semântico. Sua origem remonta a Alemanha na década de 30, período em que o nazifascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão “bem” sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e indeterminadas do Direito para fazer valer seus atos prepotentes.
O Direito (especialmente o Penal) agindo em “nome do pai” e por mandato, explica Morais da Rosa,[2] opera na subjetividade humana, ditando a “lei” como capaz de manter o laço social e ainda faz a utilitária promessa de “felicidade”. A “palavra”, nesse contexto, ganha um contorno transcendente, o qual é preenchido na cadeia de significância (e durante a história) por diversos significantes, dentre eles o divino, a razão, a força, o Direito (dos homens), todos vendidos como neutros e capazes de designar uma ordem reguladora de condutas baseadas em interditos, legitimando o uso da força para adequação do laço social. O problema é que, ainda com o autor, ao se remeter para um lugar idealizado de referência, indicado na origem por uma palavra, “configuram as máscaras inscritas no imaginário social que permitem o poder de seguir”.
O artigo 312 contém uma “anemia semântica”, define Morais da Rosa,[3]pois basta um pouco de conhecimento de estrutura linguística para construir artificialmente esses requisitos, cuja “falsificação” é inverificável. O grande problema é que, uma vez decretada a prisão, os argumentos “falsificados” pela construção linguística são inverificáveis e, portanto, irrefutáveis. Se alguém é preso porque o juiz aponta a existência de risco de fuga, uma vez efetivada a medida, desaparece o (pseudo)risco, sendo impossível refutar, pois o argumento construído (ou falsificado) desaparece. Para além disso, o preenchimento semântico (dos requisitos) é completamente retórico.
O “clamor público”, tão usado para fundamentar a prisão preventiva, acaba se confundindo com a opinião pública, ou melhor, com a opinião “publicada”. Há que se atentar para uma interessante manobra feita rotineiramente: explora­se, midiaticamente, um determinado fato (uma das muitas “operações” com nomes sedutores, o que não deixa de ser uma interessante manobra de marketing policial), muitas vezes com proposital vazamento de informações, gravações telefônicas e outras provas colhidas, para colocar o fato na pauta pública de discussão (a conhecida teoria do agendamento).
Explorado midiaticamente, o pedido de prisão vem na continuação, sob o argumento da necessidade de tutela da ordem pública, pois existe um “clamor social” diante dos fatos...
Ou seja, constrói-se midiaticamente o pressuposto da posterior prisão cautelar. Na verdade, a situação fática apontada nunca existiu; trata­se de argumento forjado.
Como aponta Sanguiné[4], “quando se argumenta com razões de exemplaridade, de eficácia da prisão preventiva na luta contra a delinquência e para restabelecer o sentimento de confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico, aplacar o clamor público criado pelo delito etc. que evidentemente nada tem a ver com os fins puramente cautelares e processuais que oficialmente se atribuem à instituição, na realidade, se introduzem elementos estranhos à natureza cautelar e processual que oficialmente se atribuem à instituição, questionáveis tanto desde o ponto de vista jurídico­constitucional como da perspectiva político­criminal. Isso revela que a prisão preventiva cumpre funções reais (preventivas gerais e especiais) de pena antecipada incompatíveis com sua natureza”.
Assume contornos de verdadeira pena antecipada, violando o devido processo legal e a presunção de inocência. Sanguiné explica que a prisão preventiva para garantia da ordem pública (ou, ainda, o clamor público) acaba sendo utilizada com uma função de “prevenção geral, na medida em que o legislador pretende contribuir à segurança da sociedade, porém deste modo se está desvirtuando por completo o verdadeiro sentido e natureza da prisão provisória ao atribuir­lhe funções de prevenção que de nenhuma maneira está chamada a cumprir”.
As funções de prevenção geral e especial e retribuição são exclusivas de uma pena, que supõe um processo judicial válido e uma sentença transitada em julgado. Jamais tais funções podem ser buscadas na via cautelar.
No mesmo sentido, Delmanto Junior[5] afirma que é indisfarçável que nesses casos “a prisão preventiva se distancia de seu caráter instrumental — de tutela do bom andamento do processo e da eficácia de seu resultado — ínsito a toda e qualquer medida cautelar, servindo de inaceitável instrumento de justiça sumária”.
Em outros casos, a prisão para garantia da ordem pública atende a uma dupla natureza: pena antecipada e medida de segurança, já que pretende isolar um sujeito supostamente perigoso. É inconstitucional atribuir à prisão cautelar a função de controlar o alarma social, e, por mais respeitáveis que sejam os sentimentos de vingança, nem a prisão preventiva pode servir como pena antecipada e fins de prevenção, nem o Estado, enquanto reserva ética, pode assumir esse papel vingativo. Também a ordem pública, ao ser confundida com o tal “clamor público”, corre o risco da manipulação pelos meios de comunicação de massas, fazendo com que a dita opinião pública não passe de mera opinião publicada, com evidentes prejuízos para todos.
Obviamente que a prisão preventiva para garantia da ordem pública não é cautelar, pois não tutela o processo, sendo, portanto, flagrantemente inconstitucional, até porque, nessa matéria, é imprescindível a estrita observância ao princípio da legalidade e da taxatividade. Considerando a natureza dos direitos limitados (liberdade e presunção de inocência), é absolutamente inadmissível uma interpretação extensiva (in malan partem) que amplie o conceito de cautelar até o ponto de transformá­la em medida de segurança pública.
Pior é quando vem travestida de “restabelecimento da credibilidade das instituições”. É uma falácia. Nem as instituições são tão frágeis a ponto de se verem ameaçadas por um delito, nem a prisão é um instrumento apto para esse fim, em caso de eventual necessidade de proteção. Para além disso, trata­se de uma função metaprocessual incompatível com a natureza cautelar da medida.  Noutra dimensão, é preocupante – sob o ponto de vista das conquistas democráticas obtidas – que a crença nas instituições jurídicas dependa da prisão de pessoas. Quando os poderes públicos precisam lançar mão da prisão para legitimar­se, a doença é grave, e anuncia um grave retrocesso para o estado policialesco e autoritário, incompatível com o nível de civilidade alcançado.
No mais das vezes, esse discurso é sintoma de que estamos diante de um juiz “comprometido com a verdade”, ou seja, alguém que, julgando­‑se do bem (e não se discutem as boas intenções), emprega uma cruzada contra os hereges, abandonando o que há de mais digno na magistratura, que é o papel de garantidor dos direitos fundamentais do imputado. Como muito bem destacou o ministro Eros Grau,[6] “o combate à criminalidade é missão típica e privativa da Administração (não do Judiciário), seja através da polícia, como se lê nos incisos do artigo 144 da Constituição, quanto do Ministério Público, a quem compete, privativamente, promover a ação penal pública (artigo 129, I)” (grifo nosso).
No que tange à prisão preventiva em nome da ordem pública sob o argumento de risco de reiteração de delitos, está se atendendo não ao processo penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo penal. Além de ser um diagnóstico absolutamente impossível de ser feito (salvo para os casos de vidência e bola de cristal), é flagrantemente inconstitucional, pois a única presunção que a Constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em relação a fatos futuros.
A prisão para garantia da ordem pública sob o argumento de “perigo de reiteração” bem reflete o anseio mítico por um direito penal do futuro, que nos proteja do que pode (ou não) vir a ocorrer. Nem o direito penal, menos ainda o processo, está legitimado à pseudotutela do futuro (que é aberto, indeterminado, imprevisível). Além de inexistir um periculosômetro (tomando emprestada a expressão de Zaffaroni), é um argumento inquisitório, pois irrefutável. Como provar que amanhã, se permanecer solto, não cometerei um crime? Uma prova impossível de ser feita, tão impossível como a afirmação de que amanhã eu o praticarei. Trata­se de recusar o papel de juízes videntes, pois ainda não equiparam os foros brasileiros com bolas de cristal...
Quando se tutelam situações de perigo cujo objeto não é a prova ou a efetividade do processo (risco de fuga), como sucede na tutela da ordem pública e econômica, a prisão cautelar se converte em medida de segurança. Como define Cordero,[7] “é uma metamorfose pouco feliz, pois a proteção dos interesses coletivos exige remédios ad hoc; os híbridos custam mais do que produzem”.
Em suma, a prisão para garantia da ordem pública possui um defeito genético: não é cautelar. Portanto, substancialmente inconstitucional, embora vedete do processo penal brasileiro.

[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 12ª Edição, Saraiva, São Paulo, 2015.
[2] Idem, ibidem, p. 139.
[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006. p. 26.
[4] SANGUINÉ, Odone. A Inconstitucionalidade do Clamor Público como Fundamento da Prisão Preventiva. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre, Nota Dez, n. 10, p. 114.
[5] DELMANTO JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, p. 183.
[6] Trecho extraído do voto proferido pelo Min. EROS GRAU no HC 95.009­‑4/SP, p. 35.
[7] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, v. 1, p. 405. 
Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.

Revista Consultor Jurídico



TJ-RS confirma condenação de advogado que imputou falso crime a policial

9 de Fevereiro de 2015, 4:39, por Desconhecido

DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA



Imputar falso crime de abuso de autoridade, movimentando as máquinas administrativas e judiciárias do estado para apurar fato inexistente, é incorrer no crime de denunciação caluniosa, previsto no artigo 339, caput, do Código Penal. Por isso, a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou Apelação a um advogado do interior, condenado a dois anos de reclusão por ter dado causa a processos administrativos e Ação Penal contra um policial militar, sabendo que não havia crime de abuso a apurar. A pena privativa de liberdade foi substituída por restritivas de direito.
A juíza Ana Paula Nichel Santos, da Vara Judicial da Comarca de Jaguari, concluiu que o réu — que foi denunciado pelo Ministério Público — tinha plena consciência de sua conduta. Embora a discussão entre ambos encerre uma questão de interpretação dos fatos, destacou a juíza, não é possível ignorar que a ação criminal intentada contra o policial não resultou em nada — pela absoluta inexistência do fato imputado.
‘‘Se o réu cometeu erro de interpretação sobre os fatos ocorridos e sentiu-se humilhado pela conduta do policial, esta é uma questão pessoal e individual dele, eis que restou comprovado ter inexistido o noticiado abuso de autoridade’’, escreveu na sentença. A sessão que lavrou o acórdão, com entendimento unânime, ocorreu no dia 29 de janeiro.
O caso
Na noite de 29 de maio de 2010, o advogado Jorge Ferret Fagundes pediu a presença da Brigada Militar num bar em frente à Estação Rodoviária de Jaguari, onde se encontrava um sujeito que o estaria ameaçando e pediu que o prendessem. Visivelmente nervoso, num tom de voz muito alto, reiterou várias vezes o pedido aos policiais, alegando que era ‘‘advogado e professor’’.

O policial-militar Alvarino Amarante interveio, pedindo que se acalmasse. Disse que não precisava de orientação para fazer o seu trabalho e que este se colocasse no seu papel de vítima, para permitir a lavratura do ‘‘Termo Circunstanciado’’.  Ante a insistência do advogado, o policial disparou a seguinte frase: ‘‘O que tu tá pensando, só porque tu é advogado, tu pensa que é o quê, sai daqui que nós vamos tomar as providências necessárias”.
Fagundes não gostou desta interpelação e passou a perseguir o policial. Com base nos fatos registrados neste episódio, entrou com Ação Criminal por abuso de autoridade. O juízo local, em sentença absolutória, julgou improcedente a ação, pela ‘‘inexistência do fato criminoso’’.
Não contente, o advogado solicitou a adoção de medidas administrativas contra o PM ao Comando da Brigada Militar em Santiago e da Região do Vale do Jaguari. A mesma petição, com a narrativa dos fatos, foi encaminhada à Secretaria de Segurança Pública, à Ordem dos Advogados do Brasil (seccional de Santiago) e ao Ministério Público estadual, que ofereceu a denúncia criminal por abuso de autoridade.
Em face desta conduta,  MP local denunciou o advogado pelo crime de denunciação caluniosa, tipificado no artigo 339, caput, do Código Penal — que diz: ‘‘Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente’’.
A defesa do acusado sustentou que o fato narrado na denúncia não configura o crime de denunciação caluniosa, pois este pressupõe imputação de fato definido como crime, sabedor de sua inocência. A defesa alegou que o fato cuja prática o réu acusou o policial não é penalmente típico, pois as palavras atribuídas a este, mesmo que qualificadas como abuso de autoridade pelo acusado, não caracterizam o delito previsto na Lei 4.898/65.
Clique aqui para ler a sentença.
Clique aqui para ler o acórdão.
Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.

Revista Consultor Jurídico



Aposentadoria não pode ser cassada por condenação em Ação Penal

9 de Fevereiro de 2015, 4:35, por Desconhecido

ROL TAXATIVO



O aposentado condenado em Ação Penal não pode ter sua aposentadoria cassada com fundamento no artigo 92, inciso I, do Código Penal, mesmo que a sua aposentadoria tenha ocorrido no curso da ação. Seguindo este entendimento, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reformou decisão do Tribunal de Justiça de São de Paulo que havia determinado a cassação da aposentadoria de um delegado de Polícia Civil.
Denunciado pelo Ministério Público, o delegado foi condenado a quatro anos de prisão, em regime aberto, pelo crime de corrupção passiva. Ao determinar a pena, a sentença determinou a cassação da aposentadoria com base no artigo 92, inciso I, do Código Penal — que prevê a perda do cargo. Em recurso, o TJ-SP manteve a decisão alegando que, como não seria possível a demissão do delegado, sua aposentadoria deveria ser cassada.
Na decisão, o TJ-SP citou precedente do Órgão Especial da Corte que no julgamento do Mandado de Segurança 9028067-07.8.26.0000 aplicou o seguinte entendimento: "A aposentadoria não pode servir de abrigo àquele que, no  exercício  de  cargo  ou  emprego  público,  praticou  crime  e  foi apenado também com a perda do cargo ou emprego".
Representado pelo advogado Thiago Amaral Lorena de Mello, do Tórtima Stettinger Advogados Associados, o delegado recorreu ao STJ. Ele alegou, tanto na petição quanto na sustentação oral, que a lei não prevê a cassação da aposentadoria. Segundo Thiago Mello, o cargo  não  se  confunde  com aposentadoria, sendo vedado ampliar as hipóteses previstas no Código Penal.
Ao analisar o caso, a 5ª Turma deu razão ao delegado. De acordo com o relator, desembargador convocado Walter de Almeida Guilherme, o rol do artigo 92 é taxativo, sendo vedada a interpretação extensiva ou  analógica para estendê-los em desfavor do réu, sob pena de afronta ao princípio da legalidade.
"Dessa maneira, como essa previsão legal é dirigida para a 'perda de cargo, função pública ou mandato eletivo', não se pode estendê-la ao servidor que se aposentou, ainda que no decorrer da Ação Penal", afirmou em seu voto, que foi seguido pelos demais integrantes da Turma.
Com isso, o STJ firmou a jurisprudência de que ainda que condenado por crime praticado durante o período de atividade, o servidor público não pode ter a sua aposentadoria cassada com fundamento no artigo 92, inciso I, do Código Penal, mesmo que a sua aposentadoria tenha ocorrido no curso da Ação Penal. 
Para o advogado Thiago Mello a decisão consolida o entendimento do STJ. "Este ainda era tema controverso no STJ porque havia decisões da própria 5ª Turma em sentido contrário. Enquanto a 6ª Turma considerava impossível a cassação da aposentadoria. Com a publicação desse entendimento no Informativo de Jurisprudência do STJ creio que a questão está consolidada", explica.
Clique aqui para ler o acórdão.
Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico



No Brasil, exceção virou regra: prende-se para depois apurar, diz Marco Aurélio

9 de Fevereiro de 2015, 4:33, por Desconhecido

MOMENTO CRÍTICO


A Justiça brasileira passa por um momento crítico, em que a prisão passou a ser regra e a liberdade, exceção entre os acusados. Quem aponta o problema é o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio (foto), que afirma acompanhar com incredulidade as notícias sobre a famigerada operação “lava jato”, que vê como um reflexo do Judiciário. “O juiz acaba atropelando o processo, não sei se para ficar com a consciência em paz, e faz a anomalia em nome da segurança.”

Dizendo-se impressionado com a condução coercitiva de acusados que não resistiram a ir prestar depoimento, como no caso do tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, Marco Aurélio alfineta, com seu humor peculiar: “A criatividade humana é incrível! Com 25 anos de Supremo, eu nunca tinha visto nada parecido. E as normas continuam as mesmas”.
Não é só pela televisão e pelos jornais que o ministro poderá analisar as decisões do juiz federal Sérgio Moro, que conduz os processos relacionados à “lava jato” na 13a Vara Federal em Curitiba. Habeas Corpus de acusados têm chegado ao Supremo, mas, sob a relatoria do ministro Teori Zavascki, a maioria tem sido rejeitada com base na Súmula 691. Editada pela corte em 2003, a súmula veda o reconhecimento pelo Supremo de HC contra decisão do relator do caso em corte superior que indeferiu liminar em Habeas Corpus, exceto em caso de flagrante ilegalidade.
Para Marco Aurélio, a súmula é um erro e precisa ser corrigida, pois coloca o ato do relator do caso acima do ato do colegiado, isso porque não permite ao STF rever a decisão do primeiro, mas permite que a corte reveja a decisão da turma que julgar o caso. Ou seja, quando houver decisão colegiada sobre os pedidos dos acusados na “lava jato” ao STJ, o Supremo poderá revê-las.
Além de subverter a hierarquia da Justiça, a Súmula 691, ainda na visão de Marco Aurélio, é perigosa ao criar situações de exceção, como no caso do ex-diretor de serviços da Petrobras Renato Duque. Ele conseguiu um HC de Teori Zavascki enquanto outros investigados tiveram seus pedidos negados logo de cara, com base na súmula. Teori argumentou que a diferença entre o caso de Duque e dos outros é que o único fundamento do mandado de prisão preventiva era a existência de depósito bancário supostamente ilícito no exterior, circunstância que poderia propiciar a fuga do investigado.
“Dessa forma, o que vinga é o misoneísmo, a observância do estabelecido sem observância do contrário. Uma obediência cega à norma, que nos faz lembrar do Padre António Vieira, que disse que a pior cegueira é a que cega deixando os olhos abertos”, pontua Marco Aurélio.
*Texto alterado às 12h58 do dia 8 de fevereiro de 2015 para acréscimo de informação.
Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico



Presidente do STF ataca "política do encarceramento" no Brasil

9 de Fevereiro de 2015, 4:32, por Desconhecido

PRISÕES EM EXCESSO


Enquanto as prisões de empresários na operação “lava jato” ganham repercussão na sociedade, a “política do encarceramento” foi duramente criticada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski (foto). Em evento no Tribunal de Justiça de São Paulo, nesta sexta-feira (6/2), o ministro foi um dos que atacou o excesso de prisões no país e a ideia de que quanto mais gente presa, mais segurança a sociedade terá. Desembargadores repetiram que o Brasil prende muito e prende mal. E coube a Lewandowski apontar os números que comprovam isso: o país tem 600 mil presos, sendo 40% deles provisórios. Isso equivale a 240 mil presos que não tiveram seus casos julgados, mas estão atrás das grades.

Na busca por diminuir o coeficiente, São Paulo lançou, na sexta-feira, o projeto da audiência de custódia. A ideia é que a cada prisão em flagrante — maioria das provisórias — abra-se o período de 24 horas para que o preso seja apresentado a um juiz, que decidirá se ele deverá ficar preso enquanto seu caso é apurado, ou não. O juiz poderá optar por outros meios de restrição de liberdade, como a prisão domiciliar ou o controle por tornozeleira eletrônica.
Presidente também do Conselho Nacional de Justiça, o ministro Ricardo Lewandowski disse que pretende levar o projeto, que será implantado em duas delegacias na capital paulista, para o Brasil inteiro. O ministro lembrou, no entanto, que apenas apresentar o preso ao juiz não muda necessariamente a situação carcerária do país, pois é preciso mudar a “cultura do encarceramento”, que também passa pela magistratura. O presidente do STF lembra que o excesso de prisões não se deve só aos delegados ou membros do Ministério Público: “temos nossa parcela de responsabilidade, com as decisões dos juízes de execução”.
“A magistratura é vulnerável à cultura da prisão. O juiz reflete o desejo da sociedade”, afirma o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Renato Nalini. Ele diz que a grande quantidade de penas de prisão aplicadas por juízes se dá, muitas vezes, porque os magistrados estão sujeitos à pressão popular, que exige atitudes como o aumento das penas e a redução da maioridade penal.

Desembargador da corte comandada por Nalini, Henrique Nelson Calandraconcorda com o presidente do TJ-SP. “Juiz também é assaltado. É sequestrado. Juiz é gente como a gente.” No entanto, acha que isso deve ser enfrentado. As prisões da operação “lava jato”, na qual o juiz Sergio Moro decidiu por manter encarcerados empresários acusados de corrupção, são atacadas por Calandra. “Talvez a prisão cause mais dano do que proveito. Importantes empresas brasileiras estão sofrendo reveses operacionais imensos, e criam uma cadeia de insolvência que vem se resolver aqui, no TJ-SP, com cobranças”.
A própria estrutura do Judiciário faz com que o juiz esteja mais sujeito à pressão externa do que deveria, afirma o presidente do Tribunal Regional Federal da 3a Região, Fábio Prieto. “O juiz hoje é submetido a três tipos de controle: a corregedoria, a corregedoria da Justiça Federal em Brasília e a corregedoria do CNJ. A estrutura permite que o juiz seja pressionado. Pois quem tem três tipos de controle não tem a independência funcional plena”, afirma Prieto. Ele diz que isso não causa um dano necessariamente à independência do juiz, mas permite que eles sejam pressionados a atenderem interesses.
Também presente no evento, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, Marcos da Costa, lembra que, atualmente, o preso provisório sai, em média, de 3 a 4 meses depois do flagrante, quando tem a primeira audiência com o juiz. Isso faz, segundo ele, com que a prisão sirva para alimentar a criminalidade, pois, uma vez no sistema penitenciário, o acusado “vai ter contato com a escola do crime, vai ser pressionado e cooptado”. Se tivermos menos prisões, completa, teremos o menor fornecimento de elementos para o crime organizado.
Já para o governador paulista, Geraldo Alckmin, do PSDB, no entanto, investigar e prender “é essencial para diminuir a atividade delituosa e acabar com a impunidade”. Por outro lado, continua, não pode haver demora nos julgamentos dos presos e o número de presos provisórios precisa ser reduzido.
Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico



A ação penal nos crimes contra a dignidade sexual

9 de Fevereiro de 2015, 4:29, por Desconhecido


Visão doutrinária e jurisprudencial do STF e do STJ.








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Os crimes sexuais e a dignidade da pessoa humana: a Lei 12.015/2009 reformulou quase que integralmente os antigos crimes contra os costumes, agora alçados à crimes contra a dignidade sexual. Rogério Greco assevera que a dignidade sexual é uma das espécies do gênero dignidade da pessoa humana, declarando o ilustre autor que a expressão crimes contra os costumes não traduzia a realidade dos bens juridicamente protegidos pelos tipos penais que se encontravam no Título VI doCódigo Penal. O foco da proteção já não era mais a forma como as pessoas deveriam se importar sexualmente perante a sociedade do século XXI, mas sim a tutela da sua dignidade sexual. (GRECO, Rogerio. Código penal comentado. São Paulo: Impetus. 2010. P. 579.)
Condição de procedibilidade: Antes, os crimes eram, em regra, de ação privada, passando agora, contudo, a depender da representação da vítima. Dispõe, porém oparágrafo único do art. 225 do Código Penal que, sendo a vítima menor de 18 anos ou vulnerável, a ação será pública incondicionada. São consideradas pessoas vulneráveis os menores de 14 anos, os enfermos e deficientes mentais, quando não tiverem discernimento para a prática do ato, bem como aqueles que por qualquer causa não tiverem o necessário discernimento para a prática do ato, e ainda aqueles que por qualquer causa não puderem oferecer resistência à prática sexual. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal Comentado. São Paulo: RT. 2010. P. 927.). De acordo com o STJ:
RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO. LESÃO CORPORAL LEVE. VIOLÊNCIA REAL. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. SÚMULA Nº 608/STF. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. RETRATAÇÃO DA OFENDIDA. IRRELEVÂNCIA. RECURSO PROVIDO. 1. É assente neste Tribunal Superior o entendimento segundo o qual, tratando-se de crime de estupro praticado com emprego de violência real, a ação penal é pública incondicionada, sendo o parquet o ente legitimado para a sua promoção, a teor do enunciado da Súmula 608/STF.2. In casu, irrelevante o fato de o representante da ofendida ter apresentado retratação à representação anteriormente oferecida a fim de impedir o oferecimento da denúncia, haja vista a natureza pública incondicionada da ação penal. 3. Recurso especial a que se dá provimento.(STJ, 5.ᵃ T., REsp 997.640/MG, rel. Min. Jorge Mussi, j. 19/08/2010, DJe 06/09/2010)
Continua vigorando a Súmula 608 do Supremo Tribunal Federal, que declara que o crime de estupro com violência real a ação penal é pública incondicionada. Desta forma e mais recentemente:
RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO. DELITO PRATICADO MEDIANTE VIOLÊNCIA REAL. SÚMULA 608 DO STF. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. REPRESENTAÇÃO QUE DISPENSA FORMALIDADES. RECURSO NÃO PROVIDO.1. Nos delitos em que há violência real, a ação penal continua sendo pública incondicionada (a despeito do disposto no atual art. 225 do Código Penal), dispensada a representação da vítima, razão pela qual não há que se falar em decadência do direito de ação, nos termos da Súmula n. 608 do STF.2. Doutrina e jurisprudência são uniformes no sentido de que a representação prescinde de qualquer formalidade, sendo suficiente a demonstração do interesse da vítima em autorizar a persecução criminal.3. Assim, ainda que se entenda ser a ação, na espécie, pública condicionada à representação, esta se aperfeiçoou com o comparecimento espontâneo da vítima à Delegacia de Polícia, onde relatou o ocorrido, identificou o agressor e se submeteu a exame pericial, dando mostras inequívocas de que era seu desejo ver o perpetrador do estupro processado e punido.4. Recurso especial não provido.(REsp 1485352/DF, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 16/12/2014)
Legitimidade do Ministério Público nos crimes sexuais: o Ministério Público possui legitimidade para promover a ação penal quando vítima ou seus pais não puderem prover as despesas do processo, sem prejuízo da manutenção própria ou da família (art. 225§ 2.º, do Código Penal, com redação anterior a Lei 12.015/2009).
Estupro e atentado violento ao pudor e aplicação da pena: O entendimento do Supremo Tribunal Federal, pacificou-se quanto a ser absoluta a presunção de violência nos casos de estupro contra menor de catorze anos nos crimes cometidos antes da vigência da Lei 12.015/09, a obstar a pretensa relativização da violência presumida. Não é possível qualificar a manutenção de relação sexual com criança de dez anos de idade como algo diferente de estupro ou entender que não seria inerente a ato da espécie a violência ou a ameaça por parte do algoz. O aumento da pena devido à continuidade delitiva varia conforme o número de delitos. Na espécie, consignado nas instâncias ordinárias terem os crimes sido cometidos diariamente ao longo de quase dois anos, autorizada a majoração máxima. (HC 105558, Relator (a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 22/05/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-113 DIVULG 11-06-2012 PUBLIC 12-06-2012) Desta forma leva-se em conta o cúmulo formal ou material para aplicação da pena, quando existe a continuidade delitiva.
Estupro e atentado ao pudor em continuidade delitiva: antes da entrada em vigor da Lei 12.015/09, que mudou o tratamento dos crimes sexuais no Código Penal, as condutas de atentado violento ao pudor e de estupro, não se admitia a continuidade delitiva entre o estupro e o atentado violento ao pudor. Contudo, após o julgamento, a Lei 12.015/2009, editada em 07 de agosto de 2009, alterou substancialmente a disciplina dos crimes pelos quais o acionante foi condenado (arts. 213 e 214 doCódigo Penal). Alteração que fez cessar o óbice ao reconhecimento da continuidade delitiva entre o estupro e o atentado violento ao pudor, cometidos antes da vigência da Lei 12.015/2009. (HC 99544, Relator (a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 26/10/2010, DJe-020 DIVULG 31-01-2011 PUBLIC 01-02-2011 EMENT VOL-02454-02 PP-00467) A nova lei, sendo mais benéfica, deve retroagir, para alcançar os fatos passados, uma vez que reconhece a continuidade delitiva no concurso entre o estupro e o atentado violento ao pudor.
EMENTA: AÇÃO PENAL. Estupro e atentado violento ao pudor. Mesmas circunstâncias de tempo, modo e local. Crimes da mesma espécie. Continuidade delitiva. Reconhecimento. Possibilidade. Superveniência da Lei 12.015/09. Retroatividade da lei penal mais benéfica. Art. 5.ºXL, da Constituição Federal. HC concedido. Concessão de ordem de ofício para fins de progressão de regime. A edição da Lei 12.015/09 torna possível o reconhecimento da continuidade delitiva dos antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e local e contra a mesma vítima. (STF, 2.ᵃ T., HC 86110, rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/03/2010, DJe 22/04/2010)
Ionilton Pereira do Vale
Mestrado em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (2003). Doutorando pela Universidade de Lisboa. Promotor de Justiça - Procuradoria Geral da Justiça do Estado do Ceara.



O fracasso de um modelo violento e ineficaz de polícia

9 de Fevereiro de 2015, 4:13, por Desconhecido

Folha de S. Paulo


FERNANDA MENA
ilustração EMMANUEL NASSAR

RESUMO Num quadro de violência social e falhas institucionais, as polícias brasileiras matam demais, ignoram direitos, prestam serviços deficientes e não têm a confiança dos cidadãos. A reportagem faz um diagnóstico da situação e expõe as propostas de reformas, que vão desde mudanças estruturais a melhorias localizadas.
*
Os meninos começaram a chorar mal foram trancados na caçamba do carro de polícia.
"A gente nem começou a bater em vocês e já tão chorando?", gritou um policial para os adolescentes negros capturados como suspeitos de praticar furtos na região central do Rio. O camburão subia as curvas da floresta da Tijuca, na capital fluminense.
Para os garotos, aquele desvio de percurso, da delegacia para a mata, seria um passeio fúnebre, registrado por câmeras instaladas no veículo -determinação de lei estadual de 2009, criada para vigiar os vigilantes e fornecer provas tanto de ações policiais legítimas como das consideradas ilegais.
Em uma parada no morro do Sumaré, contudo, a gravação é interrompida. Dez minutos depois, câmeras religadas, as imagens mostram os oficiais sozinhos no carro, descendo as mesmas curvas.
"Menos dois", diz um deles ao parceiro. "Se a gente fizer isso toda semana, dá pra ir diminuindo. A gente bate meta, né?", completa.
Emmanuel Nassar
Dias depois, o corpo de Matheus Alves dos Santos, 14, foi encontrado no local graças a informações de M., 15, que levou dois tiros, mas sobreviveu porque conseguiu se fingir de morto mesmo ao ser chutado por um dos policiais.
Só em 2013, 2.212 pessoas foram mortas pelas polícias brasileiras, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Isso quer dizer que ao menos seis foram mortas por dia, ou uma a cada 100 mil brasileiros ao longo do ano. No mesmo período, a polícia norte-americana matou 409 pessoas. Já as corporações do Reino Unido e do Japão não mataram ninguém.
O ano de 2014 promete elevar ainda mais o patamar dessa barbárie: mortes cometidas por policiais paulistanos subiram mais de 100% em relação ao ano anterior. No Rio, o aumento foi de 40%, na comparação com números de 2013.
No Brasil, como se sabe, não há pena de morte. O furto, infração não violenta que teriam cometido os meninos do Sumaré, tem como pena máxima oito anos de reclusão. Apenas juízes podem determinar as penas, após processo que contemple o direito de defesa.
O marco jurídico, porém, parece não coibir ações como a dos cabos Vinícius Lima e Fábio Magalhães: a naturalidade com que desaparecem com os dois adolescentes na mata deixa claro que o procedimento não era excepcional. A falta de pudor com que comentam a ação diante da câmera levanta outra hipótese perversa: a de que contavam com a impunidade.
"Não podemos dizer que esses sejam casos de desvio individual de policiais", avalia Renato Sérgio de Lima -professor da FGV-SP, ele integra o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que produz o anuário estatístico. "Trata-se de um padrão institucional. É uma escolha encarar o crime como forma de enfrentamento."
Para o coronel José Vicente da Silva, da reserva da Polícia Militar de São Paulo, o número de mortos por policiais não pode ser visto isoladamente. "É desonestidade intelectual dizer que a polícia brasileira mata cinco vezes mais que a dos EUA porque aqui temos seis vezes mais homicídios do que lá. E nossos policiais morrem mais que os de qualquer outro lugar do mundo", protesta ele, citando dados: só no ano passado, diz, 1.500 PMs pediram demissão motivados pelos baixos salários e pelo constante risco de morte.
Nessa dinâmica, 490 policiais civis e militares foram mortos em serviço ou durante folgas em 2013.
Editoria de Arte/Folhapress
"Para outras sociedades é inadmissível que se mate um policial, porque quer dizer que ninguém respeita mais nada", diz Alexandre de Moraes, secretário de Segurança Pública de São Paulo. "No Brasil, quem mata policial tatua um palhaço para mostrar para quem quiser ver que matou um tira ou um PM", compara ele, favorável a alteração no Código Penal que aumente em 50% as penas para crimes contra autoridade pública.
Os números de ambos os lados se inscrevem num contexto aterrador: o Brasil é um campeão mundial de homicídios. Em 2013, 54.269 pessoas foram assassinadas no país. O número corresponde a um estádio do Itaquerão lotado, como no jogo de abertura da Copa do Mundo -só que de cadáveres. Trata-se de uma taxa de 26,9 mortes por 100 mil habitantes, quase seis vezes a dos EUA, de 4,7.
FORA DE CONTROLE
A Organização Mundial da Saúde considera epidêmica, ou fora de controle, a violência que faz mais de 10 vítimas por 100 mil habitantes. Em rankings elaborados pela OMS e pelo Banco Mundial, o Brasil ocupa as primeiras posições em taxa de homicídios, ao lado de países como Honduras, Venezuela, Jamaica, El Salvador e África do Sul.
Somam-se aos números estatísticas que ilustram a relação negativa dos brasileiros com suas polícias: segundo o Índice Confiança da Justiça, realizado pela FGV em 2012, 70% da população do país não confia na instituição, e 63% se declaram insatisfeitos com a atuação da polícia.
O medo diante da polícia também é registrado em cifras: um terço da população teme sofrer violência policial, e índice semelhante receia ser vítima de extorsão pela polícia -os dados são da Pesquisa Nacional de Vitimização (Datafolha/Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, 2013).
Especialistas em segurança pública dos mais diversos matizes ideológicos convergem em seus diagnósticos: salvaguardados alguns avanços pontuais e localizados, seja na diminuição de certos crimes, seja no aumento da coordenação e da transparência em um ou outro aspecto, a polícia mata demais, é ineficiente no atendimento à população e nas investigações, tem setores racistas e corruptos, além de outros que desprezam leis e regulamentos. Como se não bastasse, as corporações perdem tempo e desperdiçam recursos com rivalidades entre si.
"A polícia tem vícios e defeitos inegáveis", afirma José Mariano Beltrame, secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro. "Só que existe um reducionismo no conceito de segurança pública, que hoje é sinônimo de polícia, quando deveria englobar controle de fronteiras, Ministério Público, Tribunal de Justiça e sistema carcerário", afirma.
"A situação que vivemos é resultado de uma série de políticas descontinuadas e de uma tradição brasileira de falta de diálogo entre as instituições. É cada um na sua. E tudo vira jogo de poder e vaidade."
As polícias, de fato, não se encontram sós nesse quadro tenebroso, em cujo verso estão os baixos salários, o treinamento deficiente, a falta de equipamentos e o duro enfrentamento de criminosos cada vez mais organizados e armados, que não vacilam em atirar, na certeza de que, ao escaparem vivos de um cerco, dificilmente serão pegos por uma investigação.
O embrutecimento dessa polícia é também o da sociedade brasileira, um país em que se banalizaram o assassinato, o racismo, o desrespeito às leis e a corrupção. O que deveria causar assombro e repúdio virou folclore ou "coisa do Brasil".
"Apesar de 26 anos de democracia, os brasileiros são capazes de se mobilizar mais pelos simpáticos cartunistas mortos em Paris [na sede do 'Charlie Hebdo'] do que pelas centenas ou milhares de negros já mortos pelas polícias militares nas favelas e periferias", diz o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, ex-secretário de Estado de Direitos Humanos do governo FHC e um dos coordenadores da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Uma situação bem diferente da de Nova York, onde milhares foram às ruas no final do ano passado para protestar contra a decisão da Justiça de não indiciar um policial responsável pela morte, na cidade, de Eric Garner, um negro.
O episódio do morro do Sumaré é emblemático porque, ainda que a ação tenha chocado parte dos telespectadores do "Fantástico", que revelou o caso num domingo à noite, na segunda-feira a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro já havia sido inundada por e-mails de apoio à ação criminosa dos policiais.
DESCOMPASSO
Sem alarde, o Ministério da Justiça criou no fim do ano passado um grupo de especialistas para estudar as raízes e os remédios do morticínio brasileiro.
A discrição da iniciativa reitera o descompasso entre a ausência de um debate público, amplo e propositivo, e o fato de segurança pública ser a segunda maior preocupação dos brasileiros, segundo pesquisa Datafolha de 2014.
Isso sem falar nos custos sociais da violência, estimados em 5,4% do PIB (Produto Interno Bruto) ou R$ 258 bilhões em 2013, segundo cálculos de Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, registrados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
A relevância do tema se reflete na produção cinematográfica brasileira do ano passado, quando ao menos oito produções colocaram a polícia como protagonista (não exatamente no papel de mocinho) ou pano de fundo de ações e debates. É o caso de documentários como "Sem Pena", "À Queima-Roupa" e "Junho" e de ficções como "Branco Sai, Preto Fica", vencedor do prêmio de melhor filme na última edição do Festival de Brasília.
"O Brasil está estático nessa área. Os partidos que pretendem representar as classes populares são incapazes de reconhecer a prioridade desse tema que, por outro lado, é absolutamente central no cotidiano das massas, para as quais essa é questão de vida ou morte, de chegar ou não vivo em casa", avalia o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública (2003) do primeiro governo Lula.
Mobilizações de vítimas do crime comum ou daquele cometido pelas forças do Estado parecem se resumir a slogans como "queremos Justiça", sem traduzir esse sentimento em propostas concretas. "É nessa fonte que bebem os demagogos e os oportunistas que advogam por penas mais duras e mais armas para as polícias. Isso é mais do mesmo e não rompe o ciclo vicioso", avalia Soares.
O artigo 144 da Constituição de 1988 dispõe, genericamente, sobre as atribuições das instituições responsáveis por prover a segurança pública no país. A Carta herdou um sistema bipartido, com duas polícias, uma militar e outra judiciária ou civil, cada uma executando uma parte do trabalho. Um quarto de século depois, o artigo ainda aguarda regulamentação.
"Os constituintes, por temor ou convicção, não mudaram uma vírgula da estrutura da segurança pública herdada do regime militar", explica Paulo Sérgio Pinheiro, que, durante o trabalho da CNV, contou 434 mortos e desaparecidos nas mãos de agentes da ditadura. "O resultado é que temos esse traste, e 15 projetos de reforma que nunca são tocados pelos congressistas."
"Nos Estados Unidos, a coisa começou a mudar quando os governos passaram a perder processos e a pagar boas indenizações para vítimas de violência policial. Pegou no bolso", conta Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes.
Com esse arranjo institucional, a União tem pouca responsabilidade nos rumos da segurança pública, municípios se limitam a criar guardas civis, enquanto cabe aos Estados o desenho das políticas e o controle das polícias. Nesse contexto, entre os que pensam perspectivas para a segurança pública e para as polícias, emergiram duas correntes conflitantes.
REFORMAS
A primeira corrente prega reformas que envolvam mudanças de arquitetura do sistema legal e das instituições. Nesse vetor se inscrevem as propostas de desmilitarização e de unificação das polícias militar e civil em uma nova corporação, sem sobrenome.
A proposta mais completa nessa linha está na PEC 51, desenhada pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares e apresentada pelo deputado Lindbergh Farias (PT-RJ).
Emmanuel Nassar
Ela inclui o fim do vínculo e do espelhamento organizacional entre PM e Exército e cria o ciclo completo, quando uma só polícia faz o trabalho preventivo, ostensivo e investigativo. Cada Estado poderia eleger um modelo próprio, seja ele o de corporações divididas por território ou por tipos criminais. "Mudanças significativas não podem ser feitas sem reformas do modelo, que pedem alterações estruturais e constitucionais", avalia Soares.
A bandeira da desmilitarização da polícia, proposta pela PEC, foi resgatada após junho de 2013, quando parte das manifestações foi reprimida com violência exacerbada pelas PMs de São Paulo, Rio e Minas, principalmente. O relatório da CNV trouxe também essa recomendação, que ficou em segundo plano, porém, em meio ao tímido debate gerado pelo trabalho final do grupo que investigou os crimes da ditadura militar.
Há variações no entendimento sobre o que é desmilitarizar as polícias, mas todas compreendem a mudança do regime disciplinar, que permite prisão administrativa para questões ligadas à hierarquia, à vestimenta e à administração, além da extinção das instâncias estaduais da Justiça Militar, que julga policiais em crimes graves, como o homicídio de um PM por outro. A Justiça Militar Federal seria mantida como tribunal voltado a membros das Forças Armadas.
Segundo a pesquisa Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização das Polícias, da FGV, quase 64% dos policiais defendem o fim da Justiça Militar, 74% apoiam a desvinculação do Exército e quase 94% querem a modernização dos regimentos e códigos disciplinares. Essas vozes interessadas, porém, parecem sub-representadas no debate.
"A desmilitarização é importante, mas não é uma panaceia e ainda depende de pressão popular, porque o Congresso funciona por inércia e tem muita representação de setores que são contrários a isso", diz o sociólogo Ignácio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
O surgimento da "bancada da bala", formada por parlamentares que pregam medidas como redução da maioridade penal, recrudescimento das penas e até pena de morte, promete barrar o andamento de mudanças estruturais.
Outra proposta dessa linha, baseada na crença de que cada território tem necessidades muito específicas que só um administrador local conhece, é a municipalização das polícias. Seus opositores argumentam que, por questões orçamentárias, esse tipo de reforma aumentaria muito a desigualdade no serviço policial além de dificultar sua coordenação. Afirmam também que o município já tem papel fundamental na segurança pública ao cuidar da iluminação, das calçadas e da coleta de lixo.
Mas há, ainda, outros caminhos. "Na Colômbia, por exemplo, há um modelo em que a polícia é nacional, mas as prefeituras podem investir nela e influenciar seu trabalho sem que a corporação seja municipal", informa Cano.
CHOQUES
A segunda corrente de pensamento sobre segurança pública e polícia é a das reformas gerenciais, que se propõem a incrementar a eficiência dos processos valendo-se de choques de gestão. Nessa linha entram o aumento de recursos e de pessoal, a valorização das carreiras, a melhoria da formação, a maior participação da sociedade civil nas políticas de segurança pública e a integração do trabalho das duas polícias.
Na opinião de Leandro Piquet Carneiro, do Núcleo de Pesquisas de Políticas Públicas da USP, "dá-se muita ênfase a reformas estruturais quando existem aspectos de microgerenciamento que podem ser implantados com mais rapidez". "São medidas de alteração de procedimentos e regras e de cobrança de resultados feitas dentro do marco institucional atual."
Marcos Fuchs, diretor da ONG Conectas Direitos Humanos, prega o envolvimento da população por meio de conselhos -mecanismo que funciona com muito efeito em metrópoles como Nova York.
Emmanuel Nassar
"É preciso ampliar o debate e envolver a sociedade civil, seja com audiências públicas ou no âmbito dos Conseg [Conselhos Comunitários de Segurança], que já vêm se reunindo em cada bairro de São Paulo para discutir soluções para problemas locais, algo incentivado pela gestão passada da Segurança Pública do Estado", avalia.
Ainda nessa chave, estão medidas como a que chegou a tirar das ruas de São Paulo policiais que cometiam a terceira morte em serviço, supostamente em legítima defesa ou de um terceiro -além da formação continuada e da melhoria dos sistemas de controle interno, via corregedorias, e externo, por meio das ouvidorias de polícia.
Na qualidade de ex-ouvidora do Rio, a socióloga Julita Lemgruber defende que as ouvidorias tenham poder de investigação. "Sem isso, recebem as denúncias, mas ficam amarradas", argumenta.
Há ainda experiências de georreferenciamento, em que estatísticas sobre ocorrências, com o local de cada uma delas, permitem um planejamento mais racional das equipes de investigação e patrulha, otimizando recursos.
Entre esses extremos, no entanto, há uma terceira via. "Essas propostas não são excludentes. É possível avançar em reformas normativas que garantam a continuidade de determinadas políticas e implementar reformas gerenciais para dar mais eficiência às polícias", avalia Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Comum às duas pontas do debate é o imperativo de que as polícias trabalhem juntas, seja unificando-as em uma nova corporação, seja com processos graduais de integração -medida com o qual 75% dos policiais civis e militares concordam, segundo a pesquisa realizada pela FGV.
"Ter duas polícias é um acidente histórico. Desenvolvemos essa duplicidade institucional, criando ineficiência. Uma só polícia seria mais racional e econômica em pelo menos 20%", estima o coronel José Vicente da Silva. Com 52 anos de serviço, ele viveu em 1970 a fusão, imposta pela ditadura, da Força Pública, então com 25.000 homens, com a Guarda Civil, que tinha 9.000 membros -daí nasceu a atual PM. "Houve mal-estar, houve dúvida sobre quem iria mandar, se o inspetor ou o coronel, mas tudo foi, aos poucos, se acomodando."
Os exemplos de ineficiência na divisão do trabalho policial são cristalinos. Enquanto a Polícia Militar atua na prevenção e no patrulhamento, a Polícia Civil ou Judiciária investiga, tudo com troca de informações mínima. A simples criação de bancos de dados conjuntos revelou-se uma epopeia.
"As polícias se detestam no Brasil inteiro, então a coisa não funciona", avalia o especialista em segurança pública Guaracy Mingardi. A PM é a primeira a chegar ao local do crime e é quem o resguarda para a Polícia Civil e a perícia. "Mas, quando elas chegam, não conversam com a PM porque acham que não tem nada a ver. Então muito PM não preserva direito o local dos crimes, já que é uma atividade desvalorizada", explica ele, que trabalhou por dois anos na Polícia Civil em São Paulo, coletando dados para seu mestrado.
FORMAÇÃO
Em 2010, foi inaugurada a Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará. Celebrada como uma experiência exitosa, ela aposta na integração entre policiais civis e militares logo na formação, para que aprendam desde os primeiros treinamentos a trabalhar juntos.
Para José Mariano Beltrame, "quando não há entendimento entre as polícias, há temor, e cada uma se fecha do seu lado". A solução não virá de uma "canetada".
"Tem de mudar a cultura, e isso se obtém mudando práticas", diz o secretário da Segurança Pública do Rio, que vê na valorização salarial um fator fundamental para aperfeiçoar o serviço prestado pelas polícias. "Enquanto a diferença salarial entre polícia e Judiciário for oceânica, como é hoje, o resultado do trabalho deixará a desejar. Você tem de levantar essa polícia, pagar bem, dar condições, e ela entregará um resultado melhor."
Nas polícias da maioria dos Estados verificam-se diferenças salariais entre as carreiras, o que alimenta ainda mais as rivalidades. Pior: cada corporação é fraturada internamente. As carreiras civil e militar têm duas entradas, numa espécie de sistema de castas, em que status e salários são diferentes entre si e entre os Estados.
Na Polícia Militar, ingressa-se como soldado ou tenente. Mas o soldado nunca chegará a ser tenente por progressão ou mérito. Enquanto um soldado gaúcho pode ganhar apenas R$ 1.375,71, o salário de um coronel, topo da carreira iniciada como tenente, pode ser de até R$ 21.531,36 no Paraná.
Na Polícia Civil, o concurso é para investigador ou delegado, e o melhor investigador do país jamais se tornará um delegado, a não ser que preste novo concurso, para o qual é necessário ser bacharel em direito. O soldo de investigador varia de R$ 1.863,51 no Rio Grande do Sul, a R$ 7.514,33 no Distrito Federal. Já um delegado pode ganhar R$ 8.252, 59 em São Paulo, o salário mais baixo da categoria no país, ou R$ 22.339,75 no Amazonas.
"Isso faz da polícia um lugar em que não se entra pensando em construir carreira", opina Mingardi, para quem a corporação atrai ou gente pouco qualificada ou "concurseiros profissionais" à espera de oportunidade melhor.
A Polícia Federal, que hoje tem plano de carreira e salário inicial de mais de R$ 7.500, exige como pré-requisito o diploma de ensino superior e coleciona em seus quadros médicos, contabilistas, engenheiros e advogados.
"Se as carreiras das polícias civil e militar são, na maior parte dos casos, desprestigiadas, como é que você mantém um sujeito lá ganhando pouco?", pergunta ele, que responde: "Simples: você permite o bico e cria uma escala de trabalho que acomode atividade extra". Essa é uma das explicações para escalas como as de 12 horas de trabalho para 24 ou 36 de folga.
Emmanuel Nassar
São agentes de segurança pública atuando no setor de segurança privada -serviço que só faz sentido onde as polícias falham. O conflito de interesses é evidente.
"Trata-se de um 'gato' orçamentário, um acordo entre o Estado e a ilegalidade. O Estado faz vista grossa para manter a estabilidade de um orçamento que é irreal", avalia Luiz Eduardo Soares. "Há, dessa forma, uma autorização tácita para a criação de agências de segurança privada que estão na base das milícias."
Segundo a pesquisa da FGV, 95% dos policiais afirmam que a falta de integração entre as diferentes polícias torna seu trabalho menos eficiente, 99,1% avaliam que os baixos salários são causa deste problema e 93,6% apontam a corrupção como causa do mau serviço prestado à sociedade. Outro problema quase unânime nas corporações, segundo a avaliação dos próprios policiais, é a formação deficiente (98,2%).
PACTO
Em 2007, Pernambuco criou um programa de redução de homicídios que previa metas, premiações e trabalho conjunto das várias instâncias da segurança pública. No Pacto pela Vida, elaborado pelo sociólogo José Luiz Ratton, o então governador Eduardo Campos (1965-2014) passou a coordenar pessoalmente reuniões entre as duas corporações, o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Tribunal de Justiça e secretarias de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, entre outras, no combate aos homicídios que sangravam o Estado -então um dos campeões em mortes violentas do Nordeste.
"É impossível pensar no desenvolvimento do país com taxas de homicídio como as que temos. É uma tragédia que, para ser combatida, precisa de um esforço interinstitucional. É preciso ter uma visão sistêmica da violência no Brasil e articular áreas de desenvolvimento social com polícia e Justiça", diz o mineiro Ratton, que é professor do departamento de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.
Desde o pacto, as mortes por agressão no Estado caíram 39%, e o índice de elucidação dos crimes contra a vida subiu para mais de 60% -a média brasileira é de míseros 8%. No Reino Unido, 90% dos homicídios são esclarecidos. Na França, 80%. Nos EUA, 65%.
O índice brasileiro é quase todo fruto de prisões em flagrante, e não de investigações -cujo resultado pífio é produto não só do caldo de rivalidades, corrupção e má formação das polícias mas também de uma fraca participação do Ministério Público. O MP falha tanto na função de controle externo da atividade policial como na cobrança por diligências específicas. Na prática, pouco tem feito para cobrar ação da polícia, limitando-se a concordar com a extensão dos prazos regulamentares sem exigir qualidade na investigação.
"Não sei o que aconteceu com a promotoria criminal", comenta Alexandre de Moraes, secretário da Segurança paulista, que trabalhou no Ministério Público. "Parece que a área perdeu o charme. Vemos a promotoria do meio ambiente, por exemplo, fazendo ótimo trabalho, mas não a criminal."
Trata-se de um sistema que, além de pouco eficiente, favorece a famigerada lentidão da Justiça brasileira. Pesquisa recém-divulgada pelo Ministério da Justiça, que monitorou o tempo de trâmite de casos de homicídio doloso em cinco capitais brasileiras, não deixa dúvidas: a fase de inquérito policial, que leva ao menos 30 dias, chega a 700 dias em Belo Horizonte, onde a duração de um processo de assassinato intencional, da descoberta do crime à sentença, é de mais de nove anos.
TRABALHO DOBRADO
Uma parte dessa lentidão se deve ao fato de o delegado de polícia funcionar como espécie de juiz de instrução ou de primeiríssima instância. Isso quer dizer que todos os procedimentos feitos na delegacia durante a investigação, como o depoimento de vítimas e testemunhas, são repetidos no Judiciário, fase do processo em que a defesa pode se manifestar.
"O delegado brasileiro é uma figura 'sui generis' porque é um operador de direito dentro da polícia e, como seus atos são feitos fora da estrutura do Judiciário, tudo tem de ser repetido quando o caso chega à Justiça", explica o delegado Orlando Zaccone. Trabalho dobrado demora, claro, o dobro do tempo, o que ajuda a girar a máquina da impunidade, por um lado, e a punição desproporcional dos desprivilegiados, por outro.
Pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP monitorou casos de prisão em flagrante feitas com base na Lei de Drogas, que determina reclusão para traficante e prestação de serviços para usuários. Dois casos acompanhados pelo estudo ilustram bem essa lógica.
Um homem de 30 anos, desempregado, primeiro grau completo, com uma passagem por roubo e sem residência fixa foi preso em flagrante por dois PMs com 8,5 gramas de maconha e R$ 20. Na delegacia, apesar da pequena quantidade de droga, ele foi enquadrado como traficante. Aguardou seis meses para ser ouvido por um juiz, respondeu ao processo preso e foi condenado a cinco anos e dez meses em regime fechado.
Dois jovens de 19 e 25 anos, universitários, moradores dos bairros de Perdizes e Lapa, zona oeste de São Paulo, sem antecedentes criminais foram presos em flagrante por dois PMs com 475,2 gramas de maconha, mais porções separadas que somavam 25,8 gramas e uma balança de precisão. Na delegacia, foram enquadrados como traficantes. Seus advogados obtiveram sua liberdade provisória um dia após o flagrante, sob o argumento de que a droga era para uso pessoal. Eles respondem ao processo em liberdade e, passados nove meses do flagrante, a sentença ainda não havia sido proferida.
Segundo estudo do Instituto Sou da Paz, 37% dos detentos de São Paulo são presos provisórios que aguardam julgamento. Desses, apenas 3% foram presos após alguma investigação. A maior parte das prisões foi feita por abordagem, que se baseia no discernimento do policial para eleger quem é ou não parado e revistado.
"A falência da investigação é endêmica. Como as polícias são sobrecarregadas, são seletivas, e essa seletividade abre espaço para critérios discricionários e para a corrupção", explica Ignácio Cano. "Além disso, a polícia ostensiva sempre recebeu preferência em relação à polícia de investigação. As PMs têm um contingente sempre maior que o da Polícia Civil."
Para o antropólogo Luiz Eduardo Soares, a prevalência do flagrante sobre a investigação gera uma distorção. Ele explica que "os crimes passíveis de flagrante são aqueles que acontecem nas ruas, portanto, sob um filtro social, territorial e racial".
Abordagens policiais em São Paulo resultam, segundo estudo, na prisão preferencial de jovens (62,9% têm de 18 a 25 anos) e, apesar de ocorrerem em sua maioria em locais públicos e durante o dia, 76,6% têm como únicas testemunhas policiais militares.
A polícia de São Paulo fez 15 milhões de abordagens em 2013 (mais de um terço da população do Estado, estimada em 44 milhões em 2014). Segundo a pesquisadora Tânia Pinc, major da PM paulista, que já comandou a Força Tática, "em Nova York, a polícia aborda 2,3% da população da cidade ao ano".
Para ela, as abordagens são uma prática rotineira banalizada. Basta ver seu resultado: enquanto os policiais do Estado de São Paulo fazem 100 abordagens para cada prisão, a polícia de Nova York faz 12. "Abordagem conta como indicador de desempenho policial, e tanto a polícia como o governo usam esses números para dizer que estão trabalhando."
Premiar desempenho é o tipo de política que tem de ser feita com cautela e critérios bem pensados. O maior absurdo nessa área foi apelidado de "gratificação faroeste". Criada em 1995 no Rio de Janeiro, premiava policiais por "atos de bravura", o que incluía envolvimento em casos nos quais a ação policial terminava com o corpo do suspeito no chão. A partir do prêmio, o número de óbitos pelas polícias fluminenses, em casos registrados como resistência à prisão seguida de morte, aumentou até atingir, em 2007, o pico de 1.330 mortos. Desde então, esse número vem caindo, apesar de ter subido, simultaneamente, o registro de homicídios a esclarecer no Estado.
A maior parte dos casos de mortes envolvendo policiais é arquivada ao chegar ao Ministério Público, que muitas vezes acata procedimentos de exceção como quebra de sigilo e invasão de domicílio. Hoje, 98% das prisões realizadas em residências são feitas sem mandado judicial -expedido apenas quando uma investigação comprova que a prisão é necessária. Invade-se a casa sem autorização, o que é ilegal, não raro com base em denúncias anônimas.
O caso das mortes, no entanto, segue como o mais grave. Em uma pesquisa na qual avaliou 300 processos de óbito por intervenção policial, o delegado Orlando Zaccone identificou que 99% dos autos que chegavam ao MP foram arquivados em menos de três anos.
"O Judiciário tem de ser mais rigoroso com essas mortes, porque hoje participa delas", diz. Segundo ele, a condição de vida de quem morreu, o local onde se deram os fatos ou a existência ou não de antecedentes criminais já são suficientes para que o Ministério Público identifique a morte como legítima e arquive o caso.
"Como vamos reformar as polícias se a ideia de que o criminoso é matável não é só dela, mas do promotor, do jornalista e da sociedade como um todo?", avalia ele. "Policial bom, no Brasil, é aquele treinado como guerreiro. Nossos ídolos são os operadores da guerra."
Não é coincidência, portanto, que o segundo deputado estadual mais votado em São Paulo, coronel Telhada (PSDB), seja aquele que, ao ser entrevistado pelo correspondente do jornal "The New York Times", sorri para dizer que matou 30 "bandidos" ao longo de sua carreira na Polícia Militar.
De acordo com pesquisa realizada pelo Ministério da Justiça em 2009, 44% dos brasileiros concorda com a máxima que diz que "bandido bom é bandido morto".
GUERRA E PAZ
O quartel-general da Polícia Militar do Rio de Janeiro é uma construção fortificada de 1740, no centro da cidade. A sisudez das escadas de madeira escura, das bandeiras e dos brasões destoa dos objetos escolhidos para a decoração de uma sala em particular.
Naquelas paredes, um quadro vermelho com a imagem de Lênin faz par com uma imagem de Nossa Senhora das Dores. Sobre a mesa larga, um pequeno porta-retratos com a foto de Nelson Mandela e a citação "Aprendi que coragem não é ausência de medo, mas o triunfo sobre ele" divide espaço com pilhas de livros, entre os quais "A República", de Platão, "Guerra e Paz", de Tolstói, e outros de Nietzsche, Fernando Pessoa e Simone Weil.
Sentado atrás dos livros e diante das fotos dos 48 oficiais que o antecederam no posto de chefe de gabinete, o coronel Íbis Pereira da Silva se vangloria de duas ações ocorridas quando esteve no comando da PM do Rio, em dezembro do ano passado. "Fizemos duas desocupações de prédios para reintegração de posse sem usar uma bomba de efeito moral nem disparar uma bala de borracha sequer. Tenho o maior orgulho disso", gaba-se.
Para ele, uma das tragédias do modelo atual de segurança pública é que, nele, "a polícia tem de prender, e não proteger as pessoas -e a polícia que não promove nem protege direitos, sejam eles das vítimas ou dos criminosos, é uma ameaça à cidadania e à democracia".
O coronel Íbis integra a primeira geração de policiais treinados no apagar das luzes do regime militar que chega aos comandos da corporação. Quando ingressou na Academia de Polícia, em 1982, estava sendo descontinuado o manual de segurança interna e defesa territorial cuja capa estampava a imagem de um vietcongue, comunista vietnamita, sentado sobre um mundo que sangrava. Sua primeira aula foi de direitos humanos.
"Mas houve uma coincidência terrível e desastrosa. No momento em que saíamos da ditadura e da visão ideológica de guerra contra os comunistas, o presidente [norte-americano] Ronald Reagan declarou a guerra às drogas", conjectura Íbis. "Então, o sistema de segurança que vinha operando contra um inimigo apenas mudou sua figura, mas a máquina continuou a rodar com as mesmas violações de direitos e a mesma lógica de combate", avalia o coronel.
Para ele, a dinâmica da guerra altera os marcos morais e a noção de certo e errado. "Quem acha que está em combate, como é o caso das nossas polícias, é capaz de cometer atos brutais e ofensivos porque acredita que é aquilo que se espera dele. Isso acontece comigo, com você, com um monge", diz.
A peculiaridade do trabalho policial, que pede resoluções imediatas para situações complexas e imprevisíveis, contribui para desvios de conduta e uso excessivo de armas de fogo, pondo tanto policial como suspeito em perigo.
Quando começou a pesquisar abordagem policial, a major Pinc identificou problemas no treinamento. Havia protocolos e métodos, mas não eram seguidos. Propôs, então, um supertreinamento para uma equipe e comparou seu trabalho com o de outra. "Descobri que a premissa de que treinamento resolve está furada", revela.
Ela classificou os oficiais em diferentes padrões, quanto ao quesito letalidade. Vão do primeiro, que só age dentro da legalidade, ao quarto, o de policiais que matam intencionalmente. "São pessoas doentes, transformadas, que, se não têm oportunidade para matar, criam. Esses têm que sair", diz.
No meio estão os que devem ser objeto de programas que combinem treinamento com estratégias de supervisão, monitoramento por câmeras e premiação de boas práticas. O segundo é o tipo despreparado, que mata para se defender, mas não assume que atirou no susto. O terceiro é aquele que atira por sucumbir à pressão. "Ele tem controle da situação, mas sabe que, se não atirar, vai chegar no quartel e um colega vai dizer: 'Pô, você teve a chance e não matou, por quê?'", diz a major, que entrevistou centenas policiais. "Se esse tipo de ideia existe na sociedade, é claro que existe na polícia também."
"As polícias matam porque trabalham em locais violentos; porque há nas corporações uma doutrina do combate, e combate se faz atirando; porque não há fiscalização eficiente de suas atividades; e, sejamos sinceros, porque, na sociedade brasileira, isso responde a uma demanda social", avalia Ignácio Cano, da Uerj. "A polícia é violenta desde a sua formação."
"Ainda que consideravelmente melhorada, a polícia não goza de grande prestígio junto à população, sem dúvida por causa da lembrança de antigos abusos. É aliás difícil conseguir que os policiais façam uma distinção perfeita entre a razão e o erro, e sobretudo lhes fazem falta o tato e a amenidade no trato." O diagnóstico foi registrado em 1912 pelo viajante francês Paul Walle.
Mais de cem anos depois, ele permanece atual.
FERNANDA MENA, 37, é repórter especial da Folha.
EMMANUEL NASSAR, 66, é artista plástico.

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