O relógio tocou. 5h30min. Desativei o maldito despertador. Ainda tinha 5 ou 7 minutos. Sempre estava adiantado. Eu. Alguma luz além da janela de vidro aberta e suja, escondida atrás de uma cortina de plástico. Pardais também começavam o dia, mas com um barulhinho ao longe. Eu quieto, tentando uma conexão com hoje e ontem, quando a mulher de cabelos pintados exageradamente caminhava sob um céu nublado com o guarda-chuva aberto, com grandes óculos de sol, que lhe cobriam quase toda a face. Pele branca. No meio do pescoço, quase do tamanho da ponta do meu dedo indicador, um sinal. O que será que ela tinha nos olhos? Olhei na direção dos óculos escuros. Ela não moveu a cabeça, olhando para a mesma direção desde que subira o meio-fio da General Bittencourt. Olhava para o outro lado da avenida Mauro Ramos, a parada de ônibus para a Lagoa da Conceição? Ela passou com o seu guarda-chuva preto e grande sobre a cabeça, segurando-o com as duas mãos, como se prendesse a conta de um rosário. Seus imensos óculos pretos cobrindo quase todo o rosto, a sua pele extremamente branca e a sua pinta escura no pescoço. Deslocou uma leve brisa ao passar. Sem nenhum odor. Talvez usasse um perfume discreto, ou nada. Mas tinha um cheiro adocicado, quase de sangue. A poucos passos, caminhando lentamente, uma mulher com quase trinta anos. Olhos gigantes, azuis. Tristes. Cansados. Àquela hora da tarde, sob o céu cinzento e agoniado entre uma tempestade com raios e trovões e um vento Sul que levasse as nuvens para o mar, qualquer um de olhos claros deveria estar sofrendo. Claridade que fura as nuvens e reflete no asfalto e rebate nas janelas envidraçadas e espelhadas dos prédios do entorno. Cabelos escuros, tingidos desde a raiz, escorridos. Boca fechada. Lábios finos, extremamente apertados, com um leve toque de um batom vermelho já gasto de tanto passar a língua. Sob a camiseta de malha leve e fina, os peitos balançavam suavemente, raspando os bicos contra a trama do tecido. Passos muito curtos, como se fosse um esforço enorme arrancar um pé do chão e colocá-lo adiante do outro. Uma brisa morna e seus cabelos pouco se moveram. Olhou em meus olhos castanho-esverdeados com aqueles enormes olhos azuis e duas pequenas rugas apareceram na pele branca ao lado das sobrancelhas. Suas pernas ganharam agilidade e força. Ela foi em direção ao meio-fio da esquina com a avenida Mauro Ramos. Olhou o movimento dos carros e ônibus, e atravessou entre os canteiros. Sumiu na pequena multidão que se aglomerava sob o teto da parada de ônibus. Nuvens negras se moviam rapidamente no céu, vindas do Cambirela. Sem pressa, quadris largos enfiados em uma calça amarela de academia , cabelos desgrenhados e sujos, olhos pretos, desviando pequenas ranhuras da calçada com seus pés minúsculos, ela apontou o nariz pequeno e passou rapidamente. Olhou para trás, quase parando. Olhou para a minha bunda torcendo mais o pescoço. Assim, pisou em uma lajota quebrada da calçada. Deu passinhos mais curtos, como se mentalmente acertasse um passo, que errou ao ficar desatenta por alguns segundos. Sorri às 5h35min da manhã quando o gato começou a empurrar a porta e eu imaginei que ele viesse ronronar atravessando seus pelos em minhas pernas. Ele queria apenas a janela, de onde concentrava seus olhos nos voos dos pardais. Dava para ver a energia de sua espécie se concentrando em todo o corpo para um bote. Mas ele sabia que se alcançasse a presa, poderia morrer na queda. Eu, não.
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