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Amolo faca, tesoura e alicate

2 de Março de 2015, 14:33 , por Rafael Pisani Ribeiro - | No one following this article yet.
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Licenciado sob CC (by-nc-sa)

       Recentemente ocorreu um evento estranho. Não foi um estranho postivo e muito menos negativo. Na verdade, foi aquele tipo de evento que altera um pouco a trajetória da vida. Em termos classificatórios, um evento reflexivo. Parado em casa, sem muito o que fazer, a campainha toca. Certamente não foi um evento feliz, ouvi-la tocar. Queria ficar sozinho naquele momento e o toque de uma campainha poderia significar tudo, inclusive o fim de minha solidão intencional. Não uma solidão solitária, mas daquelas que se quer ter, daquelas que servem para dar um tempo a si mesmo. A escolha não era negar a presença do outro, e sim escolher a si mesmo, ao menos por algum tempo. Mas essas ideias não apareceram no momento. O que me veio foi o sentimento que pode ser traduzido pela seguinte frase: “Que incômodo, o que será?”. Porém, apesar de todas as circunstâncias não poderia deixar de atender a campainha.

       Decidi atender de uma forma mais prática. Uma forma em que nem mesmo ir ao portão era necessário. Bastou abrir a janela e perguntar: “Quem é?”. E eis que vem a resposta marcante. Mas antes, vamos a descrição da cena. Parei em frente à janela, a uma distância considerável do portão, que dirá do sujeito. Fiz a pergunta e eis que me aparece alguém segurando uma espécie de mala de ferramentas, provavelmente adequada ao trabalho e vestido de forma simples. Sua vestimenta não era nem feia nem bonita, alguns podiam julgar mal o indivíduo, mas era a sua roupa própria para o trabalho. Ora, ninguém faz trabalhos manuais de terno e gravata! Então, um senhor que aparentava ter próximo de 40 anos diz: “Amolo faca, tesoura e alicate”. E eu digo: “Não, hoje não senhor.”, de forma mais educada possível. Mas esse foi um evento no mínimo estranho.

       Primeiro a minha ação. Juro que a resposta não foi intencional, muito menos consciente, aliás, foi inconsciente, mas no sentido de automática, não demandou esforço algum de pensamento. A resposta em si também é estranha. Eu provavelmente contei uma mentira, ou melhor dizendo, uma meia verdade. De fato não era possível querer o serviço naquele dia. Primeiro porque não sou o responsável pela cozinha da casa e segundo porque não tinha dinheiro naquele momento. Isso justificava a resposta: “Não, hoje não senhor.”. Mas essa era a metade verdadeira dela. A metade mentirosa está em sua essência. Provavelmente a resposta correta seria: “Não, nunca senhor.” Não pelo sujeito em si, nem pela profissão, mas pelos motivos que justificam a meia verdade. Todavia, a resposta foi automática e não dá para mudar o passado. 

       Agora pelo lado dele fica um pouco mais estranho, quase uma questão social. O que pensaria esse senhor se dissesse: “Não, nunca senhor.”? Ficaria certamente desapontado, mas a resposta seria a mais sincera possível. Mas sem querer escolhi ser educado, e nesse caso fazer isso, significou ser mentiroso. Será que é sempre assim? Segundo, quantas vezes naquele dia, ou quem sabe naquela semana ele não teria ouvido a mesma frase? Será que foi mais do que uma resposta oposta? Ou pior, quantas pessoas disseram “Pode entrar?”. Esse já é um terceiro ponto a ser analisado. Continuemos nesse. Analisando a situação em si, valorizei o sujeito de uma forma extremamente baixa, ou melhor, o desvalorizei. Nem me dei ao esforço de abrir o portão para ele dizer o que queria ali. Tudo que fiz quanto a minha resposta, foi fazer como que um sim com a cabeça e sair, sem demonstrar emoção. Quem sabe tenha se acostumado com aquilo. E ainda, quem era aquele sujeito?

       Poderia ser um senhor aposentado querendo aumentar a renda, pois a aposentadoria não era suficiente. Isso é possível porque não sabia sua idade ao certo. Tudo que tenho sobre ele é um chute. Poderia também ser um pai de família desempregado tentando seu sustento, ou ao menos um que tentava aumentar a renda nesses tempos difíceis. O fato é que a aposentadoria de salário mínimo não é suficiente para se viver com qualidade, assim como o salário mínimo. E muito menos há espaço para todos no mercado de trabalho formal. Em todas as possibilidades, a de o sujeito ser alguém bem sucedido me parece mínima, cabendo a reflexão. Pensando agora no contexto geral, porque ao menos não fui abrir a porta?

       No meu caso específico já foi explicado anteriormente: a solidão desejada. Mas em outros, parece ter a ver com a noção de segurança, ou melhor, insegurança. As pessoas parecem estar com tanto medo, que negam a entrada de qualquer sujeito em sua casa, principalmente se não estiverem bem vestidos. A casa parece ter virado um espaço de segurança privada, na qual ninguém, exceto quem é permitido entra. Por essa razão, a frase extremamente objetiva do indivíduo: “Amolo faca, tesoura e alicate” parece não ter efeito. Não pela frase em si, pela lógica do marketing é o slogan perfeito, diz tudo que tem a oferecer. Talvez a razão seja contextual. Um sujeito aparentemente mal vestido toca a campainha e tenta vender algo em que é preciso entrar no domicílio. O produto não importa, não vai entrar em minha casa! Em certo grau, tal situação demonstra vários aspectos sociais.

       Um deles é a automatização de certas respostas, mesmo para aqueles com alguma capacidade reflexiva e consciência social. O outro, sobre um mercado de trabalho onde não há espaço para todos, e mesmo para quem o alcança, só é o suficiente para sobreviver. E o terceiro, sobre certa insegurança social, pessoas aprisionadas dentro de si e sua casa, sempre prevendo as possibilidades negativas. Estranho é que em termos mercadológicos, a pessoa fez da melhor forma possível, errando só na questão social que não tinha como saber. Tudo através do senso comum. Tinha um bom slogan, e dava a comodidade ao cliente de levar o serviço em casa.

       O mesmo ofício feito em lojas fixas custaria gasolina ou passagem de ida e volta e mais o serviço. Ou seja, em termos de comodidade estava perfeito, e essa ideia genial veio de alguém provavelmente sem estudos na área. Bastou pensar: “Que tal ir de casa em casa tentar ganhar dinheiro com o que faço?”, mas em uma linguagem bem mais simples, talvez “Vou trabalhar”. Apesar de tudo isso há algo extremamente pior. Dentre os que aceitam o serviço, há a possibilidade de querer pagar um valor injusto. Em todo grau, deixo meu respeito nesse texto a esses trabalhadores. Reparem, após tudo, o valor cobrado pelo serviço foi o que teve menos importância. Como fica o vendedor nessa história?

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Escrito por: Rafael Pisani

 


Fonte: Rafael Pisani Ribeiro