Três decisões no último semestre, envolvendo a extrapolação do poder estatal de punir, chamam a atenção para o trabalho da Defensoria Pública da Bahia (DPE/BA) na pequena cidade de Paripiranga, com 26 mil habitantes, a cerca de 350 km de Salvador. Nos três casos, a instituição garantiu liberdade para pessoas acusadas indevidamente.
A Defensoria pediu não apenas que fosse reconhecida a condição de usuário do acusado, como questionou a legitimidade do procedimento policial, feito sem autorização judicial, e solicitou a nulidade das provas obtidas ilegalmente. Ao avaliar o caso e os depoimentos colhidos, a juíza o absolveu, considerando ilícitas as provas e improcedente a denúncia.
A decisão considerou a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), “que tem reiteradamente decidido que a mera denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos preliminares indicativos de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado”.
“Sendo assim, uma vez que, no caso dos autos, não há nem sequer como inferir que o réu estivesse praticando o delito de tráfico de drogas, ou mesmo outro ato de caráter permanente, no interior da casa, entendo não haver razão séria para a mitigação da inviolabilidade do domicílio”, argumenta a sentença.
De acordo com o defensor Jaime Neto, que atua na área criminal em Paripiranga, a decisão é importante por considerar a jurisprudência do STJ, e isso representa um avanço na proteção aos direitos de usuários(as) dos serviços da DPE. Para ele, atuações como essa ajudam a minimizar a prática de abuso de poder e ilegalidade na atividade investigativa do estado.
“É fundamental ver o entendimento do STJ sendo aplicado em comarcas menores na Bahia, garantindo defesa técnica e qualificada aos usuários dos serviços da Defensoria Pública. Essa atuação serve de inspiração para conseguirmos mais decisões no mesmo sentido e para acender o debate sobre a necessidade de o procedimento penal ser feito dentro da legalidade”, destacou o defensor Sócrates Costa Neto, coordenador da 10º Regional da DPE/BA, sediada em Paulo Afonso.
Segunda instância
Em setembro de 2023, a DPE/BA obteve sucesso em conseguir, no STJ, o alvará de soltura para outra pessoa também acusada de tráfico de drogas, com base em denúncia anônima. No caso, também houve invasão da polícia não justificada no domicílio, sem autorização judicial.
“A mera denúncia anônima, aliada à mera apreensão de ‘uma bucha de maconha e R$ 17,00 (dezessete) reais’ na porta da residência, não autorizam presumir armazenamento de substância ilícita no domicílio e assim legitimar o ingresso de policiais”, destaca o ministro relator no processo.
A decisão alega que não é razoável um servidor da segurança pública ter total liberdade para, a partir de mera intuição, entrar de maneira forçada na residência de alguém e verificar se há ou não substância entorpecente.
Já em julho de 2023, também no STJ, a DPE/BA recorreu em um habeas corpus e conseguiu que fosse substituída a prisão preventiva do seu assistido por medidas alternativas. Na ocasião da prisão, foram encontradas alguns gramas de cocaína e maconha. No entanto, o histórico do acusado não indicava evidências de violência ou ameaça, as condições pessoais não eram desfavoráveis e não haviam elementos que indicassem medidas graves como a prisão.
Para a coordenadora da área penal da Instância Superior da DPE/BA, Rita Orge, o sucesso no trabalho feito no segundo grau de jurisdição é essencial para construir jurisprudências sólidas que garantam os direitos de usuários(as) da Defensoria ainda no primeiro grau.
De acordo com Rita Orge, as decisões devem estimular colegas da própria Instância e de outras comarcas (tanto pequenas quanto maiores, como Salvador e Feira de Santana) para que possam fundamentar ações em casos semelhantes e aumentar as chances de sucesso no acolhimento pelo Poder Judiciário.
O defensor Astolfo Santos Simões de Carvalho e a defensora Maria Betânia Ribeiro Ferreira foram os responsáveis pelos recursos no STJ, nestas duas ações advindas da comarca de Paripiranga no ano passado.
Ingresso em domicílio
Em 2010, o Supremo Tribunal Federal deu repercussão geral no julgamento de um caso em Rondônia, que determinou que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito (…)”.
O acórdão ainda estabelece que, se não houver justificativa, pode haver nulidade dos atos praticados e o agente pode sofrer penalidade disciplinar e responder civil e penalmente.
Por Lucas Fernandes.
Foto: Rafael Flores.