Fonte: Por Vicenç Navarro, na Carta Maior
É enorme a evidência de que a aplicação das políticas neoliberais conduz a um crescimento das desigualdades e da pobreza, bem como a um aumento do endividamento da população e o conseguinte aumento do setor bancário. As experiências na América Latina (onde essas políticas foram implementadas com toda intensidade no final do século XX) e na União Europeia (onde estão sendo aplicadas durante as duas últimas décadas) mostram claramente essa realidade. As desigualdades, tanto na América Latina de então como na União Europeia de agora, cresceram enormemente, bem como a pobreza e o setor financeiro.
Ao passo que muito já se escreveu sobre essa situação na União Europeia, pouco se conhece sobre as consequências do neoliberalismo na América Latina - o que é preocupante, pois muito do que está acontecendo agora na UE aconteceu antes na América Latina. Por isso, é de especial relevância estudar a experiência latino-americana. Uma dessas experiências que merece atenção especial é a resposta dos partidos de centro-esquerda e esquerda ao problema do aumento da pobreza que ocorreu predominantemente no período neoliberal. Antes de seguir com este tema, é importante fazer duas observações. Uma é que a América Latina é um continente muito diferente da Europa. E outra é que tanto a América Latina como a Europa são continentes com uma enorme variedade de países, o que dificulta falar de experiências latino-americanas sem imediatamente observar os diferentes matizes que existem entre os distintos países que compõem aquele continente.
O CASO DA AMÉRICA LATINA
Dito isto, permitam-me falar da situação social, enfatizando alguns elementos que essas experiências têm em comum. E um deles é o elevado nível de desigualdades existentes na grande maioria daqueles países, nível que se acentuou ainda mais durante a época neoliberal. Isso foi resultado da aplicação de políticas públicas neoliberais destinadas precisamente a aumentar as desigualdades e que criaram, como consequência, o enorme crescimento da pobreza. Vamos aos dados.
Veja como quiser, e escolha qualquer indicador. Todos apontam a América Latina hoje como um dos continentes com maiores desigualdades no mundo. E, entre eles, o Brasil alcança seu nível máximo. Seu índice Gini (o indicador mais comum utilizado para medir a desigualdade) é um dos mais altos do mundo - 0,529 em 2011. Quanto maior o número, maior o nível de desigualdade de um país (de 0 a 1).
Dizer que um país é muito desigual nos permite prever quais outros indicadores estarão presentes. Alta desigualdade quer dizer grande concentração da riqueza, o que quer dizer grande influência política dos mais ricos sobre o Estado e a vida política. Por sua vez, isso quer dizer políticas fiscais muito pouco progressivas e muito regressivas, o que quer dizer que o Estado receberá poucos recursos. Isso é o que acontece na Espanha (incluindo a Catalunha) e, em muito maior tamanho e dimensão, é também o que acontece no Brasil e na maioria dos países na América Latina. A receita estatal que deriva dos impostos diretos (isto é, os impostos sobre as rendas) representa apenas 19% de toda a renda do Estado no Brasil, uma porcentagem muito menor do que existe na média dos países da OCDE por impostos diretos (33%). Esta é uma das causas pelas quais os Estados são tão pobres.
A receita do Estado, no entanto, pode ser incrementada ou diminuir sem que haja mudanças significativas nas políticas fiscais. E isso é consequência do estado da economia. Por exemplo, se a economia cresce muito, com ela aumenta o consumo, bem como a receita estatal baseada no consumo, tal como ocorreu na Espanha na época do boom imobiliário. E isso é o que ocorreu também na América Latina quando houve um boom como consequência do aumento dos preços dos produtos que exportavam. Na realidade, a situação é inclusive mais crítica na América Latina. No Brasil, por exemplo, os impostos indiretos - impostos sobre o consumo - representam 49% de todos os impostos, uma porcentagem maior do que na média da OCDE (34%).
O QUE OS PARTIDOS DE ESQUERDA FIZERAM DIANTE DA POBREZA
O fracasso das políticas neoliberais explica a substituição dos partidos governantes que impuseram tais políticas por partidos de centro-esquerda e esquerda na grande maioria dos países da América Latina (a partir dos anos noventa). E os dados mostram as consequências dessa mudança. Segundo a CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e o Caribe), o gasto público social passou de $318 per capita em 1990 para $819 em 2008 (em dólares constantes) na média da América Latina. E, se olharmos o gasto público social como porcentagem de todo o gasto público, veremos que ele subiu, durante o mesmo período, de 45% para 63%. Este é um indicador da sensibilidade social das esquerdas.
Agora, o que também caracteriza as respostas das esquerdas ao enorme crescimento das desigualdades (resultado das políticas neoliberais) foi o grande predomínio dos programas antipobreza em suas políticas públicas - programas que se baseiam em transferências públicas a diferentes grupos populacionais, sujeitas a condições e exigências aos beneficiários segundo o programa. Em definitivo, são programas antipobreza orientados a diminuir a pobreza, quer mediante a transferência de fundos, quer oferecendo crédito ou cheques às famílias (no geral, geridos pela mãe ou esposa da família), garantindo um mínimo de renda. Na realidade, o gasto com esses programas antipobreza, tendo em vista a porcentagem do PIB, cresceu muito mais rapidamente (3,5% durante o período 1990-2008) que o que ia aos serviços públicos do Estado de Bem-Estar, tais como saúde, educação, moradia ou saneamento, entre outros. Assim, em saúde pública, cresceu apenas 1%, e em moradia apenas 0,4%. Como resultado disso, o gasto público social antipobreza (programas de transferência de dinheiro a populações pobres) passou a representar mais de 50% de todo o incremento do gasto público social entre 1990 e 2008. Essa situação levou a certas situações contraditórias (como bem assinalou Lena Lavinas em seu excelente artigo "21st Century Welfare", no New Left Review, nov./dez. 2013, do qual extraio a maioria dos dados que apresento neste artigo), tais como o fato de algumas transferências públicas às famílias serem condicionadas a que as famílias enviem suas crianças às escolas ou centros públicos de saúde quando, na realidade, não existem tais centros ou escolas nos lugares onde essas famílias moram.
ESTES PROGRAMAS FORAM EXITOSOS?
A resposta a esta pergunta não pode ser um simples sim ou não. A pobreza diminuiu na maioria desses países. Agora, o que parece evidente, a partir da evidência existente, é que, exceto no caso da pobreza extrema, na pobreza geral seu impacto redutivo foi limitado. Outros fatores tiveram um papel muito maior nessa redução da pobreza. Em um dos estudos mais detalhados e rigorosos sobre as causas da diminuição da pobreza no Brasil, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (citado por Lavinas), são documentadas as principais causas do descenso da pobreza no Brasil desde 2001, que foram: (1) o crescimento do emprego e dos salários como consequência do aumento do crescimento econômico; (2) o aumento do salário mínimo, que aumentou 94% no período 2001-2012; e, muito em terceiro lugar, (3) os programas antipobreza. O maior impacto deste último tipo de programa foi entre a pobreza extrema, mas entre a pobreza geral foi muito limitado.
Por outro lado, a prioridade conferida aos programas de transferências públicas para reduzir a pobreza foi implementada ao mesmo tempo que manteve (e inclusive acentuou) a pobreza dos serviços públicos do Estado de Bem-Estar, tais como saúde e educação. Assim, no Brasil, o gasto público com saúde (um dos mais baixos na América Latina) passou de representar 13% de todo o gasto público em 2011 para 11% em 2010 (o gasto público do governo federal em saúde representa apenas 0,8% do PIB). Lavinas critica que, enquanto o consumo de celulares, computadores e lavadoras cresceu exponencialmente, o acesso da população a água potável ou a serviços de saneamento apenas melhorou. Uma consequência desse empobrecimento dos serviços públicos foi o notável aumento dos serviços privados, com um crescimento muito forte dos planos de saúde privados e um aumento do crédito para financiá-los (com o conseguinte aumento no setor financeiro).
A escassa prioridade dada por partidos de esquerda às políticas públicas redistributivas e às reformas fiscais que permitam, além de maiores receitas do Estado, conseguir maiores efeitos redistributivos, impossibilitou o estabelecimento de programas universais - isto é, serviços públicos de saúde e educação, por exemplo, para todos os cidadãos.
Esses programas, junto com programas de criação de emprego e aumentos dos salários, têm maior aprovação popular, maior impacto redutor da pobreza e maior impacto redistributivos do que projetos de apoio a setores vulneráveis por meio de programas de transferência de dinheiro aos pobres - tal como demonstramos Walter Korpi, Joakim Palme e eu, entre outros. Estes últimos têm um impacto menor em reduzir a pobreza e em diminuir as desigualdades. A evidência disso na América Latina e na Europa é robusta e convincente. Enquanto que a pobreza extrema diminuiu, as desigualdades permanecem muito elevadas, e os serviços públicos permanecem subfinanciados.
Os países que têm menos pobreza, como os países nórdicos da Europa, alcançaram esse resultado por meio do primeiro, e não do segundo tipo de intervenção. O enorme crescimento das desigualdades e da pobreza na Espanha (incluindo a Catalunha) não se resolverá mediante transferência de fundos às populações pobres para manter um nível (geralmente muito mínimo) de renda, mas por meio de políticas macroeconômicas de criação de emprego e da alta de salários (com um aumento considerável do salário mínimo, entre outras intervenções), bem como de políticas sociais de caráter universal, com correção do enorme déficit social que existe na Espanha (incluindo a Catalunha).
Tradução de Daniella Cambaúva
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