No país da casa-grande e da senzala, falhou quem disse empenhar-se pela igualdade e não cumpriu a promessa. A maioria dos brasileiros ainda não alcançou a consciência da cidadania
Por Mino Carta, na CartaCapital
Fosse este país aquele que haveria de ser, os brasileiros teriam paralisado o Brasil desde a noite do dia 11, sem arredar pé das ruas e praças até o momento. Em um punhado de horas, o Senado enterrou a CLT, garantia de trabalho oferecida por Getúlio Vargas à classe operária, um tribunal inspirado nos ditames do Santo Ofício para sentenciar os hereges aos autos de fé condenou sem provas o presidente mais amado do Brasil.
Uma manifestação fluvial se esticaria do Oiapoque ao Chuí, cheia de som e fúria, significando tudo.O Brasil não é, porém, o país que mereceria ser por mil razões, a começar pelas infinitas dádivas recebidas da natureza. De fato, é terra de predação há cindo séculos, dos quais três e meio foram de escravidão.
E casa-grande e senzala continuam de pé, donde a facilidade de entender por que a maioria de um povo que ainda traz nos lombos a marca da chibata não lota ruas e praças e põe a tremer o solo pisado e o coração dos senhores.
É exatamente nesta inércia, nesta apatia, neste fatal alheamento, que a casa-grande aposta, na ignorância de quantos, repito, a maioria, não têm a consciência da cidadania. Daí haver explicações, mas não consolam. Além do mais, os senhores contam com porta-vozes munidos das melhores armas da comunicação, os pseudojornalistas da mídia nativa, assim como não hesitam em recorrer às soluções mais torpes, aos ardis mais velhacos, para impor seus interesses e garantir sua hegemonia.
Em 1964, apelaram para os generais, dispostos a comandar um exército de ocupação para o sossego da casa-grande e de Tio Sam. Agora, no estado de exceção a resultar do golpe de 2016, elegem à condição de jagunços os próprios poderes da República, entregues a quadrilhas mafiosas. Mesmo nos mais sombrios pesadelos, imprensado entre súcubos e íncubos, jamais imaginei que o País pudesse precipitar em uma situação tão aviltante, e vergonhosa para todos os cidadãos de boa vontade. E aqui, sim, refiro-me à minoria.
Ao longo da vida, expus à luz do sol minha fé de indivíduo e de jornalista, uma só, a bem da verdade. No final de 2005, ao entrevistar Lula no Palácio do Planalto em meio à crise do chamado mensalão, lá pelas tantas o presidente disse textualmente: “Você sabe, eu nunca fui de esquerda”.
Retruquei para evocar uma lição de Norberto Bobbio, a remontar à queda do Muro de Berlim, destinada a contestar quem pretendia decretar o falecimento das ideologias: ser de esquerda significa, antes de tudo, empenhar-se pela igualdade. E Lula corrigiu-se: “Se for assim, sou de esquerda”.
Quando nasceu o PT, 37 anos atrás, fiquei muito satisfeito, surgia, no meu entendimento, um bastião da luta pela igualdade, primeiro e maior problema a infelicitar o Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, graças à inextinguível prepotência da casa-grande.
Imaginava um confronto de larga duração, direto e áspero, e longo porque sem esperança de conciliação, no Brasil possível somente entre os moradores da mansão senhorial por ocasião de divergências extemporâneas. Chance de negociar com a casa-grande só haveria depois de abrir os olhos do povo humilhado e prostrado, a começar pelos trabalhadores.É uma pressão popular cada vez mais consistente que leva os senhores a desguarnecer os dedos de alguns anéis. É evidente que nestes 37 anos nada mudou, ou melhor, mudou para pior, e muito.
Mantenho com Lula uma sólida amizade de quatro décadas e me orgulho de ter sido o primeiro jornalista a lhe perceber o extraordinário carisma e QI elevado. O único, autêntico líder popular brasileiro. Talvez surjam outros, embora seja grave que não tenham assumido até agora a ribalta. É hora, tal é minha visão de jornalista e de cidadão, de mergulhar em um profundo exame de consciência, desabrido e sincero, entre o fígado e a alma.
CartaCapital, leitoras e leitores sabem, apoiou Lula na eleição e na reeleição, e o apoiaria hoje, por ter sido, inclusive, o melhor presidente que o Brasil teve. Nem por isso deixei de escrever neste espaço que no poder o PT portou-se como todos os demais pseudopartidos brasileiros. E que não soube combater dignamente a batalha do impeachment de Dilma Rousseff.
E que, de modo geral, portou-se de forma tíbia nos momentos cruciais. O próprio Lula não enfrentou a ameaça da Inquisição com o peso da sua liderança, como não lhe percebesse a extraordinária dimensão, ou confiasse cegamente na negociação de bastidor.
Fico pasmo, hoje, ao me perguntar onde estão aqueles 90% de eleitores que choraram com Lula, quando, em companhia de Marisa, desceu pela última vez a rampa do Planalto para cair nos braços do povo aglomerado na Praça dos Três Poderes. E, na minha dolorosa perplexidade, pergunto aos meus botões: onde está o erro?É de uma regra transcendente caber a um partido de esquerda despertar o povo e ao sindicato defender seus representados até o derradeiro alento. Não foi o que se deu, donde a necessidade instransponível de um mea-culpa.
Na minha visão, insisto, de jornalista e cidadão, é hora de encarar a realidade, repensar em táticas e estratégias, voltar aos propósitos originais. É hora de autocrítica e renovação, para despir-se corajosamente da tola aposta em algum gênero de acordo com a casa-grande, a qual não é, definitivamente, de direita, é simplesmente o poder diante de uma nação ignara e aturdida. Por outro lado, com raras e honrosas exceções, quem se disse de esquerda mentiu.
Tempos atrás decidi parar de escrever o que repetia à exaustão, vencido pelo desalento. Os eventos me forçam ao retorno. Na selva imersa em negrume, dois raios de luz. Seis senadoras assumem à força as cadeiras da presidência na sessão do dia 11, encabeçadas pela nova presidente do PT, Gleisi Hoffmann: elas sabem que qualquer tentativa de negociar com os prepostos da casa-grande destina-se ao fracasso.
Dias antes, ouço da boca do presidente da CUT, Vagner Freitas, sentado na plateia do auditório paulista da entidade, a seguinte sentença: “O PT esteve no poder por 13 anos e meio, e não soube, ou não quis, aplicar a própria Constituição para domar a Globo e o resto da mídia”. Disse ainda ter às vezes pensado que o PT gostava mesmo era do Plim-Plim. É bom introito para uma desassombrada autocrítica.
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