A expressão que dá título a esta croniqueta de cotidianos urbanos me ocorreu quando lembrei que o deputado gaúcho Nelson Marchezan, presidente da Câmara Federal surgiu, em 1983, com a genial ideia de reeleição do general Figueiredo para combater a ambição eleitoral de Paulo Maluf e estender a ditadura coberta com a farda verde oliva por mais alguns anos.
O desejo do pioneiro Marchi, já falecido, logo compartilhado por teóricos do regime de exceção, poderia ter mudado a cronologia daquele golpe, alterando mesmo a própria história recente do Brasil.
Entretanto, dois fatores principais frustraram o prócer arenista. Primeiro, com uma inflação de 211% e uma crise econômica sem similar no país, a ditadura já soçobrava em meio a escombros e ruínas gerando mobilizações populares que a Globo sonegava à população.
Segundo, o próprio Figueiredo viu sua convicção abalada pela frágil saúde física. No meio do ano, depois de uma cirurgia de coluna, rumou para os Estados Unidos, colocou marcapassos e implantou uma mamária; ao voltar não era mais o militar atlético que posava erguendo halteres para mostrar força física na intenção de intimidar os comandados civis.
Mas, além disso, o mau humor do general ditador se agravava visivelmente em declarações mais furibundas e contraditórias e em retratos em que aparecia envelhecido e amuado. Pior ainda: Figueiredo carregava, como um estandarte desrespeitoso à população, a estampa espraiada aos quatro cantos. “Prefiro o cheiro de cavalo ao cheiro de povo”, que proclamara, sem nenhum constrangimento.
Não era bem uma novidade verborrágica. “A democracia seria boa se não fosse o sovaco”, repetia sempre o governador mineiro Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, um dos principais articuladores da Revolução de 30 -mais conhecido pela frase “Façamos a revolução antes que o povo a faça”.
Na era moderna de 2016, prefeitos eleitos e candidatos de direita também elaboraram conceitos públicos similares acerca não só do odor mas das características dos ocupantes do andar de baixo da casa grande.
Greca, prefeito ungido de Curitiba, disse que vomitou ao carregar um pobre em seu carro.
Crivella, pastor, do Rio, filosofou sobre homossexuais e viciados culpando os demônios.
Pozzobom, de Santa Maria, ameaçou, após a quarta gestação da sua empregada grávida, que iria dar-lhe cola super bonder.
Junior, de Porto Alegre, cunhou “vagabundos e quem menos trabalha” para referir-se a funcionários públicos da municipalidade.
Em São Paulo, que elegeu um milionário para prefeito, sua oponente do PMDB foi flagrada com o rosto virado, sem esconder o nojo provocado pela iminência do abraço de um popular.
Chego a imaginar o que aconteceria à segurança da RBS se um grupo de sem tetos ingressasse no ‘solo sagrado’ da redação de Zero Hora, com suores e vestimentas rotas nos corpos sem perfumaria, desfilando entre as celebridades costumeiras de jogadores de futebol, artistas, empresários, políticos, em meio ao som de violinos de concertos vespertinos.
Mas, afinal, porque mistura-se aqui, nesta amarga salada de frutas espinhosas, pela ordem, Marchezan, Figueiredo, Andrada, Dória, Pozzobom, Marta, a ditadura, Zero Hora, RBS, PMDB os paneleiros dos Jardins paulistas, do Parcão gaudério e do cavalos de ração do Jockey Clube de gala, todos dotados de delicadas narinas?
Porque é impossível eu imaginar qualquer um deles, e muitos outros mais, da corriola golpista, de divergentes siglas e colores diferentes, a sensibilidade genuína de Lula, com o corpo e alma esmagados pelo abraço coletivo, sem temer a democracia que funciona com o povo e seu cheiro de sovaco.