No Brasil, o processo legislativo muitas vezes caminha sobre a linha tênue entre a intenção política e o desastre jurídico. Recentemente, o debate sobre a revisão da dosimetria das penas e possíveis anistias para os envolvidos nos atos antidemocráticos (tentativa de golpe de Estado) trouxe à tona uma aberração jurídica: a possibilidade real de que, para salvar aliados políticos, o Legislativo acabe estendendo um tapete vermelho para a alta cúpula do crime organizado, incluindo figuras como Marcola e Fernandinho Beira-Mar.
Este cenário não é apenas uma ironia do destino; é o resultado de um malabarismo legislativo que ignora um princípio básico do Direito Penal: a lei vale para todos.
Para entender o perigo, é preciso afastar a paixão política e olhar para a técnica jurídica. No Direito Penal brasileiro, vigora o princípio da retroatividade da lei mais benéfica (novatio legis in melius). Isso significa que, se o Congresso aprovar uma lei que suaviza a pena para crimes contra o Estado Democrático de Direito, ou que altera o cálculo da dosimetria para torná-lo menos rigoroso — visando aliviar a situação dos “patriotas” do 8 de janeiro —, essa nova regra automaticamente se aplica a todos os condenados por crimes semelhantes ou cujas sentenças dependam da mesma estrutura de cálculo.
A crítica reside aqui: não se faz lei penal “com nome e sobrenome”. Ao tentar criar um “bote salva-vidas” para um grupo político específico, o Congresso pode estar construindo um transatlântico de benefícios para toda a população carcerária, incluindo aqueles que o próprio campo conservador jura combater.
O ponto mais gritante dessa manobra é a contradição ideológica. Muitos dos parlamentares que articulam a redução de penas ou a anistia para os golpistas são os mesmos que construíram suas carreiras sob o slogan de “tolerância zero”, “bandido bom é bandido morto” e endurecimento penal.
No entanto, diante da necessidade de proteger sua base eleitoral e seus aliados investigados, a bandeira da segurança pública é discretamente arriada.
O Risco Real: Se a legislação alterar a definição de organização criminosa, terrorismo ou atos contra o Estado para exigir, por exemplo, um nível de violência inalcançável para a condenação, as defesas de líderes do PCC (Primeiro Comando da Capital) e do CV (Comando Vermelho) terão munição de sobra.
O Efeito Cascata: Marcola, Beira-Mar e outros líderes de facções possuem condenações somadas que ultrapassam centenas de anos. Qualquer alteração na base de cálculo da pena (dosimetria) ou na progressão de regime, feita às pressas para beneficiar os réus do golpe, resultará em recálculos que podem antecipar a liberdade desses líderes em anos ou décadas.
A proposta de reduzir danos para quem atentou contra a democracia ignora a gravidade do precedente que se abre. Se tentar depor um governo legitimamente eleito passa a ser tratado como um “delito menor” ou merecedor de perdão imediato, o Estado perde sua autoridade para punir insurgências futuras.
Mais grave ainda é o “efeito colateral” de beneficiar o crime organizado. O cidadão comum, que sofre diariamente com a violência urbana gerada pelo tráfico e pelas milícias, torna-se refém de um jogo político em Brasília. Enquanto políticos debatem como livrar seus pares da cadeia, advogados criminalistas de grandes facções aguardam ansiosamente a promulgação dessas leis para peticionar em favor de seus clientes.
O Congresso não pode legislar olhando para o espelho. Quando a lei é desenhada para beneficiar o “meu criminoso de estimação”, ela inevitavelmente beneficia o “criminoso que eu odeio”.
A tentativa de suavizar a punição para golpistas, sob o risco de beneficiar chefes do narcotráfico, é a prova cabal de que parte da classe política brasileira perdeu a noção de responsabilidade pública.
Não se trata apenas de “perdoar” um erro político; trata-se de enfraquecer a estrutura penal do país. Se essa legislação avançar, a história registrará que, na ânsia de salvar os responsáveis por atacar as instituições democráticas, o Legislativo brasileiro abriu as celas para os maiores inimigos da sociedade. O preço dessa impunidade seletiva será cobrado não nas urnas, mas na segurança das ruas.
