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Folclore é o jornalismo do povo

22 de Abril de 2019, 9:28 , por Luíz Müller Blog - | No one following this article yet.
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Sobre ambos, a censura é inaceitável
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Do Colecionador de Sacis

Por Andriolli Costa

Em imagens que circulam pelas redes sociais, a Guarda Civil Municipal de Ouro Preto, em Minas Gerais, aparece pisoteando e desfazendo tapetes de serragem que na região são tradicionalmente montados na madrugada do domingo de Páscoa. O alvo da ação foi um tapete em específico, que prestava homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada juntamente com seu motorista por ex-policiais militares em 2018.

Não foi a primeira vez que ocorreu censura semelhante. No ano passado, um tapete que lembrava a indignação pela morte de um jovem pela PM de Ouro Preto e novamente outro dedicado à vereadora do Psol também foram destruídos pela Guarda. A orientação teria sido a de evitar destruir a tradição por meio de manifestações políticas, fingindo ignorar que a própria censura movimenta o teatro político com uma violência das mais graves.

Em uma nota vergonhosa, a Guarda Municipal reforça:

“Quanto ao episódio onde os agentes municipais desmancham desenhos de cunho político entre outros que nenhuma relação possuem com os “tapetes devocionais”, informamos que a liberdade de expressão não é absoluta ainda mais quando outros direitos estão sendo afetados. O recado já foi dado em 2018, em 2019 não foi diferente. Respeitem Ouro Preto, nossas tradições. Vale salientar que os guardas só desmancharam os tapetes com os pés, porque não tínhamos outro instrumento”.

Qual afinal seria o “outro direito” reclamado pela corporação? Talvez o de assassinar pessoas sem questionamento, como propõe o Ministro da Justiça.  Mas para além disso há uma dimensão de ignorância conservadora que atravessa a cultura popular disfarçada de respeito. Ignoram, todavia, o básico: Folclore não é alienação. Nunca foi.

Atualidade na Tradição

Ao tomar conhecimento do caso em Ouro Preto, lembrei imediatamente do trabalho de um pesquisador sobre o qual tive a oportunidade de estudar no doutorado. Trata-se do pernambucano Luiz Beltrão, considerado o primeiro doutor em Comunicação do Brasil. Criador do conceito de Folkcomunicação, a comunicação dos marginalizados, ele defendia: folclore era o jornalismo do povo.

A frase pode causar estranhamento, e é muito este o seu objetivo. Qual relação poderia haver entre algo tão imediato quanto a cobertura jornalística com algo ancestral como as culturas populares? Realmente parecem temporalidades pouco compatíveis em um primeiro olhar. No entanto, basta condicionar o olhar para perceber: A tradição manifesta é prenhe de atualidade.

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Exemplos da atualidade dessa crítica não falta. Em 2018 visitei a cidade de Flores da Cunha, no interior do Rio Grande do Sul durante a semana de Corpus Christi – e é este outro período no qual a tradição portuguesa dos tapetes de serragem persiste. Ao lado de Nossas Senhoras e representações do Espírito Santo, vi imagens bem mais contundentes.

Em um deles, o país era atacado por ratos feitos de bombril. Em outro, luvas cirúrgicas manchadas de sangue atravessavam uma representação da bandeira nacional. Não poderia ser diferente: a missa aconteceu em meio à crise do desabastecimento gerada pela greve dos caminhoneiros e à inabilidade do governo de a gerenciar.

E o que não dizer da clássica Malhação do Judas? O boneco que é espancado e queimado, numa catarse coletiva da população, é tradicionalmente inspirado por uma crítica política. Às vezes é um personagem criado para representar uma indignação da comunidade (buracos na rua, violência), em outras representa diretamente um político, personalidade pública e até jogador de futebol.

Este ano uma das figuras mais representadas no Sábado de Aleluia foi o presidente Jair Bolsonaro. Cada boneco traz sua própria crítica a um aspecto do governo: das reformas às relações internacionais;  da polícia armamentícia ao preço dos combustíveis.

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Através do folclore, tal qual o bom jornalismo deveria fazer, podemos escutar a respiração do social. Quem define, afinal, o que é tradição viva não é a Guarda, não é a prefeitura e, acreditem, não é nem mesmo a Igreja. É o povo. Se não faz sentido para o povo, desaparece. E não há sermão em missa ou projeto de lei capaz de fazer recuperar algo que a comunidade não reconhece como seu.

Se o povo sofre, isso transparece na cultura popular. Pois a tradição viva nunca é mera reminiscência anacrônica do passado, é sempre comentário do presente. É a partir dela que o povo compartilha anseios, medos e frustrações de sua comunidade. Impedir isso é  tentar calar um grito preso na garganta. Chutar tapetes de serragem é tão grave quanto impedir a circulação de um jornal. Em ambos os casos, a censura é inaceitável.


Fonte: https://luizmuller.com/2019/04/22/folclore-e-o-jornalismo-do-povo/

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