Por Adeli Sell*
I
Outrora tenra (a pele), agora da velhice …
os cabelos de negros se tornaram brancos.
Pesado se me fez o peito, e os joelhos não me carregam –
os que um dia foram ágeis no dançar, como os da corça.
Estas coisas lamento sem cansar, mas que posso fazer?
Não é possível, sendo humano, ser desprovido da velhice.
(Safo, “Canção sobre a velhice”, 2013) – 1
Safo morreu na sua ilha grega de Lesbos em 570 a.C. Logo se vê que o tema da velhice vem de longe.
A média de vida girava pelos 30 anos. Tinha mortalidade infantil, pestes, mortos em guerras. No Rio Grande do Sul, tem-se uma média de 77 anos. Porto Alegre, 72, sendo a capital mais longeva do país. Do total de habitantes, 15% são idosos.
Com as enchentes de maio de 2024 ficou evidente a falta de preparo da cidade e das pessoas para intercorrências climáticas e os cuidados com as pessoas idosas.
O mais chocante é que, no site da Prefeitura, há apenas uma página em seu sítio eletrônico que diz: Atendimento ao Idoso – sem quaisquer responsáveis, sem fone, sem whatsapp, sem e-mails.
Mais razões para citar Safo.
II
Há, no Brasil, uma frenética busca da “juventude eterna”, da beleza a qualquer preço; país das clínicas de cirurgia plástica, sendo o segundo país em procedimentos, perdendo para os EUA – que tem 100 milhões de habitantes a mais. Manchete do jornal nos arrepia: Cresce em 390% número de procedimentos estéticos no Brasil!
Dado a estas verdadeiras loucuras pela juventude e beleza acontecem acidentes, deformações e mortes. Recentemente, um jovem morreu num procedimento de “peeling de fenol”.
Felizmente, estamos vendo uma mudança, com pessoas idosas assumindo suas rugas, seus cabelos prateados e sem medo de usar uma bengala.
III
Arquíloco de Paros, que nasceu na Grécia 10 anos depois da morte de Safo, é cruel com a mulher idosa:
Tua pele delicada não mais floresce,
pois já se torna murcha e o sulco da velhice atroz te destrói.
Entenda isso agora: a Neóbule
que outro homem possua
Ai! Ai! Mulher passada, tão débil,
tua flor virginal já murchou e
o encanto, que outrora existia.
Sendo tu uma velha, não te untes com perfume.
(Arquíloco, 2016) – 2
É a mulher vista como objeto, prato para o desejo, que sofre pressão social, para ter o nariz arrebitado, os lábios grossos, com preenchimento labial e o botox para esconder rugas.
Tem mais: os peitos devem estar duros e para cima, a qualquer preço, cirurgias invasivas como as que tiram a gordura da cintura. Nem falaremos do bumbum…
Enquanto isso, falta a cultura para uma boa e saudável alimentação. As gurias vão ao McDonald’s ou ao Burguer King ou ao boteco para comer frituras e mais frituras. Depois, vem a clínica.
O envelhecimento é inexorável, logo, “a flor virginal murcha” e a pessoa idosa (velha) pode e deve se untar e perfumar.
Simone de Beauvoir que tanto pensou o tema da mulher, foi assertiva em relação ao homem velho:
“O velho, como uma categoria social, nunca interveio no correr do mundo. Enquanto ele conserva alguma produtividade, permanece integrado à coletividade e não se distingue dela: é um homem adulto de idade avançada. Quando perde suas capacidades, ele surge como o outro; ele se torna então, de forma mais radical que a mulher, um objeto puro; ela é necessária para a sociedade, já ele não serve para nada: nem moeda de troca, nem reprodutor, nem produtor, ele não é nada mais que um fardo. (BEAUVOIR, 1970)” – 3
“Fardo”: assim é que muitos filhos e netos, parentes, vizinhos veem as pessoas idosas, ainda nos dias atuais. É verdade que os “velhos” de hoje não se planejaram, não se prepararam: era pedir demais; Somos um país em que é preciso trabalhar e trabalhar para sobreviver, além deste aspecto doentio de “workaholic” que nos persegue. Se um finlandês chegar aqui e ver esta maratona de idas e vindas ao trabalho diria que temos que frequentar psicanalistas.
De acordo com Esny Soares (4), no Ocidente, o preconceito contra o idoso é mais descarado. Em uma sociedade de consumo, “o idoso é alguém que não tem nada a contribuir. Todo o seu legado e sua contribuição são renegados, e o idoso considerado um estorvo para a sociedade”.
“Estorvo”: daí decorrem abandonos, maus tratos, desdém que leva ao vazio existencial ou tédio. Ou pior, exploração dos recursos dos idosos, sem dar o mínimo existencial aos mesmos. Nesta relação vale o conceito de ‘banalidade do mal” de Hannah Arendt. Ou seja, um mal que virou comum de ser praticado.
IV
Em nossa literatura, temos autores/as que têm um tratamento adequado como foi o caso de Clarice Lispector, observamos a sua sensibilidade ao escrever sobre as angústias, os problemas e os dilemas de senhoras ricas e pobres que passam por situações semelhantes a da maioria dos idosos no Brasil até os dias atuais.
Citaria o conto “Feliz aniversário”: uma trama que envolve o sofrimento provocado pela sensação de solidão e falta de afeto vivenciado por dona Anita, idosa de 89 anos, que contempla de forma deprimente a sua festa de aniversário, mais especificamente, a forma como seus familiares se comportam.
“(…) Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos — nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os presentes, amarga, irônica(…)”
O conto é tocante. Faz-nos lembrar de (quase) todas as famílias. Sempre haverá alguém, melhor alguns, para os quais é um drama ir à festa dos 89 ou 90. Vejam só. O mesmo acontece nos finais de ano, no Natal, quando a neta não liga. No aniversário liga às 11 horas da noite. Uma afronta!
N o caso da personagem de Clarice pode-se pensar numa pessoa que vai viver, apesar dos parentes.
Talvez os nossos idosos vão sair ao parque aos domingos, vão participar de um coral, fazer um trabalho comunitário.
Outros, mais recatados, farão palavras cruzadas.
Talvez alguns se voltem às leituras não feitas.
É luta contra o tédio, contra o vazio existencial, contra a solidão.
V
E o que seria o tédio na vida da pessoa idosa? Para Schopenhauer: “O tédio não é nada além da sensação do vazio da existência”.
Fala-se que o “tédio é sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio”, um “vazio existencial”. Há quem fale que a pessoa idosa vive de tédio. Será? Alguns idosos devem estar dia a dia a fazer balanços de sua existência, remoendo feitos (errados) e não feitos, amores (não alcançados) e desamores. Aí não seria um pensar sem raciocínio. Seria o amargor das vivências ou frustrações. Mas a roda da História só gira para frente. Nada a fazer sobre o passado, a não ser aprender com ele para não repetir erros. Nada mais.
A personagem de Clarice Lispector tem consciência de que são seus filhos e netos no “Feliz aniversário” e vê neles um bando…
Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. “Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família.”
VI
E solidão? A palavra no cotidiano nos remete ao estado de quem se acha ou se sente desacompanhado ou só, em isolamento. Não é?
Visto desta maneira, muitos idosos vivem sós, isolados, desacompanhados. Alguns entre eles saberão viver a velhice com seus animais de estimação, logo não estão sós. Outros vão ler o que gostariam de ter feito na juventude, logo estão na companhia de livros, viajando. Outros vendo séries na TV. Claro que tem os que veem estes programas horrorosos da TV aberta.
Estar morando sozinhos não significa que as pessoas estejam sós ou que vivam na solidão. É comum que vizinhos denunciem ao COMUI, aos CRAS e às Delegacias que há idosos “abandonados” pelos filhos. É justo que o façam quando o fato é real. Mas muitas vezes, a opção do idoso é morar ali onde sempre morou. Aí cabe aos filhos ligar, visitar, buscar, tratar da convivência.
Cada vez mais haverá casos de pessoas morando sós, por isso o salutar debate sobre as habitações colaborativas, vidas comunitárias, com espaços reservados e outros de uso comum.
VII
A maior enchente de todos os tempos em Porto Alegre, a de maio de 2024, nos trouxe ensinamentos como a falta de preparação dos idosos para situações de resgate, de seus e dos serviços públicos. Vimos formas inadequadas de tratar a pessoa idosa. Muitos levados a abrigos sem condições, quando os poderes públicos deveriam ter preparado outros espaços e outras formas de acolhimento.
Cuidados com as pessoas idosas, incluindo, agora, assistência psicossocial, casa, como preparo para futuros infortúnios climáticos será pauta das eleições deste e dos anos vindouros.
Somos mais, somos um contingente que começa a mudar, pensar o aqui e agora, como elaborando para novas vivências futuras.
Acordamos para o drama de vida de 15% da população da capital. São muitos. Somos muitos.
*Adeli Sell é professor, escritor e bacharel em Direito, vereador do PT na capital.