Por Júlio Garcia*
Outro dia, ao postar o poema ‘Inverno em Porto Alegre’, veio-me a lembrança um episódio ocorrido ainda na época da nada saudosa ditadura militar.
Já faz um bom tempo, mas, como diria um amigo meu, ‘parece que foi ontem!’
O ano era 1980, se não estou enganado.
A Argentina vivia, assim como o Brasil, sob as botas implacáveis de uma ditadura militar.
O ditador de plantão era o general Videla, o ‘pantera cor-de-rosa’.
No Brasil, era o general Figueiredo (aquele que preferia sentir o ‘cheiro de cavalo’ ao invés do ‘cheiro do povo’).
A tortura, o seqüestro e o assassinato dos presos políticos corriam soltos nos dois países, mas com maior intensidade no país dos nossos ‘hermanos’.
Pois o Videla resolveu fazer uma visita ao seu ‘colega’ brasileiro. E resolveu dar uma ‘esticada’ até Porto Alegre, onde participaria de algumas ‘solenidades’…
Resolvemos então, em solidariedade ao povo argentino, organizar um protesto contra a presença do ditador no solo brasileiro.
O ato político começou por volta do meio-dia no pátio da Faculdade de Direito da UFRGS.
Começou com pouco mais de 50 pessoas, a absoluta maioria composta por estudantes de várias faculdades, a maioria da ‘federal’, membros de DCEs, mais alguns secundaristas e militantes de organizações de esquerda. Dentre eles, na vanguarda do movimento, lembro do companheiro Adeli Sell (então professor e liderança da corrente estudantil ‘Liberdade e Luta’, a famosa ‘Libelu’, que eu, recém chegado de Santiago, também integrava). Adeli é hoje vereador em Porto Alegre, já no seu quarto mandato. Também presente o companheiro Luiz Marques (então Presidente do DCE da UFRGS, hoje professor de Filosofia e escritor).
Decidimos, após alguns discursos inflamados contra a ditadura de ‘lá e cá’, iniciarmos mais uma passeata.
Começamos a ‘subir’ a Avenida João Pessoa: passo acelerado, palavras-de-ordem, megafones a mil; os estudantes que estavam na ‘fila’ do RU da UFRGS foram chamados a participar; alguns populares incorporaram-se, a adesão foi aumentando…
Quando a passeata chegou à esquina com a André da Rocha já contava com mais de duzentas pessoas. Para nós, já era uma multidão (segundo os critérios ‘drumondianos’)!
Eu integrava o ‘serviço de ordem’ (segurança) da passeata. Fomos avisados que a tropa-de-choque da Brigada Militar deslocava-se pela Salgado Filho e vinha em nossa direção.
Paramos momentaneamente a passeata para organizar a resistência. A orientação era ‘não aceitar provocação’, mas também não recuar.
Gritamos os slogans de praxe: ‘soldado da brigada, também é explorado’, ‘o povo, unido, jamais será vencido’, ‘o povo, na rua, derruba a ditadura’ etc…
Mas não adiantou, o ‘pau comeu solto’, com muita violência; o número de brigadianos era desproporcional ao dos manifestantes.
Os estudantes começaram a debandar pela Rua André da Rocha, pela Salgado Filho, pela João Pessoa, descendo em direção ao campus central da UFRGS…
Então, um grupo de manifestantes, acuados, sem alternativas, adentrou o Restaurante Universitário (RU), quebrando os vidros do saguão com os próprios corpos, perseguidos pelos brigadianos que não cansavam de baixar o cacetete nas suas costas, cabeças, braços…
Por milagre, ninguém saiu seriamente ferido…
Então, baixada a poeira, decidimos ‘ocupar’ o RU até a saída do ditador Videla do Brasil. A seguir, o RU foi declarado ‘território livre’, símbolo da resistência contra as tiranias!
Organizou-se o comando da ocupação, a vigília, turnos, tarefas… Palavras-de-ordem foram escritas nas paredes, murais… Um palco foi montado. Músicos, atores, militantes revezavam-se ao microfone, todos denunciando as ditaduras latino-americanas e manifestando solidariedade ao ‘movimento’…
Lembro que o pessoal do ‘Oi Nóis Aqui Traveiz’ também esteve lá e representou em nosso palco improvisado…
No outro dia estava marcada a ‘reinauguração’ da Praça Argentina, onde o ditador Videla descerraria uma placa alusiva.
Pela manhã a cavalaria da BM, juntamente com o ‘choque’e seus ‘equipamentos’, cachorros etc., ‘ocuparam’ a praça.
Organizamos então uma nova manifestação na calçada do Centro de Engenharia da UFRGS (o CEUE), que ficava em frente à praça.
Após algumas horas, veio a informação que incendiou os ‘resistentes’: a ‘reinauguração’ da praça e a visita do ditador foram suspensas!
Comemoramos nossa vitória com mais um ato improvisado, ‘mudando’ então o nome da praça para ‘Praça das Madres de Mayo’, em homenagem às mães argentinas (ou ‘locas’, vide a foto acima) que, corajosamente, denunciavam o desaparecimento de seus filhos pela repressão, ajudando a tornar conhecidos mundialmente os hediondos crimes praticados pelos militares direitistas do país vizinho.
Ficamos dois dias e meio naquela luta.
Quando o ditador Videla saiu do Brasil, encerramos o ‘movimento’ da ocupação do RU – e mais um episódio na luta contra as ditaduras latino-americanas.
Esse combate nós havíamos vencido!
As ditaduras no Brasil e na Argentina durariam ainda mais alguns penosos anos, mas também acabariam derrotadas pela força organizada e resistente do povo. (Por Júlio Garcia)
…
ET 1: O general Vidella – e outros militares criminosos e seus cúmplices, inclusive civis – estão hoje cumprindo prisão perpétua na Argentina. Lá, pelo menos, a Justiça tardou – mas não falhou!
*Via: http://arquipelago.blogspot.com.br/
e http://o-boqueirao.blogspot.com.br/
ET 2: Minha irrestrita solidariedade aos companheiros estudantes que hoje estão na linha de frente nas ruas (e também ocupando escolas e universidades, coerente e corajosamente defendendo o patrimônio público, no caso específico, a Educação Pública) – assim como a Democracia e o Estado Democrático de Direito -, seriamente ameaçados pelo desgoverno golpista e entreguista. (JG)