Por Florestan Fernandes
Os mitos existem para esconder a realidade. Por isso mesmo, eles revelam a
realidade íntima de uma sociedade ou de uma civilização. Como se poderia no
Brasil colonial ou imperial acreditar que a escravidão seria, aqui, por causa de
nossa “índole cristã”, mais humana, suave e doce que em outros lugares? Ou,
então, propagar-se, no século 19, no próprio país no qual o partido republicano
preparava-se para trair simultaneamente a ideologia e a utopia republicanas,
optando pelos interesses dos fazendeiros contra os escravos, que a ordem social
nascente seria democrática? Por fim, como ficar indiferente ao drama humano
intrínseco à Abolição, que largou a massa dos ex-escravos, dos libertos e dos
ingênuos à própria sorte, como se eles fossem um simples bagaço do antigo
sistema de produção? Entretanto, a idéia da democracia racial não só arraizou. Ela
se tornou um mores, como dizem alguns sociológos, algo intocável, a pedra de
toque da “contribuição brasileira” ao processo civilizatório da Humanidade.
Ora, a revolução social que se vincula à desagregação da produção escravista e
da ordem social correspondente não se fazia para toda a sociedade brasileira. Os
seus limites históricos eram fechados, embora os seus dinamismos históricos
fossem abertos e duráveis. Naqueles limites, não cabiam nem o escravo e o
liberto, nem o “negro” ou o “branco pobre” como categorias sociais. Tratava-se
de uma revolução das elites, pelas elites e para as elites; no plano racial, de uma
revolução do Branco para o Branco, ainda que se tenha de entender essa noção
em sentido etnológico e sociológico. Colocando-se a idéia de democracia racial
dentro desse vasto pano de fundo, ela quer dizer algo muito claro: um meio de
evasão dos estratos dominantes de uma classe social diante de obrigações e
responsabilidades intransferíveis e inarredáveis. Daí a necessidade do mito. A
falsa consciência oculta a realidade e simplifica as coisas. Todo um complexo de
privilégios, padrões de comportamento e “valores” de uma ordem social arcaica
podia manter-se intacto, em proveito dos estratos dominantes da “raça branca”,
embora em prejuízo fatal da Nação. As elites e as classes privilegiadas não
precisavam levar a revolução social à esfera das relações raciais, na qual a
democracia germinaria espontaneamente… Cinismo? Não! A consciência social
turva, obstinada e mesquinha dos egoismos enraizados, que não se viam postos
à prova (antes, se protegiam) contra as exigências cruéis de uma estratificação
racial extremamente desigual.
Portanto, nem o branco “rebelde” nem a República enfrentaram a descolonização,
com a carga que ela se impunha, em termos das estruturas raciais da sociedade.
Como os privilégios construídos no período escravista, estas ficam intocáveis e
intocadas. Mesmo os abolicionistas, de Nabuco a Patrocínio, procuram separar o
duro golpe do abolicionismo do agravamento dos “ódios” ou dos “conflitos”
raciais (1). Somente Antonio Bento perfilha uma diretriz redentorista, condenando
amargamente o engolfamento do passado no presente, através do tratamento
discriminativo e preconceituoso do negro e do mulato (2). Em consequência, o
mito floresceu sem contestação, até que os próprios negros ganharam condições
materiais e intelectuais para erguer o seu protesto. Um protesto que ficou
ignorado pelo meio social ambiente, mas que teve enorme significação histórica,
humana e política. De fato, até hoje, constitui a única manifestação autêntica de
populismo, de afirmação do povo humilde como gente de sua autoliberação. O
protesto negro se corporificou e floresceu na década de trinta, irradiando-se
pouco além pela década subsequente (3). Foi sufocado pela indiferença dos
brancos, em geral; pela precariedade da condição humana da gente negra; e pela
intolerância do Estado Novo diante do que fosse estruturalmente democrático.
Na lei, a ordem é uma; nos fatos, é outra
O principal feito do protesto negro configura-se na elaboração de uma contra-
ideologia racial. Por um jogo dialético, o farisaismo do branco rico e dominante
era tomado ao pé da letra: e o liberalismo vazio, acima de tudo, via-se saturado
em todos os níveis. O negro assume o papel do burguês conquistador (ou do
“notável” iluminista) e comporta-se como o paladino da causa da democracia e da
ordem republicana. Não era propriamente um teatro popular, que se montava com
o Tribunal dos justos. Porém, tudo se desenrola através de dois planos, por meio
dos quais o jogo cênico e a realidade se interpenetram. O que resulta é uma cabal
e indignada desmistificação: na lei, a ordem é uma; nos fatos, é outra; na
consciência, as variações não são registradas. O negro desmascara e, ao mesmo
tempo em que ergue a sua denúncia e mostra a sua ira, exige uma Segunda
Abolição. Em suma, clama por participar da revolução social que não o atingiu,
levantando o véu de uma descolonização que ficara interrompida desde a
Proclamação da Independência e indicando sem subterfúgios os requisitos sine
qua non da democracia racial. O protesto se confinara à ordem estabelecida. Mas
era autêntico e revolucionário, pois exigia a plena democratização da ordem
republicana – através das raças contra os preconceitos e privilégios raciais.
A eclosão liberal de após Segunda Guerra Mundial não liberou as forças sociais
que alimentaram o protesto negro. Ao contrário, este refluiu e apagou-se,
enquanto as energias da gente negra forçavam a democratização e a
igualitarização progressiva pelos subterrâneos da porosidade de uma sociedade
capitalista em crescimento desigual. O talento negro condena-se à seleção ao
acaso, à venda no mercado e às duas regras da acefalização das raças
dominadas, perdidas nas classes subalternas. O novo negro, que se afirma como
categoria social, e assusta o branco conformista, tradicionalista ou autoritário,
não constitui um rebento do protesto negro, mas da luta pela vida e do êxito na
competição inter-racial numa sociedade de classes multi-racial. Por aí, a
modernização generaliza-se às elites em formação do meio negro e cria um “novo
começo” (4) que procurei descrever sob alguns de seus aspectos mais
importantes ou fascinantes.
Essa evolução faz com que, em pleno fim do século, a descolonização não tenha
penetrado profundamente na esfera das relações e das estruturas raciais da
sociedade brasileira. No último censo em que o levantamento racial foi
contemplado, o de 1950, os números demarcavam que o desenvolvimento
desigual era ainda mais desigual no que diz respeito à estratificação racial. De
Norte a Sul, dos Estados tidos como “tradicionalmente mais democráticos” aos
que foram contemplados como representativos de um “racismo importado”,
prevalece a mesma tendência estrutural à extrema desigualdade racial – à
centralização e à concentração raciais da riqueza, do prestígio social e do poder
(5). Tanto a estrutura ocupacional quanto a pirâmide educacional deixam uma
participação ínfima para o negro e o mulato, assinalando uma quase-exclusão e
uma marginalização sistemática e desvendando, inclusive, que, na luta pelas
oportunidades tão desiguais e sonegadas, há uma desigualdade adicional entre o
negro e o mulato (pois este vara relativamente melhor várias das barreiras raciais
camufladas).
Os fatos – e não as hipóteses – confirmam que o mito da democracia racial
continua a preencher as funções de um retardador das mudanças estruturais. As
elites que se apegaram a ele numa fase confusa, incerta e complexa de transição
do escravismo para o trabalho livre continuam a usá-lo como expediente para
“tapar o sol com a peneira” e de autocomplacência valorativa. Pois consideremos:
o mito – não os fatos – permite ignorar a enormidade da preservação de
desigualdades tão extremas e desumanas como são as desigualdades raciais no
Brasil; dissimula que as vantagens relativas “sobem” – nunca “descem” – na
pirâmide racial; e confunde as percepções e as explicações – mesmo as que se
têm como “críticas”, mas não vão ao fundo das coisas – das realidades
cotidianas.
Onde não existe sequer democracia para o dissidente branco de elite haveria
democracia racial, democracia para baixo, para os que descendem dos escravos e
libertos negros ou mulatos?! Poderia existir democracia racial sem certas
equivalências (não digamos igualdades) entre todas as raças?
Um mito para dissimular as coisas
A tenacidade do mito e a importância de suas funções para a “estabilidade da
ordem” exigem uma reflexão política séria. De um lado, fica patente que o negro
ainda é o fulcro pelo qual se poderá medir a revolução social que se desencadeou
com a Abolição e com a proclamação da República (e que ainda não se concluiu).
De outro, é igualmente claro que, no Brasil, as elites não concedem espaço para
as camadas populares e para as classes subalternas de motu próprio. Estas têm
de conquistá-lo de tal forma que o avanço apareça como “fato inevitável e
consumado”. O que quer dizer que, em sua tentativa de desmascaramento e de
auto-afirmação, o protesto negro antecipou a substância da realidade histórica do
presente que estamos enfrentando com tantas angústias e sobressaltos. Cabe às
classes subalternas e às camadas populares revitalizar a República democrática,
primeiro, para ajudarem a completar, em seguida, o ciclo da revolução social
interrompida, e, por fim, colocarem o Brasil no fluxo das revoluções socialistas do
século 20. O que sugere a complexidade do formoso destino que cabe ao negro na
cena histórica e no vir a ser político. A revolução da qual ele foi o motivo não se
concluiu porque ele não se converteu em seu agente – e, por isso, não podia
levá-la até o fim e até ao fundo. Hoje, a oportunidade ressurge e o enigma que
nos fascina consiste em verificar se o negro poderá abraçar esse destino
histórico, redimindo a sociedade que o escravizou e contribuindo para libertar a
Nação que voltou as costas à sua desgraça coletiva e ao seu opróbrio.
Essa interpretação global contém uma mensagem clara aos companheiros que
tentam refundir e reativar o protesto negro. É preciso evitar o equívoco do “branco
de elite”, no qual caiu a primeira manifestação histórica do protesto negro. Nada
de isolar raça e classe. Na sociedade brasileira, as categorias raciais não contêm,
em si e por si mesmas, uma potencialidade revolucionária. De onde vinha o temor
dos brancos, nos vários períodos escravistas? Do entroncamento entre escravidão
e os estoques raciais dos quais eram retirados os contingentes que alimentavam
o trabalho escravo. Essa superposição ou paralelismo (como a descreveu Caio
Prado Junior) ou essa estrutura simultaneamente racial e social conferia ao
escravo a condição do “vulcão que ameaçava a sociedade”. A realidade histórica
de hoje não é a mesma. Não obstante, desvinculada da estrutura de classes da
sociedade brasileira atual, da marginalização secular que tem vitimado o negro
nas várias etapas da revolução burguesa e da exploração capitalista direta ou da
espoliação inerente à exclusão, os estoques raciais perdem o seu terrível
potencial revolucionário e dilui-se o significado político que o negro representa
como limite histórico da descolonização (negativamente) e da revolução
democrática (positivamente). Portanto, para ser ativada pelo negro e pelo mulato,
a negação do mito da democracia racial no plano prático exige uma estratégia de
luta política corajosa, pela qual a fusão de “raça” e “classe” regule a eclosão do
Povo na história.
Fonte: Folha de S. Paulo – Folhetim de 08.06.1980
Notas
(1) Para documentar, ver F. Fernandes. “A Integração do Negro na Sociedade de
Classes”, São Paulo, Editora Ática, 3a ed., vol. 1, pp. 258-259.
(2) Idem, pp. 82-83.
(3) Sobre o assunto, ver op. cit., vol. 2, todo o capítulo 1.
(4) Sobre o assunto, ver idem, todo o capítulo 2.
(5) Ver a respeito F. Fernandes, “O Negro no Mundo dos Brancos”, São Paulo,
Difusão Européia do Livro, esp. cap. 3 Sobre o assunto, de outra perspectiva,
veja-se C.A. Hasenbalg, “Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil”, Rio de
Janeiro, Graal, 1979, cap. 7.
Florestan Fernandes é sociólogo, professor aposentado pelo AI-5, autor, entre
outros, de “A Revolução Burguesa no Brasil” e um dos primeiros pensadores a
levantar a questão da discriminação racial no Brasil.
O Mito Revelado
3 de Novembro de 2013, 11:21 - sem comentários ainda | No one following this article yet.
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