Crer que uma intervenção militar vá produzir algo “diferente” é uma ilusão grosseira. Única alternativa consequente ao que hoje vem ocorrendo no país é a defesa da democracia como valor permanente.
Por Flavio Aguiar – de São Paulo
Nos últimos dias cresceu a retórica em torno de um golpe de estado militar – o clássico – no Brasil. Para Moniz Bandeira seria uma alternativa protetora dos interesses nacionais diante do golpe de estado parlamentar, midiático, jurídico e policial perpetrado em 2016 para depor Dilma Rousseff e impedir a recandidatura de Lula em 2018.
A presença de militares na vida civil brasileira ocorreu, pela última vez, após o golpe de Estado, em 1964
Há um argumento de peso deste lado: as instituições brasileiras – STF, Congresso, Executivo, et alii, padecem da metástase golpista. Esta se alastra junto ao baixo escalão: advogados querem o fim de exposições consideradas “degeneradas”, como diriam os nazistas, deputados apresentam projetos proibindo a foice e o martelo ou obrigando emissoras públicas a transmitirem cantos evangélicos, o MBL protagoniza o fim de um exposição ‘queer’, o sacrossanto MASP cobre telas consideradas eróticas com pudicas e hipócritas cortina. O desvario é imenso.
Imaginar que um golpe militar poria fim a este desvario é, em si mesmo, parte do desvario. Imaginar que assumiria o poder um novo general Lott é outro desvario. Quem vai assumir, se tal ocorrer, é um correligionário do general Mourão. Ou do general Alberto Heleno que invectivou e culpou “o fracasso das esquerdas” pelo que está ocorrendo no Brasil. Como se tirar milhões de pessoas da miséria fosse um fracasso. Ou como se devolver outros milhões ao naufrágio na pobreza fosse um sucesso.
Cavaleiro da Esperança
Dentro da esquerda, a tentação do golpe vem de longa data. Com o devido respeito aos militantes de antanho, ela data de 1935, e da tentativa de assaltar o poder mediante uma quartelada. Havia ali a inspiração do assalto ao Palácio de Inverno na então São Petersburgo, em 1917. A ideia da vanguarda conduzindo a bandeira da História. Mas não havia bandeira nem História, por mais que os personagens envolvidos fossem grandiosos e respeitáveis. Havia o equívoco de considerar que as “massas” escutariam “a voz da vanguarda”. Mais ou menos, me desculpe a comparação ousada, como o histórico cachorrinho diante do gramofone da RCA.
Em suas memórias Agildo Barata gravou uma imagem indelével do grande Prestes, por quem tenho o maior respeito. Disse ele que ao encontrar-se com o Cavaleiro da Esperança em sua cela, em 1945, pouco antes de ambos serem libertados, deparou com um caderninho cuja capa era a de um livro de Auguste Comte. Dentro, traduções que Prestes fazia de máximas de Epicuro. Barata registrou que nunca esqueceu este conjunto ao pensar no líder inconteste do movimento comunista brasileiro: “máximas estóicas emolduradas por uma capa positivista”.
O movimento positivista – que também inspirou Getulio e seus correligionários – tinha um componente autoritário que os liberais e boa parte da esquerda então confundiram com o fascismo de Mussolini – e que continua a inspirar as agitações da caserna até hoje. A caserna corrigiria o agito dos “paisanos”, sejam os de esquerda, sejam os de direita, porque a caserna se situaria ao centro.
Et caterva
Este pensamento inspirou a retórica de 64, a “irreversível”, a “redentora”, que, com o mesmo ardor que cassou Goulart, o próprio Prestes, Brizola e outros, terminou por cassar Lupion Ademar, Lacerda e Juscelino. Mas terminou construindo o pior regime que o Brasil já suportou, pelo menos até Temer e seus asseclas, com apoio jurídico, parlamentar e midiático, tanto lá como agora.
Achar que uma intervenção militar vai produzir algo diferente é uma ilusão grosseira, mesmo que venha de gente respeitável, como Moniz Bandeira (com quem estive numa mesa memorável sobre nacionalismo na SBPC de 1977). É não ver que a lógica militar, entregue a si mesma, vai levar a mesma subordinação ao rolo compressor norte-americano protagonizada hoje por Temer, Moro, procuradores, Gilmar Mendes et caterva. Afinal, quem vai mandar no Atlântico?
A única alternativa consequente ao que hoje vem ocorrendo no nosso país é a defesa da democracia como um valor permanente. Devemos isto , nós de esquerda, ao país, e a nós mesmos, que lutamos, morremos e sobrevivemos por ela e por ele.
Flávio Aguiar é jornalista.
Publicado, originariamente, na página da Rede Brasil Atual (RBA).
O post Golpe de Estado progressista: uma ilusão à esquerda apareceu primeiro em Jornal Correio do Brasil.
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