Por Moysés Pinto Neto, de Porto Alegre
Para onde apontam as palavras de ordem nas manifestações recentes? Como enxergar a evidente recusa apresentada pelos movimentos de resistência e sua luta no fim do mundo?
O ciclo de mobilizações sociais que teve início em 2010 com a chamada Primavera Árabe, alastrando-se pela Europa, EUA e Canadá e pela América Latina, fomenta, desde então, intensos debates em torno das pautas e estratégias que guiam os movimentos. Após a crise de 2008, com as ruas voltando a abrigar enxames de indignados, não raro se pergunta qual será a próxima etapa das lutas depois de aglomerados de milhões de pessoas mostrarem capacidade de resiliência diante da violência policial, do descrédito da mídia e da indiferença das instituições políticas tradicionais. O motivo dessa preocupação por parte de alguns é que esses movimentos parecem herdeiros, em larga escala, da geração de 1968, aproximando-se de ideais anarquistas por meio da ojeriza a lideranças verticais, à lógica instrumental dos meios e fins, à construção de uma identidade rígida, e a alianças, compromissos e negociações com os poderes instituídos, chegando frequentemente a uma dificuldade considerável de definir exatamente o que buscam.
Tanto a esquerda radical quanto a moderada, preocupadas em “conquistar o poder” – seja pela sustentação da “ideia comunista”, seja pelo alinhamento pragmático a partidos e governos, associados, por sua vez, pelos manifestantes, ao descrédito da política representativa –, parecem compartilhar desse incômodo. Será essa, no entanto, a única interpretação viável? Esse negativo que constitui os novos movimentos seria interpretável apenas à luz da falta? Em outros termos: e se o não fosse uma resposta?
A política ocidental e sua reflexão filosófica têm dificuldade para lidar com o negativo. Como tantos mostraram ao longo do século XX, o sonho da razão – que também era o sonho da política – ancorava-se em um anseio totalizante, buscando abordar e esquadrinhar os mais diversos cantos da realidade. A Modernidade não se conforma em procurar a coincidência entre real e pensamento: ela quer conquistar o real e fazê-lo idêntico ao pensamento, atacando tudo aquilo que se nega a coincidir com ele – e era aí mesmo, nesse negativo, que filósofos como Theodor Adorno visualizavam o último refúgio da emancipação. A necessidade de se estabelecer rapidamente um programa para os protestos, que se organize em pautas específicas e negociações “viáveis”, parece estar inserida na mesma questão. A irrupção do novo precisa ser domesticada e marcada pelo positivo, colocando, segundo a lógica dos meios e fins, um conjunto de objetivos que, no fim das contas, efetivem um projeto de poder.
Por outro lado, é claro que um certo purismo do negativo é tentador e que é fácil, especialmente em nível discursivo, sustentar que todo compromisso é reprovável e apenas uma condição ascética em relação ao poder e fiel aos princípios é adequada. Sabemos os dilemas a que conduzem essas posições. O caso egípcio é um exemplo claro de que nem sempre os impulsos de contestação que caracterizam os enxames humanos – no Egito, multidões de milhões de pessoas se reuniram em dois momentos distintos – resultam em transformações efetivas, pois uma ditadura sucedeu ao regime derrubado. Tampouco a crença na “multidão” contra o poder, essa espécie de apologia cega às massas que nunca podem estar erradas (quando há tantos exemplos em sentido contrário…), deixa de apresentar problemas e dilemas. Aliás, episódios recentes no Brasil mostraram que não são somente os afetos revolucionários que movem multidões: o ressentimento e a raiva também agregam. A questão é delicada e ninguém está em posição de se considerar acima do erro e do experimentalismo. A emergência dos partidos-movimento, como o Podemos espanhol e o Syriza grego, é uma tentativa de escapar ao dilema. No entanto, a cena atual talvez nos permita ver as coisas de outro modo.
Torçamos o foco, aqui, para um estranho debate acadêmico que aconteceu recentemente na Universidade de Stanford. Ali, ao contrário dos tradicionais debates entre socialistas e liberais, reformistas e revolucionários, ou mesmo entre comunistas e anarquistas, de um lado estavam os “anarco-primitivistas”, representados por John Zerzan, e, de outro, os “transhumanistas”, representados por Zoltan Istvan. Enquanto os anarco-primitivistas postulariam, segundo a versão publicada pelo próprio Istvan no prestigiado The Huffington Post, “um retorno para um modo de vida não civilizado e a desindustrialização”, os transhumanistas exultariam “o uso da ciência e da tecnologia para transformar e melhorar a espécie humana”. O que a conversa parece indicar é que as condições da disputa política podem ter se alterado significativamente no século XXI. Não estaríamos mais diante de um reload das grandes polaridades do século passado, mas de uma cena radicalmente alterada que, como veremos, nubla a própria separação clássica da política entre natureza (delegada aos cientistas naturais e considerada mero objeto de exploração) e cultura (lugar do humano, do espírito, da razão, do esclarecimento).
É aqui, nesse novo cenário, que aparece uma chave para entender o negativo sem que se confunda com o purismo. O negativo não precisa apenas significar recusa. Para tanto, é preciso considerar que o modelo atual baseado em crescimento, produção e consumo ilimitados é catastrófico do ponto de vista ecológico. Tomando emprestada uma expressão de Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, poderíamos designar nosso contexto sociocultural simplesmente como “fim do mundo”. Não se trata de uma concepção escatológica que remete a um futuro distante no qual os ímpios serão julgados e os santos e justos absolvidos – como na escatologia messiânica que, aliás, irriga, em versões secularizadas ou não, boa parte do pensamento político (inclusive e principalmente aquele de esquerda). O núcleo da questão ambiental é que o problema já está aí. A catástrofe já aconteceu e se trata de organizar uma resposta para minorar os efeitos que estão no horizonte calculado e ratificado pela comunidade científica em geral. Essa condição exige revisar nossos hábitos de pensamento e as utopias baseadas em um “humano” desligado da natureza, conceito cujo papel central limita-se à transformação de outros seres vivos e do entorno biofísico em estoque ilimitado de “recursos” para o crescimento econômico. Pensar o negativo nesse novo contexto poderia ser pensar o menor.
No âmbito dessa linha de raciocínio, Serge Latouche e outros intelectuais vêm propondo um termo provocativo, que se contrapõe a um imaginário político que eles dizem “intoxicado” pelos padrões da sociedade do consumo: o “decrescimento”. Enquanto assistimos cotidianamente ao debate entre empresários, burocratas e grande mídia em torno de índices quantitativos e estratégias para incrementar números representados sobretudo pelo Todo-Poderoso PIB (Produto Interno Bruto), o decrescimento propõe que só a interrupção e minoração do processo atual pode ser ecologicamente viável, substituindo a lógica da acumulação e o fetiche da mercadoria pela ideia de qualidade de vida. O decrescimento encontra em formas de vida tidas por “atrasadas”, como entre povos indígenas e africanos, práticas culturais que permitem significações qualitativas que não reproduzem o ciclo vazio e a felicidade desidratada do consumo. Também sinaliza a ultrapassagem da noção de “sustentabilidade” que, muito embora importante e longe de ter produzido todos os seus efeitos, parece estar aquém do tamanho do desafio que se apresenta diante de problemas como as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, a acidificação dos oceanos ou a crise hídrica.
Em seu Pequeno tratado do decrescimento sereno, Latouche menciona, como proposições decrescimentistas, o retorno da valorização e da autonomia do local, a redução do turismo e da produção desnecessária de bens de consumo, a recuperação dos comércios vicinais contra os hipermercados, dos imóveis pequenos contra as torres de apartamentos, da passagem de pedestres e ciclovias contra a prioridade dos carros, e um reequacionamento da questão alimentar, chegando, em última instância, à “saída da sociedade trabalhista”.
Não é apenas entre os supostamente “atrasados” que o decrescimento encontra adeptos: entre os movimentos sociais do mundo todo há cada vez mais rejeição de processos de “modernização” urbana como a construção de estradas, viadutos e obras “carrocêntricas”, a proliferação de arranha-céus e a perda dos espaços verdes, a privatização e camarotização dos lugares de convivência, a gentrificação e a militarização da segurança pública, a disseminação das técnicas de vigilância e a higienização dos espaços. Ao mesmo tempo, ganham força movimentos de ciclistas, pedestres, adeptos da permacultura, dos direitos dos animais, das festas abertas ao ar livre, entre outros. De forma ainda mais relevante, movimentos e coletivos permitem-se, através de ocupações e experiências de autogestão, ensaiar formas de vida inabituais, múltiplas, e que não têm nome ou regimento, ainda que os ativistas usem noções aproximativas como horizontalidade e organização em rede.
O contraponto a essa visão é o chamado “aceleracionismo” – curiosa coincidência com o nome do programa carro-chefe do Governo Dilma Rousseff no Brasil, o Programa de Aceleração do Crescimento, rejeitado desde o início pelos setores engajados com a questão ecológica e indígena. Os pensadores dessa linha, afinados com as ideias transhumanistas, apostam no progresso tecnológico e científico como mecanismos que levariam o humano a se separar da sua condição “carnal”, transformando radicalmente o mundo (e dominando por completo a natureza e a vida) de acordo com suas pretensões. Ao contrário, portanto, da esquerda clássica, que simplesmente continua – da mesma forma que os liberais – entendendo o meio ambiente como “externalidade”, os aceleracionistas reconhecem as dimensões radicais do problema, mas rejeitam qualquer tipo de “retrocesso” e propõem a ultrapassagem da condição humana como alternativa.
Cientistas famosos como o físico Stephen Hawking, que propôs recentemente viagens interplanetárias com o intuito de colonizar outros planetas para a sobrevivência humana depois da destruição da Terra, e o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, cujo “sonho” último, segundo Muito além do nosso eu, é transportar o cérebro para um suporte que permita vencer a mortalidade, parecem compartilhar desse imaginário em que a vida e a Terra sucumbem diante da ascensão vertiginosa do espírito humano. Aparentemente, é mais fácil se libertar do corpo, da vida e do planeta que de certas obsessões escatológicas, mesmo que travestidas com o manto da hard science.
Os aceleracionistas – radicais ou moderados – tampouco parecem suportar a falta de pautas claras e a recusa, nos movimentos atuais, da autoridade e da verticalização. A organização plástica, sem disciplina e rigidez, os irrita profundamente e é tomada como sintoma de impotência. Apostando excessivamente na estratégia, os aceleracionistas eliminam toda crítica à instrumentalização da razão e excluem o fato de que, nos novos movimentos, a própria relação entre meios e fins se dá em outro tipo de equilíbrio. A própria impotência pode ser entendida, no entanto, como potência no sentido de que não fazer é também exercer uma ação dentro da virtualidade que se apresenta. O filósofo Giorgio Agamben, quando retoma a ideia de Walter Benjamin dos “meios puros” a partir da noção de gesto, exemplifica-os a partir da dança, que é um movimento destituído de finalidade e, ao mesmo tempo, expressão da alegria. Os novos movimentos parecem carregar esse passo de dança que mescla o público e o privado, corpo e razão, equacionando de outra maneira aquilo que os aceleracionistas nostalgicamente gostariam de retomar.
Os atos de ocupação que proliferam pelo Brasil inteiro têm esse sentido que não comunica nada a não ser a si próprio enquanto ocupação, sem instrumentalizar nenhuma pauta. De certa forma, eles encenam a nova sociedade que gostariam de criar, vivem a utopia que desejam sem a deslocar para o horizonte distante (encenação e sonho compartilham da mesma matéria espectral da utopia).
Uma tentativa frustrada de conciliação entre a aceleração do progresso e a descida decrescimentista aparece na ideia de que “menos é mais”, o meio termo entre duas tendências radicalmente diversas. Mais uma vez, ainda, o mesmo imaginário que sufoca no positivo e no programático aquilo que prefere não… Menos não é mais, é menos, mas eventualmente pode ser melhor. Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro associam esse “melhor” ao surpreendente fato político contemporâneo do devir índio. Ele inclui não apenas aqueles povos de origem indígena que estariam à beira de se integrar definitivamente à sociedade branca e que, de repente, resolvem, em um movimento inesperado para alguns, voltar a serem índios, mas aqueles que, em geral, e cada vez mais, adentram outras formas de estar no mundo.
Testemunhamos, aliás, na paleta de movimentos, uma variedade de lutas que encontra seu mais perfeito paradigma nos protestos indígenas contra a Usina de Belo Monte, típica recusa do progresso e da aceleração. Em contraponto ao “desenvolvimento extensivo” da sociedade de consumo e do imaginário civilizatório ocidental, Viveiros de Castro propõe a “suficiência intensiva”. Trata-se de outra experiência do limite diferente da lógica de colonização e dominação, baseada em um envolvimento intensivo que é menor. Contrapõe-se, portanto, ao maior do Estado e do mercado que, mais do que fabricar a desigualdade, fabrica a falta. O “viver bem” do menor envolve uma contração que intensifica, multiplicando o múltiplo, ao contrário do “viver mais” da imortalidade, que funciona a partir da extensão totalizante do Um.
A civilização ocidental sempre se deixou guiar pelo motivo da “ascensão”, apaixonada pelo maior, que, por sua vez, se confunde com a santíssima trindade: Deus, o Estado e o Mercado. A descida, ao contrário, é desde sempre associada ao negativo, à decadência, a um estado indesejável que deveria ser evitado a todo custo. Entender os novos movimentos decrescimentistas e sua luta no fim do mundo como possível linha de fuga abre uma fresta para uma paixão pelo sub, em contraponto à obsessão pelo maior das utopias messiânicas – religiosas ou não – que sobrevivem no imaginário da esquerda. Talvez o não dos novos movimentos simplesmente não seja uma falta a suprir, mas a recusa que é, como um menos, devir revolucionário.
Ilistrações de Rivane Neuenschwander, artista nascida em Belo Horizonte, é mestre pela Royal College of Art em Londres, onde vive. Participa de importantes exposições mundo afora, tem dois livros monográficos publicados e, em 2004, foi finalista do Prêmio Hugo Boss da Fundação Guggenheim de Nova Iorque.Direto da Redação é um fórum editado pelo jornalista Rui Martins