Por Damião Azevedo, em Carta Maior
Anistia ampla, geral e irrestrita. Esse foi o lema da campanha pela anistia aos presos políticos do Regime de 64. Contudo, o resultado real obtido, após a aprovação da lei, foi exatamente o oposto do que aquele lema pregava.
A recente conclusão do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) mexeu nesse vespeiro, ao sugerir a necessidade de responsabilizar os agentes do Estado pelos crimes de tortura.
Imediatamente surgiram críticas à CNV, alegando-se que, depois de tanto tempo, a ideia de se rever a Anistia seria puro revanchismo. Afirma-se que, para uma revisão da Anistia, seria necessário responsabilizar não apenas os militares, policiais e dirigentes do Estado, mas também os opositores do Regime, por terem recorrido à guerrilha, luta armada, sequestros e atentados à bomba.
Isso talvez pudesse fazer sentido a não ser por um detalhe: os crimes cometidos pela oposição ao Regime Militar já foram todos apurados, esclarecidos e seus responsáveis foram devidamente condenados. Isto é, só as próprias autoridades do Regime ainda têm o que revelar.
A Anistia, Lei 6.683/79, não tratou os crimes de ambas as partes de forma equânime, nem tampouco beneficiou igualmente todos os autores de atos de violência política cometidos durante o Regime Militar. Eis seu primeiro artigo:
Art 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de Fundações vinculadas ao Poder Público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
§ 1º Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
O caput do art. 1º inicialmente dá a entender que todos os crimes políticos ou conexos – de qualquer das partes conflagradas – teriam sido anistiados. Entretanto, o seu parágrafo segundo exclui as pessoas que já haviam sido condenadas criminalmente pelos crimes ali elencados. Ocorre que, em 1979, só haviam sido legalmente apurados os crimes de uma das partes. Só os opositores do regime, só os militantes da luta armada, é que tiveram seus crimes investigados e processados.
Quando da aprovação da lei, os movimentos de luta armada já haviam sido vencidos. O auge da guerrilha urbana acorreu entre 1968 e 1970. A partir de 1971 os grupos são esfacelados, com a execução, prisão ou banimento da maioria de suas principais lideranças. As últimas ações armadas da guerrilha urbana ocorreram em 1973. Também entre 1973 e 1974 foram executados todos os militantes que ainda permaneciam no Médio Araguaia, única guerrilha rural que chegou a promover ações de combate armado ao Regime.
Por isso, quando veio a Anistia, os guerrilheiros que recorreram à luta armada durante o Regime Militar já haviam sido sentenciados e penalmente responsabilizados. A maioria dos condenados por crimes políticos não-violentos, como a presidente Dilma Roussef, já estavam em liberdade em razão de progressão de regime. Mesmo os que conseguiram se exilar, foram julgados e condenados à revelia.
Diferente do que se costuma divulgar na imprensa, os presos políticos que cumpriam pena em 1979 não saíram da prisão em decorrência da Lei de Anistia, mas por benefícios processuais decorrentes da nova Lei de Segurança Nacional de 1978, que reduziu as penas-base previstas na legislação anterior.
Em 1979, permaneciam presos praticamente apenas os condenados por crimes violentos aos quais a Anistia não se aplicava, de modo que sua libertação foi obtida em processos judiciais de revisões individuais de penas, baseados na Lei de Execuções Penais. Tratou-se de simples progressão de regime e não de extinção de penas. Por exemplo, José Roberto Rezende, que participou do sequestro dos embaixadores alemão e suíço, teve suas três condenações reduzidas para catorze anos, o que lhe permitiu sair em liberdade condicional, mas bem depois da Anistia.
O mesmo vale para o retorno dos exilados que participaram da luta armada. Alfredo Sirkis, que se exilara em 1971, não retornou por causa da Anistia. Mas porque beneficiado pela regra de redução da pena por ser menor de 21 anos quando dos crimes pelos quais fora condenado. Caso emblemático foi o de Herbert Daniel, que só pôde retornar ao Brasil depois de prescritas suas penas, dois anos depois da Anistia.
É certo que as revisões de pena foram feitas no contexto geral da abertura política, quando já se ensaiava a transição do regime. Entretanto, os processos judiciais de revisão de pena não tiveram fundamento na Lei de Anistia.
Portanto, não se pode dizer que, depois dos benefícios da Anistia terem sido gozados pelos presos políticos, a CNV pretenderia agora negar esses mesmos benefícios aos combatentes do outro lado do front. Isso é completamente falso, pois os guerrilheiros condenados por atos de terrorismo, sequestro e homicídio nunca foram anistiados. Suas penas foram cumpridas ou prescreveram. Jamais foram anistiadas.
Isso faz emergir um aspecto delicado e que pode constituir um fundamento constitucional para a responsabilização criminal dos agentes do Regime de 64 não apenas pelos crimes de tortura, mas também pelos crimes de natureza política, a princípio abrangidos pela Anistia. Trata-se do conceito de auto-anistia, cunhado pelo Direito Internacional, que ocorre quando o Estado anistia somente a si próprio ou seus próprios agentes e autoridades públicas. É um ato de auto-indulgência, por meio do qual o poder público exclui sua responsabilidade sobre fatos que só ele teria competência para investigar.
Se a Lei 6.683/79 excluiu os crimes dos guerrilheiros, isso significa que só os agentes e autoridades do Estado foram beneficiados pela Anistia. Na prática, a Lei da Anistia se converteu num pretexto para não se apurar nenhum tipo de responsabilidade por parte dos agentes do Estado, arquivando-se definitivamente as denúncias feitas por presos políticos e também por organizações internacionais. É em razão desse aspecto tão crucial que a Anistia de 1979 pode ser considerada uma auto-anistia.
A ideia da anistia política é firmar um compromisso de inimputabilidade penal entre partes conflagradas. A legitimidade de uma norma jurídica que exclui a imputação penal por atos criminosos encontra-se na necessidade de preservação da própria possibilidade de convivência. Por isso, mais que um ato de indulgência do poder soberano para com os cidadãos, é um pacto coletivo pelo qual as partes admitem, a partir de determinado momento, abrir mão de suas pretensões de assalto ao poder e se comprometem reciprocamente a reconhecerem-se como legítimos protagonistas do cenário político, ainda que adversários.
A legitimidade das anistias demanda um caráter multilateral das responsabilizações. Sem esse aspecto, não há propriamente anistia política, mas auto-indulgência, perdão do autoridade pela própria autoridade. Esse é o motivo pelo qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos, de São José da Costa Rica, firmou o entendimento que leis de auto-anistia não são válidas perante o Direito Internacional.
Uma vez admitido que a Lei 6.683/79 pode ser caracterizada como auto-anistia, isso seria um argumento constitucionalmente sólido para se sustentar que essa lei não foi recepcionada pela Constituição de 1988, por ser incompatível com o sistema de direitos humanos nela consagrado. Assim, seria plausível rever a aplicação da Anistia, com base na tese da sua não recepção constitucional.
Não há dúvidas que a afirmação contemporânea dos Direitos Humanos não pode ficar presa aos problemas herdados da ditadura. Não obstante, as críticas feitas pela CNV à Lei de Anistia podem nos dar a oportunidade para um exercício coletivo de autocompreensão e amadurecimento político.
Isso não significa revanchismo, nem expurgos revisionistas. Não é um debate voltado para o passado, mas para o futuro, no sentido de que a memória também é algo em permanente construção. Somos as nossas lembranças. Quando somos impedidos de saber o destino dos nossos mortos, nossa própria capacidade de aprender com a experiência fica aprisionada em ressentimentos mal resolvidos.
Acredito que Hanna Arendt estava certa ao defender que o perdão é um ato político. Porém, perdão não significa esquecimento. E é a própria Hanna Arendt que afirma que “os homens não podem perdoar aquilo que não podem punir”. A responsabilização é condição para se alcançar a paz e a conciliação, que só são obtidas pelas verdadeiras anistias.
Compreender a Anistia como perdão, superação política, exige que todas as partes envolvidas – agentes do Estado e seus opositores – reconheçam publicamente a responsabilidade pelas consequências de suas escolhas e decisões. Só assim seremos capazes de lembrar e reconhecer as mazelas autoritárias de nosso passado recente para nos engajarmos, nos comprometermos, com a permanente construção de um futuro democrático.
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