“Não assinei um documento, exigindo um compromisso…de contribuição, de, de, pagar ou… resgatar o… salário, vamo dizer, o como é que se diz? O piso. Ah, é, o piso. Sim, o piso eu vou lá no “Tumelero” [loja de construção] e te dou um piso melhor, né. Ali tem piso bão.” (Ivo Sartori, candidato a governador pelo PMDB, debochando do compromisso com um piso salarial para os professores gaúchos – clique aqui para ver a entrevista patética dele)
por Katarina Peixoto, no RS Urgente
Com quanta carga de ódio se constrói um hospital? Quanto de raiva é requerido para contratar médicos dispostos a trabalhar no serviço público? Quanta repulsa é necessária para se ter pleno emprego numa região em que o emprego era escasso e as perspectivas de vida profissional, idem? Quantas buzinas – sob gritos de “ladrões”, “vai consultar com um médico cubano, f.d.p.”, “Vai para Cuba” – é preciso que se aperte, para abrir estradas e construir pontes?
Nestas eleições, a reação conservadora no Rio Grande do Sul está obcecada por uma paranóia da sobrevivência. É um delírio configurado numa candidatura que oscila entre a oligofrenia política e o vazio de ideias desavergonhado, cuja estupidez e ridículo não tem precedentes, salvo em aberrações, como a Senhora Roriz, nas eleições para o Distrito Federal, de 2010, também pelo PMDB e também num contexto de ameaça à sobrevivência política.
Que fique claro: a direita gaúcha embarcou nessa maluquice e está disposta a mobilizá-la num cálculo evidente, nada delirante. O delírio é um operador ideológico escolhido pelo desprezo, característico de toda perspectiva oligárquica, ao esclarecimento. O que importa não é o candidato mais qualificado, nem o mais sério, nem se há ou não um bom governo em andamento (a população já decidiu que há, em tempo). Não importa quais os projetos em disputa e nem se e em que medida esses projetos estão ligados ao pertencimento do estado ao país. Importa resistir à integração com o Brasil, importa reagir a uma promessa histórica nascida ela mesma das entranhas do Rio Grande do Sul: a ideia de estado nacional federado e republicano. Isso explica o atavismo odioso, característico de todo nacionalismo, essa expressão residual em que forças políticas erguidas sobre a paranoia se alimentam.
Nenhum projeto para o estado é necessário, nesse embalo de ódio e rancor. Nenhum compromisso econômico, político, histórico. Quando o país sai, pela primeira vez na história, do mapa da fome no mundo, um candidato ao governo do RS apresenta como programa de governo trocar lixo por comida, “para resolver os problemas dos mais pobres”. A agressividade só é superada, diante de programa dessa estatura moral, pelo cinismo de um candidato que faz as vezes de um néscio: diz com orgulho que não assinou qualquer compromisso com a agenda dos professores do estado, para depois, num chiste, revelar o seu desprezo: não reconhece tal coisa como um piso salarial.
O deputado federal mais votado, daqui, pega o microfone para dizer que quilombolas, sem-terra e gays são “tudo o que não presta”. Interpelado posteriormente, corrigiu-se: “gays, não’, afinal, gays podem ter dinheiro e famílias bem nascidas, talvez até um sobrenome alemão.
Aos negros cabe a condição de aprendiz de cozinheiro em cantina italiana, em plena propaganda eleitoral, constituída num show de horrores anos 30 na Alemanha. Tudo é branco, alegre, as criancinhas se abraçam, as pessoas sorriem, ninguém quer brigar. Só tem aquele pessoal que a gente tem de eliminar, não é, aquela turma que usa uma estrela. Eles são o mal.
É regressivo e constrangedor. Ontem, dia 20, no fim da manhã, saí para passear com meus cães e passamos na frente da casa do governador, candidato à reeleição. Quase no mesmo instante, uma caminhonete dessas que custam um apartamento tamanho médio, carregada de adesivos onde suavam palavras racistas, diminuiu a velocidade e começou a buzinar, na frente da casa do governador, que tem grades, mas não muro. Abaixou o vidro e urrou impropérios.
Não é, mesmo, preciso apresentar um projeto de governo, nem assumir qualquer compromisso com o povo. A reação conservadora, no RS, tem a cara de um néscio e o corpo de um monstro carregado de ódio, uma espécie de Goodzila, envenenado midiaticamente, cevado em paranoia pela perda imaginária de um poder de fato ausente há mais de um século, com um único propósito: destruir o PT, para não desaparecer. Não faltam, como nunca faltou, crentes no mal dos portadores da estrela no peito.
O que se passa, no entanto, é que um néscio com um Godzila atrás de si não governam. E eles talvez não estejam aí, mesmo, a fim de governar, mas resistir, às custas, como o fizeram nas administrações Rigotto e Yeda, do erário combalido do Estado do RS. O mesmo, aliás, que ajudaram a depauperar, em administrações desastrosas, concentradoras e politicamente regressivas. O fato de terem como único projeto explícito a troca de lixo por alimento perecível, apresentado com orgulho e agressividade, em cadeia de televisão, é a maior evidência do desprezo que a direita cultiva pelos pobres e deserdados.
É por isso que não é preciso ser petista, gostar do PT, ser de esquerda, para reconhecer o que está em jogo no RS. Há um governo, talvez o primeiro em vinte anos, que combina uma agenda política com uma econômica consistente, que assegurou pleno emprego na região metropolitana de Porto Alegre, passe livre estudantil nessa região, que está coadunado com o projeto nacional representado pela Presidenta Dilma, por um lado. Por outro, há uma reação conservadora, reacionária, que, para sobreviver, construiu apenas as condições de destruição e aniquilamento – imaginários, como se sabe, visto que a esquerda não desaparecerá por conta de uma eleição – político de uma experiência exitosa, no juízo do eleitorado. Essa reação não precisa sequer de um candidato: um néscio pode sê-lo, de preferência, porque não tem rejeição: como não passa de um sujeito irrelevante, serve bem ao propósito. Um escárnio, mesmo. Escárnio, desprezo e muito ódio. Seria somente ridículo, não fosse tão nefasto.
Não é preciso ser petista, para acreditar no Rio Grande do Sul como parte de um país. Não precisa ser de esquerda para acreditar que a oferta de lixo como moeda de dignidade é indecente, indigna, racista. Não é requerido ser feminista, para defender as patrulhas Maria da Penha, pela Brigada Militar. Não é preciso ser sindicalista, para defender planos de cargos e salários, investimentos internacionais e uma negociação rigorosa sobre os caminhos do desenvolvimento, do investimento e da produção tecnológica. Na atual conjuntura, o mínimo de racionalidade disponível requer apenas uma coisa: não ter ódio.
Sem o ódio, a direita gaúcha e brasileira parece que não pode existir.
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