O discurso de Patrícia Arquette, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante (Boyhood), foi recebido com uma salva de aplausos, entre suspiros e lágrimas de uma platéia que apóia a equidade de gênero. Mas a recepção de seu discurso por setores feministas se deu com desconfiança e ceticismo, pela dissonância entre os privilégios das divas e a vida da maioria das mulheres, sobretudo as que ocupam posições marginais na sociedade.
Com autoconfiança e pose de mulher poderosa, que acaba de ganhar o troféu que consagra o pico de sua carreira como atriz hollywoodiana, Arquette defende: “Essa é a nossa vez de conquistar paridade salarial de uma vez por todas, e direitos iguais para as mulheres nos Estados Unidos”. Com base nesse discurso, e no apelo de Reese Witherspoon para que os paparazzi perguntassem sobre assuntos mais relevantes que os vestidos das atrizes, as manchetes sobre a noite das estrelas destacaram em letras garrafais a expressão “empoderamento de mulheres”.
Mas o que significa “empoderamento”? É um termo cunhado por feministas negras a partir dos 1960, dentre as quais a pioneira Kimberle Crenshaw com sua “política de empoderamento”, que consiste em recuperar poder do ponto de vista dos subordinados. Nos núcleos feministas de consciência negra, “empoderamento” era uma palavra de ordem contra o silenciamento de vozes negras no feminismo branco, e também contra o machismo e a homofobia existentes no movimento negro. Significa recuperar a autoestima atacada pelo patriarcado e pelo regime escravocrata. É um ato coletivo de resistência, que cria vínculos de solidariedade entre mulheres no movimento negro e entre mulheres negras nos espaços predominantemente brancos do feminismo.
Não se trata de “dar poder”, tal qual muitas corporações internacionais e ONGs promovem de maneira distorcida, despolitizada e vertical, como se mulheres fossem passivas e precisassem ser validadas por entidades cujo poder vêm de cima; mas recuperar poder, se entender como sujeito em vez de se sujeitar. É uma estratégia de resistência que marcou a história dos núcleos feministas das Panteras Negras.
Nas redes sociais, a cientista política Mabelle Bandoli foi implacável: “Empoderamento é retomada de poder em todos os níveis. Não existe emancipação sem tomada de poder (inclusive o político institucional). Não existe emancipação coletiva sem emancipação individual, sem autoestima, sem o exercício constante e minucioso da autodeterminação. Por saber que condições materiais (inclusive em produzir e reproduzir cultura) nos retiram o poder básico de sermos sujeitos da nossa história individual e coletiva .”
Seu relato em primeira pessoa afirma que sua intervenção nos movimentos sociais passou por “um esforço pessoal de investir na minha autoestima e na autoconfiança que me foi retirada durante toda a vida”. Não me parece que haja dicotomia entre empoderamento no nível pessoal, enquanto recuperação de uma autoestima relegada a posições marginais (negra, mulher, homosexual, trans, etc.) e o ato coletivo de empoderar-se enquanto grupo ou bloco que procura ganhar espaço, num ato constante de desconstrução de micro e macro poderes. Poder no sentido empregado pelos núcleos feministas do movimento negro não pressupõe sustentar ou inverter o pêndulo de relações de dominação, mas desfazer o poder em seu fulcro.
A socióloga Anne-Emmanuèle Calvès se indaga se frente a seu emprego distorcido, institucionalizado, seria o caso de descartar o termo. Ela nega: “Por mais que iniciativas de empoderamento possam variar e ser implementadas em contextos culturais específicos… elas começaram como experiências coletivas, enraizadas na ação, comprometidas com uma conscientização entre pessoas sobre suas condições, no intuito de transformar relações assimétricas de poder. Neste sentido elas reconectam com a origem do conceito de empoderamento e recusam a definição individualista, despolitizada, vertical e ‘instrumental’, imposta por organizações internacionais de desenvolvimento.”
A política liberal instrumentaliza discursos feministas, dando ao feminismo um verniz light, com limites demarcados. Se bem a institucionalização do empoderamento de mulheres produziu mecanismos de combate à violência doméstica, o empoderamento vai além de pequenos reparos (importantes). Creio que seja imprescindível retomar um empoderamento que engendre um projeto de transformação social no qual mulheres se constituam como sujeito autônomo, ativas na desconstrução de cânones olimpianos e relações de poder instituídas.
No cinema, a Academy ocupa o grau máximo de poder instituído, tendo na cerimônia de Oscars seu principal rito de revalidação de poder e sacralização do sistema de estrelato que o sustenta. Mesmo com o desmantelamento de Hollywood, cujo império já vira seus tempos áureos e vem gradualmente decaindo, os discursos das estrelas premiadas chegam a lares onde os feminismos têm dificuldade de entrar.
Com efeito, o discurso de John Legend, ao ser consagrado pela música “Glory” (Selma), foi bastante ousado ao revelar que o rei está nu. Dizer que vive no país com a maior população carcerária do mundo, e que atualmente “há mais negros presos que durante o período da escravidão em 1850” não foi pouca coisa. Isso que deveria ser óbvio é dito em alto e bom tom na principal cerimônia do showbiz, no ano em que revoltas do movimento negro contra violência policial eclodem pelo país.
Não sou contra a defesa da paridade salarial de Arquette, nem me oponho ao protesto de Witherspoon, por mais marqueteiro que possa soar. Pelo contrário, entendo que esses discursos possam abrir brechas para problematizar a condição de outras mulheres. Mas elas não são porta-vozes do feminismo. Esta acepção liberal de flashes e glamour passa anos-luz da real condição da maioria das mulheres, marcadas por barreiras depreciativas que vão muito além das perguntas inconvenientes dos paparazzi. O problema não é a apropriação do sentido de “empoderamento” das divas hollywoodianas, mas cabe assinalar os limites desse sentido, já que elas vivem uma realidade inatingível. São tantos os privilégios que desfilam por aquele tapete vermelho…
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Marina Fuser é ativista feminista e doutorando em Cinema & Estudos de Gênero entre Sussex e Berkeley. Ela pesquisa intersecções de gênero, raça, e classe no cinema pós-colonial e leciona sobre feminismo no departamento de Estudos Culturais de Sussex.
Referências:
CALVÈS, A. E. (2009) Empowerment: The History of a Key Concept in Contemporary Development Discourse. In: Revue Tiers Monde, Vol. 200. Disponível através do link: http://cairn-int.info/article-E_RTM_200_0735–empowerment-the-history-of-a-key-concept.htm
CRENSHAW, K. (1993) Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence Against Women of Color. In: Stanford Law Review, Vol. 43. Disponibilizado através do link: http://socialdifference.columbia.edu/files/socialdiff/projects/Article__Mapping_the_Margins_by_Kimblere_Crenshaw.pdf
GRAMSCI, A. (1999) Cadernos do Cárcere, Disponíveis através do link: https://umhistoriador.wordpress.com/2012/05/20/cadernos-do-carcere-de-antonio-gramsci-disponivel-online/
SARDENBERG, C.M. (2009) Liberal Vs. Liberating Empowerment: A Latin American Feminist Perspective. In: Pathways of Empowerment (Working Paper 7). Disponível através do link: http://www.pathwaysofempowerment.org/archive_resources/liberal-vs-liberating-empowerment-a-latin-american-feminist-perspective-pathways-working-paper-7
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