por Rodrigo Vianna
A hora de Fidel Castro chegou. A hora de entrar para a História.
Hum… Essas duas frases fariam sentido se fosse ele um líder político comum. Mas não! Fidel Castro não precisou sair da vida pra entrar na História. Ele já a havia escrito: com os fuzis e a caneta. Com balas e palavras.
Ninguém teve tanta influência na América Latina do pós-Segunda Guerra. Tudo o que se fez, pela esquerda ou pela direita em nosso continente, ao longo de quase 60 anos, foi para apoiar ou derrotar o exemplo de Fidel.
As ditaduras militares, a propaganda anticomunista: eram ferramentas para deixar claro que outras cubas não seriam toleradas por aqui.
As guerrilhas de esquerda, a resistência de trabalhadores e estudantes: eram as ferramentas para deixar claro que (pelas armas ou pelo voto) uma parte deste continente seguia a linha de Fidel.
Qual a linha?
Ninguém pense que a lanterna de Fidel iluminava um caminho que apontava para o socialismo apenas. O legado de Fidel, a meu ver, é outro. É o legado de que podemos ser independentes, de que não nascemos para ser colônias agrícolas dos Estados Unidos.
Foi o brasileiro Moniz Bandeira (um gigante da História e das Ciências Humanas) quem melhor compreendeu a Revolução Cubana, comandada por Fidel e Che Guevara. Escrevi sobre isso (aqui o link – De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina), há seis anos:
o livro de Moniz Bandeira narra o percurso das lutas nacionalistas na América Latina. E mostra como a Revolução Cubana foi o desdobramento (um deles apenas, ao lado de tantos outros movimentos ocorridos na Guatemala, Peru, Bolívia, Argentina, Brasil…) dessa luta de dois séculos contra o Imperialismo.
Esse é o grande legado de Fidel. Che Guevara e Raul Castro talvez fossem socialistas já em 1959, quando derrubaram Batista e entraram aclamados em Havana. Fidel, não. Era um nacionalista de esquerda, era antes de tudo um herdeiro da luta nacionalista de Martí. Caminhou para o marxismo para sobreviver. E também porque intuiu que, sem radicalizar as conquistas alcançadas, ficaria pelo caminho.
Passados quase 60 anos da Revolução que significou a verdadeira independência cubana, é impossível ser de esquerda na América Latina sem ser nacionalista.
Não estou entre os que fazem a defesa unilateral do governo cubano. Mas é preciso compreender a história de Cuba, plantada a menos de cem milhas do Império, para entender a façanha da Revolução de 1959.
Fidel não foi santo. Não deve ser tratado como um semi-deus. Foi apenas um (grandioso) líder que soube ler a realidade e lutar para modificá-la. Sem concessões. Esse o legado do gigante morto aos 90 anos.
Independência e nacionalismo. Um Brasil e uma América Latina mais justos passam pela defesa desses valores – que não saíram de moda. E nem vão sair. Gostem ou não jornalistas e intelectuais entregues a devaneios colonizados.
No início do século XXI, Fidel já se afastava da liderança do processo cubano quando começaram a surgir governos nacionalistas e de esquerda na América Latina: Chávez, Kirchner (Néstor/Cristina), Tabaré/Mujica, Lula, Evo, Correa, Lugo. Todos chegaram ao poder pelo voto. As armas de Fidel pareciam já não ser necessárias.
No entanto, todos esses governos participaram da mesma construção iniciada por Fidel: a de uma América Latina independente. Não à toa, organizou-se nesse período a CELAC (comunidade de Estados de todo continente americano, excetuando-se EUA e Canadá). Foi um grito de independência.
Ao lado de Fidel e Raul nessa construção estavam personagens como Lula (que jamais foi nem de longe socialista) e Mujica (que já foi guerrilheiro tupamaro no Uruguay, e virou um pacifista sem abrir mão dos mesmos princípios).
Nos últimos anos, a onda conservadora voltou a varrer a América do Sul. Macri na Argentina e o inacreditável Michel Temer no Brasil são símbolos de um continente que quer voltar a ser colônia. A entrega do Pré-Sal aos EUA, pelo governo golpista no Brasil, mostra que a questão nacional segue a estar no centro do debate político em nossa região. Quem não entendeu isso não entendeu quase nada.
Os governos de centro-esquerda dos últimos anos mostraram seus limites ao não aprofundar as mudanças sociais. Foram incapazes de resistir aos novos ventos da economia mundial quando a onda das commoditties se alterou. Foram governos que mudaram a forma de distribuir riqueza, mas não mexeram quase nada na forma de produzi-los. Chávez queria aprofundar esse debate, mas sofreu uma derrota (a única, num plebiscito) quando tentou aprovar Constituição socialista na Venezuela.
O legado de Fidel de um lado mostra que não é possível ser de esquerda na América Latina sem ser nacionalista. Mas de outro indica que não adianta ser nacionalista sem enfrentar as grandes disputas e sem mudar os regimes de propriedade.
Não se pode chorar de tristeza quando morre um homem de 90 anos. Viveu muito, viveu bem. Não se pode chorar. É preciso sorrir. E sorrio ao lembrar que em 1994 eu era um jovem repórter da TV Cultura quando fui enviado para fazer a transmissão ao vivo de um evento internacional no Memorial da América Latina em São Paulo. Havia líderes de vários países, entre eles Fidel.
Lá pelas tantas, eu estava ao vivo em frente ao prédio, quando uma pequena comitiva começa a caminhar até o estacionamento. Um deles era mais alto e cheguei a duvidar: não pode ser o Fidel dando sopa assim… Saí gritando: “comandante, comandante”. A segurança correu, furiosa, contra mim. Mas Fidel sorriu, e caminhou em minha direção.
Fidel castro entrou ao vivo na TV Cultura naquele começo de tarde, para alegria do jovem repórter. Não sei onde foram parar aquelas imagens. Nem lembro o que disse Fidel. Mas o sorriso dele ficou gravado na memória.
Três anos depois, fui a Cuba de férias. E ao descer no aeroporto vi o gigantesco cartaz direcionado aos visitantes: “senores imperialistas, no tenemos absolutamente ningun miedo”.
Aí fui eu que sorri. Como era possível ser altivo a esse ponto? Eu vinha de um Brasil que, sob FHC em 1997, tirava os sapatos para os Estados Unidos. E os cubanos, em crise gravíssima depois da queda da União Soviética, seguiam de pé.
Fidel está morto nesse 2016 tenebroso de golpes e regressões. Como disse minha irmã Heloisa: nem Fidel aguentou 2016. Foi demais pra ele.
Fidel está morto?
Algo de Fidel sobreviverá na luta contra as desigualdades, contra a injustiça e contra o projeto neocolonial de temers, macris e seus subalternos na mídia.
Vamos sorrir, com a ponta dos lábios. De forma discreta. Fidel se foi. Mas Fidel não morre.
“No tenemos absolutamente ningun miedo!”
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